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a surgir evidências de transmissão fetal que inicialmente se julgava não acontecer. Só o estudo de um maior número de casos de CO- VID-19 entre mulheres grávidas nos vai permitir saber exatamente qual o comportamento do vírus neste contexto, antes disso tudo é espe- culação.

A gravidez geralmente é vivida como um momento único de felici- dade na vida de uma mulher, um momento intensamente partilhado em família e com amigos. Enquan- to a futura mamã nutre o seu feto é também nutrida de amor pelos que a rodeiam. É aqui, no contacto e na presença, que as coisas mu- dam substancialmente. Agora são as máscaras, o álcool gel e princi- palmente o distanciamento social que se impõem. A preparação pa- ra o parto e as consultas de vigi- lância ficam reduzidas ao essencial e tudo o resto passa para o digital que, mais do que nunca, caracteri- za profundamente esta era. Atual-

mente em Portugal, parir sendo COVID positiva ainda está envolto em muitas restrições para proteção do recém-nascido. De uma forma geral estas mulheres não podem estar acompanhadas do marido e, por mais longo que seja o seu tra- balho de parto, irão estar sozinhas com os seus pensamentos e anseios. Para além desta nova e solitária realidade, o ato de parir fica ainda mais desafiante quando o temos de fazer com uma máscara na ca- ra. Depois do bebé nascer não há espaço ao fundamental contacto pele com pele e até a amamenta- ção está sujeita a demasiados in- tervencionismos, que levam muitas mulheres simplesmente a desistir de o fazer. Para além desta reali- dade, dependendo do hospital, to- das as recém mamãs estão sujeitas a restrições de visitas. Na maioria dos hospitais estas visitas estão reduzidas à presença do pai, que apenas pode estar com a sua nova família uma hora por dia e, dema- siadas vezes, só conhece o seu bebé

no dia seguinte ao nascimento. As- sim muitas grávidas preferem estar mais isoladas neste período para tentar preservar ao máximo a ilu- são de uma normalidade do parto e dos primeiros dias com o seu be- bé. Ilusão porque agora já nada é “normal”.

A ida para casa também muda. Por força das circunstâncias já não há o corrupio de visitas a entrar e a sair para conhecer o novo bebé, apenas a família nuclear e mais próxima está presente no dia-a- -dia. Se por um lado isto pode ser uma coisa boa para dar tempo à mãe e ao bebé de se conhecerem e vincularem, por outro lado, com o passar do tempo a escassez de contactos sociais poderá ter um impacto menos positivo no desen- volvimento social deste bebé, que só no futuro descobriremos. Outro elo que acresce a este dilema é o risco maior que correm os avós pe- rante a COVID-19. Se por um lado conseguimos diminuir as visitas, por outro não conseguimos nem pode-

mos privar os avós de estarem ao nosso lado neste momento e toma- rem nos braços este novo bebé que representa também para eles um renascimento enquanto avós. As evidências mais recentes apontam consistentemente para doença li- geira nas crianças, mas o oposto acontece quando falamos dos avós com mais de 60 anos, que têm uma maior gravidade de doença espe- lhada numa mortalidade mais im- portante neste grupo.

Naturalmente que esta não é uma realidade para todas as grávidas no mundo. Diferentes contextos, culturas, crenças e até aspetos eco- nómicos condicionam a nossa ma- neira de ser mãe em tempos de COVID-19. De uma maneira ou de outra, qualquer mulher que foi mãe nestes últimos meses não vai esque- cer este louco ano de 2020 em que, para além de receberem nos braços um bebé que traz tantos mistérios, ainda tiveram de gerir ansiedades e preocupações novas próprias de uma pandemia.

A

credito que nenhuma abordagem à infância, desen- volvimento infantil ou parentalidade esteja completa se não se abordar o conceito de vinculação e o papel do vínculo. Se há muito de inato e automático no pro- cesso creio que o conhecimento da importância deste tema é fundamental para que pais e mães possam adotar comporta- mentos e tomar decisões que, ainda que não decisivas, terão certamente um impacto no futuro dos seus filhos.

De acordo com Matos (2005), a vinculação refere-se à relação privilegiada que a criança estabelece com a figura materna e que ocorre através da capacidade de procura de relação pela criança e da capacidade de resposta relacional que é dada pe- lo cuidador principal.

Estudos de vários autores como Klaus & Kennell (2000), Claus- sen & Crittenden (2000) e Schermann (2001) verificaram a existência de competências de interação já nos primeiros minu- tos de vida do bebé. Estes relacionam-se com a sua capacidade de reconhecer a voz da mãe e do pai, de reconhecer elemen- tos presentes na vida intrauterina (p.e. batimento cardíaco da mãe), de identificar o cheiro da figura materna. Desde cedo a criança procura o conforto e proximidade e utiliza estratégias biologicamente preparadas para o conseguir. Na verdade, um estudo efetuado pela Universidade de Montreal, no Canadá, revelou que o cheiro do bebé recém-nascido ativa na mãe o sis- tema neurológico de recompensa. A ativação deste garante ao bebé a satisfação da necessidade de alimentação, mas impul-

Cátia Garcia Morais

Psicóloga Clínica Especialista Avançada em Neuropsicologia

siona também a relação de vincula- ção mãe e filho.

Mais ainda, imagens de ressonân- cias magnéticas efetuadas nos la- boratórios do Instituto de Tecnolo- gia de Massachusetts mostraram as manifestações hormonais no cérebro que ocorrem quando uma mãe beija o seu bebé. O que se observou foi a libertação acentuada de oxitocina. A denominada hormona do amor desperta sentimentos de carinho e apego. Além disso, o gesto de afeto ativa também o sistema de recom- pensa o que leva à libertação de do- pamina, vasopressina e serotonina. De acordo com Ainsworth (1978), à medida em que a figura de vincu- lação responde adequadamente à procura de relação pelo bebé, este vai construindo uma base de segu- rança que se revela extremamente útil em situações de desconforto ou medo. Aquilo que a teoria da vincu- lação nos mostra na essência é que a relação precoce e continuada en- tre a criança e os pais ou cuidado- res substitutos tem um papel impor- tante na qualidade das relações que estabelecerá na idade adulta. Na verdade, a forma que a criança ob- servou que os pais utilizavam para se relacionar com ela influenciará a imagem que o adolescente ou adul- to criará acerca de si, dos outros e do mundo.

Assim, uma criança que estabeleceu uma vinculação segura com os pais

terá maior facilidade no estabelecimento de relações sociais e de proximidade, terá maior facilidade na implementação de comportamentos de independência e terá uma interpretação de maior positividade face à criação de relações. Por outro lado, quando se verificou uma relação de vinculação insegu- ra (seja ambivalente ou evitante) haverá uma probabilidade aumentada de se apresentar um adulto mais inseguro, mais ansioso, com maior dificuldade em se relacionar socialmente, maiores dificuldades em confiar ou maior tendência à utilização de estratégias de coping desadaptativas, p.e. impulsividade e agressividade.

Nas palavras de Magda Gomes Dias, fundadora e diretora da Escola de Parentalidade e Educação Positivas é no sentimen- to de pertença, de ser importante, de ser amado que todas as questões associadas ao desenvolvimento infantil decorrem com maior naturalidade, referindo-se ao vínculo como a “varinha de condão”.

O estabelecimento de relações de afeto a par de regras e limi- tes bem estabelecidos e consistentes serão um preditor de saú- de mental na infância, adolescência e idade adulta.

Pedro Paixão

Escritor

S

ofrer de doença bipolar não significa ser-se criativo, mas estudos contemporâneos provam a existência de um número desproporcional de mentes criativas com essa desordem. Esta correlação foi notada, pelo menos, desde Platão. No seu diálogo, Fé- dro, escreve que a obra realizada por um indivíduo por mais perícia que tenha, nada é ao lado da obra produzida por um outro que sofre de mania, o que ele interpreta co- mo estando tomado pelos deuses. Note-se que mesmo popularmente se afirma esta relação: um artista sendo considerado “naturalmente” mais ou menos maluco. O arqué- tipo do génio na época moderna é a figura de Beethoven, reconheci- damente desequilibrado psiquica- mente. A própria palavra “génio” é muitas vezes usada no sentido de

“mau génio”, caracterizando uma pessoa com comportamentos que fogem às normas de convivência social. Do poeta Charles Baude- laire ao músico e cantor Kurt Co- bain, passando por Lord Byron e Virgínia Woolf, incluindo os mate- máticos e físicos Isaac Newton e Ludwig Boltzmann, a lista das pes- soas criativas diagnosticadas como bipolares, directa ou postumamen- te, é extensa.

A doença bipolar, antes denomina- da maníaco-depressiva, manifesta- -se de várias maneiras e em dife- rentes graus, mas é sobretudo ca- racterizada por uma forte variação de humor que pode ir da depressão profunda à euforia incontrolável. Em geral estes estados persistem durante mais ou menos tempo e têm entre eles um intervalo de “nor- malidade”. Não se confundem com estados de alegria ou tristeza, nem se sucedem rapidamente. Os es- tados depressivos são, por norma, mais longos do que os eufóricos. Mas podem acontecer “viragens”, súbitas variações de humor, e esta- dos chamados “mistos”, em que se

Talentosa

conjugam traços depressivos e tra- ços eufóricos, sendo talvez estes os mais perigosos. A desordem bipolar é com efeito uma doença perigosa: no estado de depressão profunda pode levar ao suicídio, no estado de euforia a cometer actos que po- dem afectar a sua vida: perder o emprego, fazer gastos incompor- táveis, julgar-se imune a qualquer ameaça. Se a correlação entre esta doença mental e a criatividade es- tá estudada e comprovada o que permanece, pelo menos em parte, um mistério é a razão, ou razões, que expliquem essa relação. Pela minha experiência pessoal vou ten- tar fazer algumas aproximações a este problema. 

A doença bipolar foi-me diagnosti- cada quando tinha dezanove anos (hoje tenho sessenta e quatro), mas foi preciso muito tempo para a compreender e aceitar e, mais ainda, até encontrar os meios de a controlar. Pelo menos desde os dez anos que sofro de fases depressi- vas, normalmente no mesmo pe- ríodo do ano e, curiosamente, com as características que se mantive- ram ao longo da minha vida, co- mo se se tratasse de uma repetição do mesmo. É o caso com a maior parte das doenças esquecermo-nos delas quando estamos saudáveis e quando ficamos doentes recear que a doença não passe. No ca- so do bipolar este fenómeno pode ser ainda mais verdade. Apesar do sofrimento intenso eu não me con- siderava doente por duas razões: julgava que se tratava de uma ca- racterística normal da minha per- sonalidade e pensava que os ou- tros também sofriam, de uma ma- neira ou de outra, do mesmo mal. Por isso nunca, até à idade adulta, me queixei a alguém do que em mim acontecia, nem que não fosse

por não saber dizer do que se tra- tava, nem ter ninguém com quem sobre isso falar. Um dos grandes sofrimentos desta doença é a di- ficuldade do outro a compreender e aceitar. Foi também muito cedo que descobri, primeiro incipiente- mente e depois de uma forma ca- da vez mais clara, a existência de uma relação entre os meus estados de humor e as minhas, chamemos- -lhe, capacidades intelectuais, quer sejam artísticas ou outras.

Durante as minhas primeiras fa- ses depressivas, até aos treze anos, notava um alívio quando passava as manhãs a tocar num piano que existia em casa dos meus primos. Tocar um instrumento, o que sem- pre fiz sem grandes intervalos, sal- vou-me, como digo repetidamente, a alma. Um pouco mais tarde tive lições de pintura e lembro-me com saudade dos calmos Domingos passados no meu quarto a pintar enquanto a minha mãe bebia chá com as amigas na sala. Julgo que só depois dos quinze anos comecei a escrever com regularidade. Exis- tia um mesmo padrão que se repe- tia. Quando me sentia muito depri- mido, ao que então não sabia dar nome, isolava-me numa casa junto da praia. Passados alguns dias em que nada conseguia fazer, prega- do a uma cama, começava a ter vontade de escrever. As frases e as histórias começavam a crescer den- tro da minha cabeça até ao ponto de ter de pegar numa caneta. Por essa altura já não sentia qualquer depressão, pelo contrário, sentia o que hoje identifico como um come- ço de euforia. Escrever trazia-me um sentido e livrava-me do caos interior.

Não era só no domínio artístico que sentia essa libertação e esse

entusiasmo. Ao ter de fazer diferen- tes cadeiras para poder mudar o meu acesso à universidade estudei sozinho a matéria dos dois últimos anos de matemática do liceu e, na época de Setembro, obtive a clas- sificação máxima sem perder ne- nhum ano. Do mesmo modo escre- vi a minha tese de doutoramento em menos de três meses, dormindo menos de quatro horas por noite. O preço, no entanto, foi muito ca- ro: depois de defender a tese entrei cerca de quatro meses em estado de grave depressão. 

Uma coisa a notar é que essa anor- mal produtividade não se realiza- va nem no estado depressivo nem no estado de pura euforia, mas sim num estado de euforia suave, a que se chama hipomania. Quan-

do comecei a publicar livros, vários deles escritos muito rapidamente, “aguentava” até ao seu lançamen- to caindo depois, por vezes logo no dia seguinte, em depressão.

Tanto nos mencionados exemplos académicos, tal como nos artísti- cos, o que me parece acontecer é uma fuga ao mundo e ao tempo “reais”, escapando a esse peso, que pode chegar a ser insuportável, para regiões em que o sujeito, ob- cecado pelo seu trabalho egoísta, consegue encontrar uma liberdade e um bem-estar que não encontra no “normal” decorrer dos dias, na miséria do quotidiano. Existe clara- mente no trabalho artístico algo de incontrolável e mesmo caótico, em todo o caso inexplicável. Esta parte injustificável é a mais importante.

Quando isso acontece o caos que o artista sente em si é realizado, isto é transformado num objecto, para o qual o caos migrou, dele assim, pelo menos temporariamente, se libertando. É de facto a dor, que também pode surgir na forma de paixão, que me faz escrever, por- que ao fazê-lo esta transforma-se no melhor dos casos, em formas de beleza que provocam uma particu- lar, embora efémera, satisfação. Da complexidade destes factos re- sultam muitas vezes problemas de identidade: eu sou o que passou um mês fechado no escuro de um quar- to, ou o que apanhou o primeiro avião para Nova Iorque depois da destruição das Torres Gémeas. Do mesmo modo existe uma insegu- rança quanto à avaliação da qua-

lidade do que é feito: tanto posso achar um mesmo livro que escrevi como excelente ou um fiasco. Pior, essa avaliação, não podendo ser assegurada por ninguém, faz com que quando ela é positiva surja de imediato a dúvida de se tratar de um simples engano, porventura in- duzido pelo próprio autor. Mais de uma vez me coloquei a hipótese de ter enganado os nove professores que me avaliaram a tese, dado o facto de a ter escrito num tempo tão breve.

De tempos a tempos pergunto-me se a minha vida não teria sido me- lhor e mais fácil se não sofresse desta patologia, acabando sempre por agradecer, ponderando os la- dos negativos e os positivos, tê-la. Pelo menos, por enquanto.

Hugo João Mota Santos

Palestrante Instagram Youtube Domina o Caos

H

ugo. Vinte anos. Deprimido. Quão redutora é esta in- trodução? Facilmente, de forma fria e objetiva, dire- mos que é uma adjetivação que tem tanto de escassa, como de imprecisa.

Mas será que alguém que está com uma depressão tem a des- treza mental para perceber que é muito mais do que o seu es- tado atual de saúde?

Poderia iniciar uma dissertação sobre o comportamento hu- mano ou sobre a amostra de pessoas que, com o meu projeto, tenho contacto. Seria injusto e intelectualmente desonesto. Não me sinto legitimado para isso. Consequentemente, falemos do meu caso em específico.

Depois de anos e anos a – desculpem-me a expressão – em- purrar com a barriga doenças, mortes violentas e uma relação paterna emocionalmente abusiva… Tudo descambou. Todos os fantasmas, todos os medos, todos os traumas que tentei fechar em gavetas perras assombraram a minha alma e a minha men- te com a força de uma avalanche.

A palavra depressão tem um peso demasiado grande, não é? A possibilidade de se tomarem antidepressivos é assustadora. Pensemos no seguinte… Se eu tomo antidepressivos para estar mentalmente equilibrado aos vinte anos, como é que eu estarei aos cinquenta? Como é que será a minha vida? Estarei com-

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