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A tensão entre direitos humanos e direito penal na propostas de proibição da tortura

CAPÍTULO 2 VARIAÇÕES EM TORNO DE UMA PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL

2.2. A tensão entre direitos humanos e direito penal na propostas de proibição da tortura

O uso da tutela penal para garantir a integridade física e psicológica ante a tortura era uma escolha tida como óbvia para os constituintes. Mesmo quando foram apresentadas outras medidas, como a reparação indenizatória, a criminalização persistia como elemento central da proposta. Um conjunto de fatores parecem explicar a ausência de questionamentos quanto a essa opção. Primeiramente, o termo “tortura” já era associado ao direito penal na legislação brasileira, na forma de circunstância agravante e qualificadora do crime de homicídio. No passado, essa associação também estava presente, desde quando a tortura designava um procedimento juridicamente válido no exercício do poder punitivo estatal. Em segundo lugar, nos anos 1980 havia uma tendência internacional para redefinir o tratamento jurídico dispensado à tortura, e a opção apresentada também era criminalizante. Ademais, a Convenção da ONU sobre o tema, que se inseria nesse movimento, teve um grande impacto no Brasil, em virtude

297 Cf. Atas da Subcomissão Ib, p. 70 (BRASIL, 2013a). O caso Rubens Paiva foi lembrado mesmo por um antigo aliado da ditadura, Mário Assad (PFL/MG), cf. Sugestão 5542 e Emenda 10692, Fase M (justificativas) (BRASIL, 2013b).

298 BRASIL, 1988h, p. 16. A impunidade dos agentes da ditadura também foi criticada nas justificativas da Sugestão 10401, da União dos Militares Não-Anistiados (UMNA); da Sugestão 10882, da Liga Brasileira de Defesa dos Direitos Humanos; e da Sugestão 10937, da Associação de Defesa dos Direitos e Pró-Anistia dos Atingidos por Atos Institucionais (Ampla) (BRASIL, 2013b).

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das denúncias da tortura de presos políticos e do esforço do governo Sarney para se dissociar dessa prática. Por fim, de modo mais amplo, havia uma mentalidade disseminada que concebia o direito penal como um meio robusto para se defender os direitos humanos (PIRES, 2004) – e a demanda para proibir a tortura na nova Constituição, como crime, era articulada como uma defesa de tais direitos.

De modo simplificado, os direitos humanos representariam pretensões jurídicas contra interferências ilegítimas numa esfera de autonomia ou a prestações materiais que garantam uma maior capacidade de ação para seus titulares. Por sua vez, a tutela penal leva, via de regra, à distribuição de bens negativos, na forma de estigmas e penas aflitivas, àqueles que infringem as suas interdições. Portanto, o uso do direito penal para garantir direitos humanos cria uma situação paradoxal: essa garantia exige a imposição de sofrimento de terceiros, sem que haja qualquer forma efetiva de satisfação dos direitos, exceto se for admitida a questionável eficácia dissuasória das penas (PIRES, 2004).

Porém, segundo Álvaro Pires, há diferentes possibilidades de se articular a proteção de direitos humanos por meio do direito penal, que parecem ter graus de compatibilidade igualmente distintos. Há a hipótese de se insistir no aumento das penas aflitivas, associando-se, frequentemente, a medida da valorização do bem jurídico tutelado – ou à demanda subjacente por reconhecimento e garantia de direitos – à maior ou menor quantidade de imposição de sofrimento prevista na norma criminalizadora. Em segundo lugar, há uma alternativa que não deveria ser confundida com a anterior:

as demandas de intervenção do sistema nos campos onde ele faz pouco ou nada. Nas situações de corrupção e violência policial, por exemplo, a demanda não está centrada na ideia de produzir mais sofrimento: ela deplora o fato de que as normas de comportamento não estejam sendo sustentadas institucionalmente por sanções de tipo algum. Essas expectativas normativas de comportamento estão portanto em perigo, pois não são validadas por instituições normativas organizadas (sejam elas as próprias comissões disciplinares da polícia, por exemplo). (PIRES, 2004, p. 59)

Por fim, haveria ainda a possibilidade representada pelas demandas que criminalizam novos comportamentos sem que se enfatize a inflição de sofrimentos, mas sim a generalização de novas expectativas normativas. Buscam “orientar normativamente os comportamentos” (PIRES, 2004, p. 58). Diante dessas possibilidades, as duas últimas parecem nitidamente apontar para uma maior coerência

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entre direito penal e direitos humanos, ainda que a operacionalização prática dessas demandas no âmbito sistema de justiça penal possa tomar rumos opostos.

Na ANC, algumas críticas às propostas de proibição da tortura pareciam se fundar nessa tensão entre direitos humanos e direito penal, como aquelas direcionadas contra a impossibilidade do livramento condicional, a imprescritibilidade e, mesmo, a inafiançabilidade. O comentário de Nilo Batista sobre o debate constituinte em torno da tortura também parece apontar nesse sentido, quando afirma, em tom crítico, que a direita, ao propor a equiparação dos crimes hediondos e do tráfico de drogas, por exemplo, e a esquerda, ao propor a proibição da tortura, igualavam-se em sua atitude em relação à tutela penal. Estariam “essencialmente unidos na crença de que a criminalização severa de uma conduta [constituía] um expediente eficaz para evitá-la” (BATISTA, 2003a, p. 344).

No entanto, ainda que houvesse contradições entre as justificativas humanistas de muitas propostas e seus aspectos punitivos, devem ser feitas algumas ressalvas quanto a essas críticas e algumas distinções entre as várias articulações discursivas dessas demandadas jurídicas. Inicialmente, a imprescritibilidade e a insuscetibilidade de anistia foram demandadas no contexto da tortura política ante a qual o direito vigente, praticamente, não possuía qualquer efetividade, devido à conivência das diversas instituições públicas durante a ditadura civil-militar. Na ANC, essa associação parece ter sido mantida na proposta do TNM/RJ, que, mesmo em relação aos agentes da repressão política, não enfatizava a punição rigorosa, mas a mera investigação e julgamento regulares das violações. Assim, vedar a prescrição e a anistia da tortura era condição de possibilidade para a efetividade do direito, ainda que apenas após a desconstituição da imunidade penal forjada pelo regime autoritário para os seus próprios agentes. Um liame semelhante parecia estar presente nas propostas centradas na eventual prática futura da tortura política, como aquelas apresentadas por Ibsen Pinheiro (PMDB/RS) e Lysaneas Maciel (PDT/RJ). Pressupunham que a completa impunidade era a regra depois de golpes de Estado e de regimes autoritários.

Entretanto, fora do contexto da tortura política, a impossibilidade de anistia e prescrição perdia esse significado específico. A anistia costumava ser concedida apenas para crimes políticos e a prescrição não parecia representar um problema para se garantir a responsabilização de policiais que torturavam presos comuns. Assim, a extensão das medidas para a tortura comum acabava sendo associada exclusivamente à gravidade, ao repúdio da prática, ampliando, temporalmente, a possibilidade de se

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infligir penas aflitivas. Alguns constituintes percebiam a inadequação de um tratamento único para a tortura política e a tortura comum, mas parecia prevalecer a preocupação com a igualdade de proteção dos diferentes grupos de torturados. O próprio viés igualitário do constitucionalismo parecia favorecer esse tratamento comum, em norma geral.

Nas propostas de equiparação de outras condutas à tortura, como o terrorismo e o tráfico de drogas, também havia esse deslocamento das vedações de anistia e prescrição em relação ao contexto original da tortura política. Eram reduzidas a medidas draconianas para crimes de extraordinária gravidade. Na reprovação simbólica da tortura por meio de sua proibição constitucional, havia a referência a esse contexto original. Porém, ao desconsiderarem o sentido instrumental das propostas, os defensores dessa perspectiva incorriam na mesma situação, em que as medidas sinalizavam apenas rigor punitivo.

Quanto à inafiançabilidade da tortura, sua proposição parecia seguir uma lógica diferente. Do ponto de vista instrumental, expressava uma ideia de justiça reduzida à privação de liberdade, ainda que antes da condenação, a partir da presunção de periculosidade de suspeitos de crimes particularmente graves, que não poderiam obter liberdade provisória por meio do pagamento de fiança. Entretanto, a proposta estava bastante adequada ao que já era previsto pela legislação da época: todos os crimes de certa gravidade, punidos com pena de reclusão, eram inafiançáveis. Porém, deve se ressalvar que o Código de Processo Penal vigente, nesses casos, restringia a liberdade provisória, mas não a impossibilitava.

Diante do exposto, percebe-se que considerar a proposta de proibir a tortura na Constituição, como crime sem fiança, prescrição e anistia, como mera demanda por rigor punitivo exacerbado é um equívoco. Uma parcela significativa visava possibilitar que as expectativas normativas contra a tortura fossem minimamente sustentadas pelas instituições públicas.

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CAPÍTULO 3 – ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E RESISTÊNCIAS POLÍTICAS