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3 PRÁTICAS DE SAUDABILIDADE E A MIDIATIZAÇÃO DA ALIMENTAÇÃO

3.1 TENDÊNCIAS ALIMENTARES CONTEMPORÂNEAS

Tendência deriva do latim tendentia, que significa tender para, inclinar-se para, ou ser atraído por, relacionando-se diretamente com uma ação ou força pela qual o corpo tende a mover-se. Em sentido figurado, o termo nos remete à noção de movimento e alteridade, uma vez que implica alguma força externa que lhe faz dirigir-se ou sentir-se atraída para alguma direção. Dessa forma, tendências se referem a um conjunto de possibilidades, na medida em que não se tem certeza de que o rumo será mantido.

No caso de tendências alimentares, Barbosa (2009, p. 18) as define como “mudanças que estamos observando tanto na forma e no conteúdo da nossa alimentação como nas

práticas e representações sobre o comer e os alimentos”. Por meio de uma pesquisa empírica realizada em 2006, em 10 capitais brasileiras com mais de um milhão de habitantes, e de informações colhidas em entrevistas e em bancos de dados, a antropóloga discute quatro tendências que se interligam e singularizam o contexto da alimentação na sociedade brasileira, interferindo diretamente na rotina dos cidadãos, de indústrias e empresas e do próprio conteúdo midiático: o valor da origem, a cientificização, a gastronomização e a saudabilidade, tendo as duas últimas mais ênfase no capítulo.

As quatro tendências se relacionam com o fato de que, hoje, a alimentação desempenha um novo papel na sociedade. Assim como a moda, a sexualidade e a violência, ela tornou-se um tema cultural igualmente importante e discutido - tanto por especialistas quanto por cidadãos que vêm se interessando cada vez mais sobre um assunto que, por muito tempo, foi abordado massivamente por revistas e atrelado à estética. “[...] Temos novas tarefas pela frente [...]: entender a epidemia da obesidade e as doenças a ela associadas; o surgimento de comportamentos como anorexia e bulimia; o desenvolvimento de ideologias nutricionais de cunho religioso; a espetacularização da alimentação gourmet, etc.” (GASTRONOMIA..., 2015, p. 18).

Alguns sociólogos – entre eles Jean-Pierre Poulain, um dos autores que problematizam a “antropossociologia” da alimentação - atribuem a grande mudança de status de comer no mundo moderno (que prioriza a qualidade do alimento em detrimento à quantidade) à crise de confiança na indústria alimentar, iniciada a partir do episódio conhecido como “vaca louca”, epidemia bovina que surgiu na Inglaterra na década de 8021, e reforçada por outras doenças transmitidas por alimentos, como as causadas pela Salmonella, consideradas um dos problemas de saúde mais alarmantes da Saúde Pública, a febre aftosa, a gripe suína, e a polêmica de comercialização de carne de cavalo22.

Por causa de toda desconfiança na indústria, o consumidor tem exigido cada vez mais transparência no processo de produção dos alimentos, resposta dada principalmente por meio da certificação publicamente acreditada: produções “orgânica”, “sustentável”, “natural”, que indicam alimentos livres de agrotóxicos, antibióticos, etc. A valorização da origem, então,

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Surgida no Reino Unido na década de 1980, a doença da vaca louca se espalhou para muitos países da Europa e do mundo devido à utilização de farinhas de origem animal contaminada. Suspeita de ser a causa da variante da doença de Creutzfeldt-Jakob em humanos, ela despertou a preocupação dos consumidores e levou a uma grave crise no setor da carne.

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Em janeiro de 2013, testes comprovaram sinais de carne de cavalo em diversos produtos industrializados europeus cujos rótulos apontavam continham apenas carne bovina. Autoridades do Reino Unido identificaram a fraude em hambúrgueres e, em seguida, outros produtos como a lasanha, na Itália, também foram notificados.

permeia toda a cadeia alimentar pela qual atravessamos, estando implícita nas outras três tendências apontadas por Barbosa (2009):

Através dessa (da valorização da origem dos alimentos), todas conseguem seus objetivos centrais sem entrar em confronto com as demais. A saudabilidade porque a ênfase em uma alimentação orgânica a coloca no centro das mudanças no processo produtivo alimentar e de tudo o que envolve os meios tradicionais e artesanais de produção. A gastronomia porque a qualidade dos alimentos lhe é fundamental na sua cruzada em favor do sabor e a melhora deste é um dos argumentos da agricultura orgânica em favor de seus produtos. A cientificação porque, cada dia mais, a relação entre alimentação e doença passa pelo processo de produção e industrialização do alimento. (BARBOSA, 2009, p. 58).

As tendências apontadas por Barbosa (2009) também são vistas, por outra perspectiva, no projeto Brasil Food Trends 2020, organizado a partir de pesquisas validadas por estudos elaborados por centros de referência internacionais em mercados com os quais o Brasil mantém intercâmbio comercial e cultural. As tendências percebidas em todos os estudos foram agrupadas em cinco categorias: i) sensorialidade e prazer (valoriza a socialização em torno da alimentação, as artes culinárias e as experiências gastronômicas; segmentos como gourmet e premium são característicos dessa categoria); ii) saudabilidade e bem-estar (relacionada à busca de um estilo de vida mais saudável, as tendências nesta categoria originam-se em fatores tais como o envelhecimento das populações, as descobertas científicas que vinculam determinadas dietas a doenças, a renda e a vida nas grandes cidades. Alimentos funcionais, produtos para dietas e controle de peso e o crescimento de uma nova geração de produtos naturais e orgânicos são segmentos do consumo característicos); iii) conveniência e praticidade (motivadas, principalmente, pelo ritmo acelerado nos centros urbanos e pelas mudanças na estrutura tradicional das famílias, e marcadas por refeições prontas e semiprontas, alimentos de fácil preparo, embalagens de fácil abertura, fechamento e descarte, serviços e produtos de delivery, produtos em pequenas porções, etc.); iv) confiabilidade e qualidade (demanda por produtos seguros e de qualidade testada, verificados por meio da rastreabilidade e garantia de origem, de certificados de sistemas de gestão de qualidade e segurança, da rotulagem informativa e de outras formas de comunicação utilizadas pelas empresas para tais fins); e v) sustentabilidade e ética (consumidores preocupados com o meio ambiente e também interessados na possibilidade de contribuir para causas sociais ou auxiliar pequenas comunidades agrícolas por meio da compra de produtos alimentícios).

Ao cruzarmos os dois estudos, percebemos que quatro das cinco tendências mundiais são identificadas no estudo de Barbosa (2009) (quadro 1). A sensorialidade e prazer podem ser vistos sob o prisma da gastronomização; a saudabilidade e bem-estar são refletidos na

cientificização (no que diz respeito à medicalização da alimentação, na qual predominam os discursos nutricionais e médicos acerca da alimentação, a quantidade e qualidade de determinados nutrientes e ingredientes contidos nos alimentos consumidos) e na saudabilidade; a confiabilidade e qualidade incluem o valor de origem (a importância de rastrear, identificar a origem e trajetória de um alimento, medida necessária para a segurança alimentar e, consequentemente, para a confiança e qualidade por parte dos consumidores); e, por fim, a sustentabilidade e ética são correspondentes à saudabilidade (que vai além da saúde e abraça a conexão com o meio ambiente) e ao valor de origem (no que diz respeito à politização do mercado, às práticas politicamente corretas).

Quadro 1 - Quadro comparativo das tendências alimentares mundiais e brasileiras

BRASIL FOOD TRENDS 2020 BARBOSA (2009) SENSORIALIDADE E PRAZER

Valoriza a socialização em torno da alimentação, as artes culinárias e as experiências gastronômicas.

GASTRONOMIZAÇÃO

Estetização, ritualização, valorização do sabor e do prazer conferidas ao ato de comer e de cozinhar.

SAUDABILIDADE E BEM-ESTAR

Relacionada à busca de um estilo de vida mais saudável

CIENTIFICIZAÇÃO (MEDICALIZAÇÃO) Predominância de discursos nutricionais e médicos acerca da alimentação.

SAUDABILIDADE

Visão holística da alimentação. Além da preocupação nutricional e médica, engloba também noções como equilíbrio, harmonia, bem-estar e disposição. CONFIABILIDADE E QUALIDADE

Demanda por produtos seguros e de qualidade testada

VALOR DE ORIGEM (RASTREABILIDADE) Identificar a origem e a trajetória de um alimento.

SUSTENTABILIDADE E ÉTICA

Preocupação com o meio ambiente e causas sociais

SAUDABILIDADE

Visão holística da alimentação. Além da preocupação nutricional e médica, engloba também noções como equilíbrio, harmonia, bem-estar e disposição, tanto com o corpo quanto com o meio

ambiente.

VALOR DE ORIGEM (POLITIZAÇÃO DO MERCADO)

Movimento no qual mercado e empresa passaram a ser avaliados por critérios éticos, político e morais.

Como esta pesquisa relaciona as práticas de saudabilidade ao self reality show online, considerado um formato industrial e midiático, damos ênfase a três macrotendências identificadas no relatório: sensorialidade e prazer, saudabilidade e bem-estar e sustentabilidade e ética. A fim de um recorte ainda mais específico, dentro dessas três vertentes focamos na gastronomização e saudabilidade e suas relações com a mídia.