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2. ACORDO ADMINISTRATIVO COMO VETOR DE MÚLTIPLAS TENSÕES

2.3. Tensões com Isonomia

O Direito tem a vocação da generalidade e, por isso, parte da afirmação de uma igualdade essencial entre os indivíduos, desprezando o acidental, que os desiguala. É da expressão de que todos são iguais perante a lei, disposta no caput do art. 5º da Constituição, que se obriga ao Estado atuar à luz de uma linearidade, abdicando os privilégios por uma boa dose de contenção. Quando o art. 37 da Constituição Federal imputa sua observação pela administração pública, o que se pretende é “proscrever qualquer tratamento diferenciado entre

173 BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding Regulation Theory, Strategy and Practice. 2ª ed. Porto Alegre: bookman, 2010. p. 18.

174 “The question that remains, therefore, is when we can expect significant diferences in information between

private parties and regulators to exist. And the answer is that private parties should generally enjoy an inherent advantage in knowledge. They, after all, are the ones who are engaging in and deriving benefits from their activities; in consequence, they are in a naturally superior position to estimate the nature of the risks created and the costs of their reduction. For a regulator to obtain comparable information would often require continuous observation of parties’ behavior, and thus would be a practical impossibility”. (REVESZ, Richard L. Foundations of Environmental Law and Policy. LexisNexis. 1996. P. 165-166)

os administrados, que não se fundamente em lei prévia”175. Portanto, se idênticas situações de

fato merecem o mesmo tratamento, a conclusão reflexa é a de que discriminação, tudo mais igual, não é, prima facie, um valor recepcionado pela Carta Política, nomeadamente no espectro de atuação da administração pública.

O poder público, quando firma um acordo administrativo, quer substitutivo, quer integrativo, está a estabelecer um precedente. Isto é, todo aquele que se veja em conflito (ou em potencial conflito) com a administração pública na mesma situação ou em outra muito similar terá, em tese, o pleno direito de buscar para si a mesma solução, por decorrência da isonomia. Em razão disso, antes de firmar com um particular determinado acordo, é necessário que o Poder Público averigue se o conflito, incerteza jurídica ou irregularidade em questão é uma situação individualizada ou algo repetitivo, em que outros agentes privados se enquadram. Com efeito, deve levar isto em conta não apenas por pressupor sua responsabilidade de firmar o mesmo acordo com particulares em situações semelhantes, como também para verificar se será viável, técnica e financeiramente, o cumprimento de tais acordos com os demais.

A visão acima parte dos olhos da administração. Ao cambiar para a perspectiva do particular, o cenário de perseguição da isonomia se acirra. Isto porque, recentemente, foi editada a Medida Provisória (MP) nº 881/2019, transformada na Lei nº 13.874/19, com o objetivo de fornecer elementos para o aprofundamento da compreensão da livre-iniciativa, um dos valores fundantes da ordem econômica brasileira (cf. art. 170 da CF). Ao estabelecer diversas garantias para a plena efetividade da referida livre-iniciativa, a Lei nº 13.874/19 traz no seu art. 3º, inc. IV176 texto que reafirma a necessidade de tratamento isonômico de órgão e de entidades da administração pública quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica. Assim, este dispositivo acaba por, finalisticamente, escandir ainda mais a aplicação das considerações pontuadas no parágrafo anterior, sob pena de malferimento da ordem legal estabelecida, com reflexos indenizatórios em favor do particular, inclusive.

175 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, 12ª. Edição, Rio de Janeiro:

Forense, 2002. p. 91.

176“Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição: [...] IV - receber tratamento isonômico de órgãos e de entidades da administração

pública quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica, hipótese em que o ato

de liberação estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores, observado o disposto em regulamento; [...]”. (grifou-se)

Sem prejuízo de outros microssistemas jurídicos ou sociais, a percepção da presença de (ou falta de) isonomia possui especial relevo na atividade concorrencial quando diante da consensualidade administrativa-decisória. Endossar a prática sem se aperceber das desvantagens é, como já afirmamos, temerário, para não dizer ilegal. Antes de qualquer investida objetivando o acordo com repercussão concorrencial, se recomenda a consideração de quatro pontos levantados por Andrew Popper177. Primeiro, deve se sopesar que sistemas consensuais podem ser um terreno fértil para as piores formas de conspiração direcionadas à contravenção da legislação antitruste. Segundo, a abertura dos sistemas consensuais pode autorizar o abuso e a conseguinte criação de sérias distinções de poder no mesmo ambiente de mercado. Terceiro, ao se aplicar programas consensuais específicos, autorizados pela legislação, um grande cuidado deve ser tomado para garantir que os pulverizados centros de decisão da administração pública sigam as políticas públicas que deram ensejo às suas criações, de modo a evitar vieses e distorções decisórias. Quarto, a consensualidade requer que sejam repensadas as noções básicas do que é justo. Afinal, pela transação se está a substituir um modelo estabelecido que regrou o acesso ao mercado de diversos players, o qual passa a ser vulnerável a brutais edições.

O grande desafio — sob os mais variados prismas subjetivos que se possa analisar — continua a ser a aquilatação da similitude das situações postas sob o escrutínio do agente público. Nem sempre ela é objetiva ou clara, afinal pequenas distinções podem importar em resultados verdadeiramente antagônicos, afora o fato de que o decurso do tempo, e suas intempéries, são capazes de transformar necessidades e utilidades públicas, com reflexos imediatos frente à intervenção sobre a atividade privada178. Sim, como Posner alerta, é verdade

177 POPPER, Andrew F. An Administrative Law Perspective on Consensual Decisionmaking. Administrative Law

Review, Vol. 35, nº 3 (Summer 1983), American Bar Association, pp. 255-318. p. 255-256. O mesmo autor, se remete às recomendações adotadas pela “Administrative Conference of the United States (ACUS – June, 1982)” ao afirmar que: “In deciding whether to use consensus process, the agency should consider the likelihood that

‘consensus process… would limit output, raise prices, restrict entry, or otherwise establish or support unreasonable restrains on competition’”. (Id. p. 286)

178 Em sentido similar, Floriano defende o quanto segue: “A ninguém é dado desconhecer que a atividade

administrativa, muita vez, acaba por atender interesses privados. Assim é em diversos exemplos tomados ao acaso. Quando, na realização da atividade fomentadora, a Administração pública estabelece algum incentivo fiscal ou alguma proteção tarifária. Está obviamente a favorecer os atores privados envolvidos neste setor empresarial favorecido. Isto apenas não implica em beneficiamento ou em iniquidade qualquer. Tal procedimento é plenamente legítimo desde que o ato da Administração tenha motivação embasada em interesse público transcendente (proteção da indústria nacional, preservação de postos de trabalho, criação de tecnologia própria etc.). Dizemos tudo isto para deixar bem fixado que o simples fato da atividade administrativa acarretar benefícios e proveitos indiretos extensivos a apenas alguns administrados não torna inquinados de nulidade nem faz imorais os atos do poder público. Afinal, como a atividade da Administração Pública não se realiza estanquemente, se desdobrando dentro do mundo da vida, os seus reflexos atingem diferentemente os administrados” (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A Possibilidade de Restrição de Acesso a Bens Públicos de Uso Comum por Questões

que “às vezes circunstâncias específicas do caso dominam completamente o processo decisório”179, mas uma grande questão subjacente continua indefinida no particular dos acordos administrativos, a saber: quando este tipo de caso específico realmente ocorre?