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CAPÍTULO I – ENTRE TRILHOS E ATOLEIROS: OLHARES PARA O CRESCIMENTO DA

1.2 TENSÕES ENTRE OS TRANSEUNTES E NOVOS FLUXOS

A dinâmica do fluxo de pessoas das ruas próximas ao porto era intimamente ligada ao cotidiano das carroças e bondes. Em dezembro de 1884, aplicou-se uma multa a José Vieira Martins, que estava sentado no Chafariz próximo ao Mercado Provisório (que também era conhecido como Banca do Peixe), local que substituía as ―casinhas‖ onde se vendia peixe fresco e verduras. O próprio Guarda do Mercado, Manoel Costa, foi quem o multou.

Por meio de um requerimento enviado à Câmara, esse munícipe apresentou as razões pelas quais não pôde se sujeitar à multa imposta pelo Código de Posturas:

Achando-se o supplicante assentado é verdade na pedra onde pousa o chafariz, logar esse muito procurado por outros para depositos de bandejas com doces, frutas, quando foi intimado pelo guarda á multa de 30$000rs. O supplicante ignora qual o artigo do Regulamento da Praça que prohiba a elle e outros assentarem-se ao redor do chafariz, e reconhecendo ser injustiça a multa pelo escrupuloso zelo do Guarda, espera de VV.SSas. ser a multa alliviada.36

O mercado ficava na Rua da Praia, próximo às pontes para embarque e desembarque do porto. Por si só era uma região de grande movimento de carroças e pessoas, intensificado pela presença do Chafariz da Banca, local onde frequentemente pessoas abasteciam seus estoques de água potável.

O requerimento também citava o ato costumeiro, de diversos vendedores ambulantes – os taboleiros –, de depositarem suas bandejas no local onde o

36 SANTOS. Câmara Municipal de Santos. Requerimentos de recurso a multas aplicadas pelo fiscal. Documento 040, Série 3.4.6. Acervo Fundação Arquivo e Memória de Santos.

autuado estava sentado, indicando que o local também era usado para o repouso de tábuas de doces e frutas. O requerimento foi deferido, mas o suplicante foi perspicaz: disse que foi autuado pelo art. 158, que diz respeito ao desacato a funcionário público, embora depois citasse o hábito daqueles trabalhadores que sempre por ali repousavam suas bandejas de trabalho. Desse modo, não seria possível saber o motivo da autuação de José Vieira: se por impedir a livre circulação de um local bastante movimentado ou por uma rusga com o guarda que lhe aplicou a multa. Uma hipótese é a de que José poderia ser influente a ponto de medir forças com o funcionário da Câmara. Entretanto, estava bastante claro em seu discurso a observância do costume daqueles taboleiros, que lhe pareceu apropriado citar.

A cidade de Santos do segundo quartel do século XIX não diferia dessa proposição, pois a população estava em uma situação de constante confronto de seus costumes frente às demandas do Poder Público. Com o aumento do movimento portuário, toda essa região se tornou foco de atuação das fiscalizações das Posturas pela municipalidade.

Marc Ferrez, em 1889, registrou inúmeras paisagens urbanas que em menos de cinco anos não existiriam mais. Já era notório nessa ocasião o contrato celebrado pela municipalidade e a Companhia Docas para o aterro de toda a região em questão. Por isso, essa imagem e esse ângulo teriam um apelo simbólico bastante forte (Figura 4).

Ao contrário do que se planejava para a cidade, a fotografia remetia a uma ―cidade-porto‖. O ângulo retratado, escolhido por Ferrez, foi o da Rua da Praia; além dos navios, trilhos, carroças e transeuntes, via-se ao fundo o Mercado Provisório e alguns dos locais de circulação citados até agora. A Câmara estava estabelecendo a prioridade de uso das ruas através das demandas. Apesar da dúvida gerada no requerimento de José Vieira Martins contra a multa que havia recebido, o acúmulo de vendedores ambulantes nessa região era algo que marcava sua escrita e seu discurso, sendo uma brecha para que sua absolvição estivesse atrelada ao movimento intenso naquele local.

Na década de 1890, a intensa atividade portuária e a atuação da Companhia Docas teriam papel fundamental na alteração da fisionomia dessa cidade. ―Ao apropriar-se da faixa de marinha demoliu, aterrou e construiu‖. 37

Figura 4 - Rua da Praia e Mercado Provisório, por Marc Ferrez, 1901.38

Com essas ações fez desaparecer lugares, objetos e usos, como as canoas que aportavam nesse exato ponto para abastecimento do Mercado. Elas faziam o abastecimento local e não mais atracariam na área central da cidade. ―Os muros do cais fizeram com que o mar ficasse, nessa região, invisível para a cidade portuária‖.39 A cena retratada na imagem era, portanto, elemento característico da

cidade na baliza temporal do estudo e não poderia ser ignorado. O porto era a cidade; a cidade era o porto.

37 LANNA, Ana Lúcia Duarte. Uma cidade na transição: Santos 1870 - 1930. São Paulo: Hucitec, 1996, p.95.

38 Acervo Fundação Arquivo e Memória de Santos.

Foi também nesse período que a municipalidade começou a intervir no espaço da rua de forma mais incisiva. A insistência a partir da década de 1880 em intimar os munícipes a construírem suas testadas tinha um motivo prático que ia além da criação de bocas de lobo para escoamento das chuvas: a Câmara queria estabelecer normas para o ―estar na rua‖,40 a fluência dos caminhos e espaços

determinados para carroças, bondes e pessoas.

Com habitações pequenas, úmidas e com pouca luz mesmo durante o dia, a rua era o local de encontro e sociabilidade.41 A Câmara Municipal, neste espaço tentava estabelecer o seu local de atuação, seu ―próprio‖. ―Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio em um mundo enfeitiçado com os poderes invisíveis do Outro‖.42 Por essa razão, a Câmara Municipal personificava-se no

instrumento legal chamado Código de Posturas, materializado por funcionários fiscalizadores e, com isso, tentava estabelecer seu ―próprio‖ em uma cidade com diversos poderes invisíveis da alteridade, do costume, das práticas residuais.

Além disso, a separação dos bairros residenciais e comerciais, ou seja, um zoneamento da cidade propriamente dito aconteceria em tempos republicanos e interferiria ativamente e diretamente no espaço urbano; nesse momento o que existia era uma cidade múltipla e diversa, tanto em sua gente como em suas atividades, com comissários e firmas exportadoras de café, representantes de uma elite, que conviviam em um espaço diminuto com negros (forros ou ainda escravizados) e imigrantes pobres de diversas partes da Europa, no caso de Santos, especialmente de Portugal e Espanha.

Em outras palavras, comerciantes ambulantes e escravos de ganho; carroceiros e cocheiros de bondes; ex-escravos e brancos livres despossuídos; elites, novas e já estabelecidas na cidade há tempos; todos disputam o mesmo espaço dentro de um centro urbano que cada vez tornava-se mais ―apertado‖, pois a cidade para além do Monte Serrat, no momento, ainda estava em gestação. Eram

40 Esse assunto será mais bem explorado no Capítulo 2. 41 GARDEN, Maurice. Histoire de la rue. Pouvoirs

. Revue française d‘études constitutionnelles et politiques. La rue, n°116, jan. 2006, p.5-17. Disponível em: <http://www.revue-pouvoirs.fr/Histoire-de- la-rue.html>. Acesso em: 12 out. 2014.

esses poderes da alteridade que faziam com que o cotidiano fosse inventado e reinventado diariamente.