1 ZURBARÁN E O BARROCO ESPANHOL DO SÉCULO XVII
1.2 TENEBRISMO
Em 1627, Zurbarán realizou mais um trabalho em Sevilha para a ordem de San Pablo,
Cristo na Cruz (fig. 1). Como aponta Jeannine Baticle, curadora da primeira mostra individual
do artista em Nova York e Paris, a pintura evidencia o estilo que Zurbarán adotaria em boa
parte de suas obras futuramente. “É o seu primeiro trabalho importante, assinado e datado,
pintado completamente à maneira tenebrista. Foi muito admirado pelos contemporâneos de
34 Resulta significativo el hecho de que actuase como fiador del entonces poco conocido pintor un destacado miembro de la comunidad del convento sevillano; dato éste indicativo de los buenos contactos que tuvo Zurbarán dentro de la Orden de Predicadores, para la cual, como es sabido, trabajó en diversas ocasiones (LARA, 2006: 362).
35And if some of them [the pictures] do not satisfy the said Father prior, they can be returned to me and I agree to accept [the return of] one, two, or more paintings, which I agree to do over again (BROWN, 1987: 2).
36La pintura de Zurbarán obedece precisamente a esas directrices conciliares, que no solamente debió conocer, sino que traslucen a lo largo de su carrera, de modo más intenso en las primeras décadas. Em sus pinturas se cumplen todas y cada unas de las condiciones que el concilio estabelece em cuanto a la finalidade de instruir a los fieles y facilitar la intercesión de los santos mediante la contemplación de los episódios de su vida (RIVERO, 2014: 45).
Zurbarán e, por causa disso, ele foi convidado dois anos depois pela Câmara Municipal de
Sevilha a estabelecer residência naquela cidade”
38(BATICLE, 1987: 55).
O tenebrismo, estilo comum na pintura barroca do século XVII, usa contrastes de luz e
sombra para destacar determinados elementos da pintura. Pela definição, pode parecer o mesmo
que o chiaroscuro do Renascimento (do qual deriva), mas apresenta mais contraste e
dramaticidade
39. As composições dessa técnica geralmente têm poucos elementos, mas o
diferencial é a maneira de utilizar a luminosidade. “Consiste em uma única fonte luminosa
colocada lateralmente para intensificar ainda mais os contrastes, que vêm de longe ou de cima.
É como se o atelier fosse no porão, a atmosfera fosse sombria e as figuras se destacassem no
fundo escuro”
40(TORRES; AVILÉS, 2011: 198).
Como a técnica da qual derivou, o tenebrismo surgiu na Itália, mais precisamente com
as obras contrastantes de Michelângelo Caravaggio. “Com esse artista, a realidade nasce de
uma maneira brutal e gritante. O contraste da luz é a maneira de expressar esse realismo do
modelo. A luz pousa nas formas, nas rugas, no ritmo da expressão”
41(MARTIN, 1963: 30).
Além de destacar determinados detalhes, a corrente estética propiciava uma diferente percepção
das cores: “... a rica variedade de tons de partes sombrias, que os artistas recriavam antes, se
simplifica em áreas de sombra e iluminadas, e, apenas neste último, encontraremos uma
variedade de cores”
42(TORRES; AVILÉS, 2011: 198).
Quando o pintor estava em seus últimos anos de vida, em uma de suas temporadas em
Nápoles (1606-7 / 1609-10), o vice-rei da Espanha, Conde de Benavente, adquiriu e levou ao
país a Crucificação de Santo André e uma pintura que está perdida nos dias de hoje, identificada
como “cabeça degolada” nos seus inventários. O estilo do pintor também ultrapassou fronteiras
com as cópias de Louis Frinson e Battistello Caracciolo, que chegou a vender quadros em
Sevilha
43. Já o primeiro grande representante tenebrista espanhol – e provavelmente, para vários
de seus conterrâneos artistas, o primeiro contato com esse conceito estético - foi Ribera.
38It is his first important signed and dated work painted completely in the tenebrist manner. It was much admired by Zurbarán's contemporaries, and because of it he was invited two years later by the City Council of Seville to establish residency in that city (BATICLE, 1987: 55).
39 TORRES; AVILÉS, 2011: 197
40
Consistente en una sola fuente luminosa colocada lateralmente para intensificar más los contrastes, que llega desde lejos o desde arriba. Es como si el taller estuviese en un sótano, la atmósfera fuese sombría y las figuras se destacasen sobre um fondo oscuro (TORRES; AVILÉS, 2011: 198).
41 Con este artista la realidad nace de forma brutal y descarnada. El contraste luminoso es el camino para expresar aquel realismo del modelo. La luz se posa en las formas, en las arrugas, en el rictus de la expresión (MARTIN, 1963: 30).
42 “La rica gama de matices de las partes sombrías en la que se recreaban los artistas anteriores, se simplifica en zonas en sombra y zonas iluminadas, y solamente en estas últimas vamos a encontrar variedad colorista” (TORRES; AVILÉS, 2011: 198).
Fig. 1. Cristo na Cruz, Francisco de Zurbarán, 1627. Óleo sobre tela, 290 cm x 168 cm, Art
Institute of Chicago
... as relações que se estabeleceram na área naturalista entre o ambiente espanhol, sevilhano em particular, foram determinadas sobretudo pelo envio da Itália de obras de Jusepe de Ribera; primeiramente de Roma, depois, sobretudo, de Nápoles, onde o pintor de origem valenciana, mas de formação italiana madurada no contato e nos caminhos dos recentes exemplos caravaggescos, estabeleceu-se definitivamente a partir de 1616 (SPINOSA, 1998: 61)
Para ter acesso ao acervo pictórico caravaggesco e suas ricas referências, era necessário
viajar para a Itália, e nem todos os pintores espanhóis tinham essa facilidade. Nesse sentido, as
cópias e obras de artistas influenciados no país foram de grande valor, pois o tenebrismo só foi
assimilado nos anos seguintes ao envio das obras de Ribera a Espanha
44. “Analisando o grupo
dos seguidores mais importantes de Caravaggio, é significativo que apenas muito poucos
tenham na verdade conhecido o artista pessoalmente e que a fase decisiva do reconhecimento
da sua obra tenha começado apenas algum tempo depois da sua morte, no decurso das décadas
de 1620 e 1630” (SCHÜTZE, 2017: 308).
Fig. 2. Santo André, Jusepe de Ribera, 1615-20. Óleo sobre tela, 136 cm x 112 cm, Quadreria
dei Girolamini
Aos artistas que permaneciam na Península Ibérica, tendo a Igreja como principal
mecenas, restava adaptar o estilo à arte religiosa: “estavam necessariamente limitados às lições
mais superficiais do caravaggismo, sua fidelidade à natureza perceptível e seu uso dramático
do tenebrismo, e à narrativa devota e literal, relacionada com uma ingenuidade muito no espírito
dos contadores de histórias medievais”
45(SÁNCHEZ, 1987: 39). De acordo com Pérez
Sánchez, essa ignorância “severa e simples, mas profundamente sincera”
46das sofisticações
estrangeiras chegava a dar um “charme único” às pinturas espanholas.
A arte espanhola que derivou do alto contraste caravaggesco realmente se tornou algo
diferenciado, porém tampouco poderia ser um estilo único, já que o tenebrismo adquiriu
características diferentes dependendo dos artistas. Um ponto comum a vários pintores na
Espanha é o apreço pelo naturalismo, tendência estética baseada na observação da realidade.
No caso, um naturalismo também baseado no estilo de Caravaggio, que trocava a observação
direta da natureza por uma manipulação da mesma, através da luz artificial do atelier, mas
reproduzia fielmente volumes e traços de personagens e objetos
47.
Por mostrar a luz como ela é vista, o tenebrismo é associado à lógica cartesiana por
Ramon Torres Martín – ele definiu o estilo como um precursor do impressionismo, que no
45were necessarily limited to the more superficial lessons of caravaggism, its fidelity to perceptible nature and its dramatic use of tenebrism, and to devout and literal narrative, related with an ingenuousness very much in the spirit of medieval storytellers (SÁNCHEZ, 1987: 39).
46 SANCHEZ, 1987: 39
século XIX representaria os efeitos de cor gerados pelas diferentes luminosidades. “Descartes
é o filósofo do tenebrismo, que ama a verdade, alcançando-a plenamente, sem reservas, e vemos
como o impressionismo é colocado diante dele”
48(MARTIN, 1963: 31). Essa busca pela
verdade do filósofo francês também pode ser interpretada como uma necessidade de abandonar
as idealizações e retratar objetos e personagens reais e imperfeitos. É o que se aplica aos quadros
de Velázquez, mais influenciado por Caravaggio em questão de temáticas. “Isso significa não
só uma mudança de estilo na pintura, como os que haviam precedido, mas também uma
mudança de missão na arte. Agora se ocupará de salvar a realidade, que é corruptível, fugaz,
que carrega em si a morte e o próprio desaparecimento” (ORTEGA Y GASSET, 2016: 146).
Zurbarán, por sua vez, adotou o tenebrismo em cenários minimalistas e contrastes, mas
não abandonou o idealismo católico e a serenidade das figuras. A sua obra remete ao heroísmo
dos personagens religiosos, ao belo, ao ideal que deve ser buscado pelos cristãos – e
demonstrado na arte barroca, uma arte que deve revelar o caminho das verdades divinas: “No
barroco, pois, o amor divino significa a libertação triunfante de todas as travas terrestres, a
liberdade que só é possível conseguir através deste amor” (HATZFELD, 1988: 151). Como
define Ramon Torres Martín, o artista parte de uma “contemplação platônica da realidade”
49.
“Em Zurbarán, as sombras se agitam, tecendo um arabesco, muito mais perto da caligrafia dos
primitivos de Siena, bem como do expressionismo moderno, do que se poderia imaginar. Às
vezes, há uma sensação plana em suas pinturas, sem profundidade ou relevo
50(MARTÍN, 1963:
31). O jogo de luz e sombras deu especial dramaticidade ao seu Cristo na Cruz de 1627, que
uniu a influência caravaggesca a uma inspiração na obra Crucificado con Quatro Pregos,
realizada por Francisco Pacheco em 1612
51.
Nesta tela, Zurbarán pinta um esplêndido corpo desnudo, com uma anatomia perfeita, não muito sangrento e calmo após o alto sacrifício. A composição simples é sutilmente dramatizada pela violenta iluminação lateral, que sublinha os volumes esculturais do Crucificado. Sua cabeça de beleza serena se inclina sobre o ombro direito e o tecido de pureza se transforma em dobras quebradas de um branco deslumbrante, tingido de
cinza, o que evita a simetria monótona dos cristos na cruz de Pacheco52 (DELENDA,
2010: 628).
48 Descartes es el filósofo del tenebrismo, que ama la verdad, alcanzándola plenamente, sin reservas, y vemos como el impressionismo se situa frente a él (MARTIN, 1963: 31).
49 MARTÍN, 1963: 31
50En Zurbarán las sombras corren jugueteando, tejiendo un arabesco, mucho más cercano de la caligrafia de los primitivos sienenses, así como del expresionismo moderno, de lo que pudiera imaginarse. A veces hay en sus cuadros un sentimiento plano, sin profundidade ni relieve (MARTÍN, 1963: 31).
51 DELENDA, 2010: 628
52En este lienzo, Zurbarán pinta un espléndido cuerpo desnudo, de perfecta anatomía, poco sangriento y como sosegado después del sumo sacrificio. La sencilla composición se dramatiza sutilmente por la violenta iluminación lateral que subraya los volúmenes esculturales del Crucificado. Su cabeza de una serena belleza se inclina sobre
A obra de Francisco Pacheco inspirou diversos artistas não apenas pela qualidade, mas
também por se enquadrar exatamente nos padrões do clero. Com a orientação de autoridades
eclesiásticas, o pintor ficava a par de todas as regras para a arte religiosa, e além de informar
colegas de academia as reuniu em um tratado completo, Arte de la Pintura, de 1638. Uma
dessas regras seria retratar o martírio do Salvador com quatro pregos, prendendo as mãos e pés
à cruz
53.
Esse defensor ativo dos direitos da profissão e trabalhador entusiasmado preocupa-se com a criação de um projeto educacional mais universal para o ensino de arte. Não é em vão que seu maior legado é ter sido mestre dos mestres Herrera O Velho, Diego
Velázquez e Alonso Cano. Ciente disso, o manuscrito Arte de la Pintura lega à
posteridade um compêndio de seu trabalho didático, sendo publicado postumamente
com grande destaque entre os profissionais54 (BAEZA, 2016: 15).
O Cristo crucificado sobre um fundo escuro, sem a companhia de Maria, Madalena e
outras testemunhas, também era comum no barroco europeu por ser uma determinação da
Igreja. “Os pintores não eram mais incentivados a retratar a Crucificação como uma cena
movimentada, e às vezes quase como uma cena de multidão. Cristo na cruz deveria ser retratado
sozinho, em um imenso, histórico e definitivo isolamento”
55(RUSSELL, 1987: 39). O
minimalismo por imposição era a oportunidade perfeita para exercitar os jogos de luz da técnica
tenebrista, e Zurbarán a aproveitou em várias obras posteriores com a mesma temática. “A
maioria dos crucificados de Zurbarán é caracterizada pela luz retumbante que banha a figura de
lado em um fundo escuro, quase preto. A cruz e a figura de Cristo ocupam quase toda a tela,
embora algumas vezes haja a figura de um doador ou, como na versão do [Museu do] Prado,
um pintor apareça”
56(RIVERO, 2014: 48).
Outro aspecto comum a muitos Cristos crucificados barrocos é a serenidade, tão
presente nos retratos de martírio de Zurbarán: “Delicado por natureza, ele não queria mexer
el hombro derecho y el paño de pureza se abulta en pliegues quebrados de un deslumbrante blanco matizado de grises lo que evita la monótona simetría de los Cristos en la Cruz de Pacheco (DELENDA, 2010: 628).
53 BATICLE, 1988: 96
54Este activo defensor de los derechos de la profesión y entusiasta trabajador se preocupa por la creación de un proyecto educativo mas universal para la ensenanza de la plástica. No en vamo su mayor legado es haber sino maestro de los maestros Herrera El Viejo, Diego Velázquez y Alonso Cano. Coonsciente de ello, lega la posteridad el manuscrito Arte de La Pintura como compendio de su labor didáctica, publicándose póstumamente con gran predicamento entre la profesión (BAEZA, 2016: 15).
55No longer were painters encouraged to portray the Crucifixion as a crowd scene, and sometimes almost as a mob scene. Christ on the cross was to be portrayed alone, in an immense, historic and definitive isolation (RUSSELL, 1987: 39).
56La mayor parte de los Crucificados de Zurbarán se caracterizan por la luz rotunda que baña la figura desde el lateral sobre um fondo oscuro casi negro. La cruz y la figura de Cristo ocupan casi todo el lienzo, aunque en algunas ocasiones aparece la figura de un donante o, como la versión del Prado, um pintor aparezca (RIVERO, 2014: 48).
com os horríveis fatos físicos da Crucificação - as multidões exultantes e suadas, soldados
brutais e as abomináveis preliminares à lenta tortura final. Convinha perfeitamente a ele que
Cristo emergisse de uma escuridão não povoada, sem uma marca em seu corpo e uma tanga de
alta costura que parecia ter saído dos tecelões”
57(RUSSELL, 1987: 39). Além da quase
ausência de sangue, o messias não transparece sofrimento no semblante, o que significa que o
martírio foi superado por sua proximidade com Deus – uma inspiração para os fiéis ao
contemplarem as obras devocionais. Mesmo Velázquez, mais conhecido por suas pinturas de
corte, realizou obras com esse padrão, como seu Cristo de São Plácido (fig.3), de 1632.
“Quando o rei – caso bem pouco frequente – lhe pede um Cristo crucificado, Velázquez procura
humanizá-lo ao extremo e colocá-lo do modo mais cômodo possível em uma cruz, cobrindo a
metade do rosto com os cabelos para evitar qualquer expressão de sofrimento” (ORTEGA Y
GASSET, 2016: 150).
Fig. 3. Cristo de São Plácido, Diego Velázquez, 1632. Óleo sobre tela, 248 cm x 169 cm,
Museo del Prado
57Zurbaran was just the man for that. Delicate by nature, he did not want to mess with the hideous physical facts of the Crucifixion - the gloating, sweaty crowds, the brutal soldiery and the abominable preliminaries to the slow final torture. It suited him perfectly that Christ should emerge from an unpeopled darkness, with not a mark on his body and a couture loincloth that looked as if it had come fresh from the weavers