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TEODORETO DE CIRRO

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3 EXEGESE PRÉ-MODERNA

3.4 TEODORETO DE CIRRO

Por coincidência, o outro comentário patrístico grego completo conservado sobre o livro do Êxodo, tem como autor um bispo que teve participação ativa nos embates teológicos dos quais Cirilo de Alexandria foi protagonista. Trata-se das

Perguntas sobre trechos difíceis da Bíblia de Teodoreto de Cirro.

3.4.1 Introdução

Nascido no final do século IV perto de Antioquia, Teodoreto foi consagrado ao serviço de Deus pelos seus pais, em agradecimento por seu nascimento, considerado por eles como um dom de Deus, como refletido no seu nome (seus pais já tinham idade avançada). Não temos muitos detalhes sobre a sua educação, mas ela foi excepcionalmente rica: além de sua língua materna, o siríaco, ele dominava o grego e o hebraico; também a sua obra demonstra um conhecimento aprofundado da literatura grega pagã e cristã.

Quando seus pais morreram, ele distribuiu os bens da família aos pobres e entrou para um mosteiro, perto da cidade de Apameia, no sul de Antioquia (hoje na Síria). Viveu lá a vida monástica até sua ordenação como bispo da cidade de Cirro, ao nordeste de Antioquia (hoje na Turquia, na fronteira com a Síria).

Na sua diocese, assim como Cirilo, ele encontrou muitos heréticos que tratou de trazer de volta para a ortodoxia. Porém, contrariamente a Cirilo, ele agiu de maneira pacífica. Sua erudição fez com que ele se tornasse um dos expoentes do partido antioqueno no embate com os alexandrinos na crise nestoriana. Mas a sua personalidade era bem diferente da do impetuoso patriarca de Alexandria, pois ele

era mais propenso a compromissos e negociação, como ressalta I. Pásztori-Kupán (2006, p. 5):

Aquela vasta área sempre tinha sido infestada de hereges. Enfrentando muitas vezes ameaças à sua vida, Teodoreto trouxe milhares de cismáticos de volta para o corpo da Igreja, o que era atípico para eclesiásticos contemporâneos (incluindo Cirilo e Nestório), que preferiam usar a força militar para destruir fisicamente as heresias junto com os heréticos.

Assim, no começo da crise ele tentou convencer Nestório a não provocar confusão na Igreja por causa de problemas de vocabulário (o embate sobre a natureza em Jesus se focalizou no título de ‘Mãe de Deus’ dado ou negado a Maria). Durante o concílio de Éfeso, ele foi solidário com seus conterrâneos asiáticos, mas logo depois do concílio, ele se tornou artesão da conciliação, que deu resultado em 433 quando Cirilo e o patriarca João de Antioquia assinaram uma fórmula de união, provavelmente em boa parte redigida por Teodoreto. Os asiáticos, porém, tiveram que concordar em confirmar a condenação de Nestório. Em 449, um novo concílio, chamado posteriormente de Latrocínio de Éfeso, o excomungou, mas a excomunhão foi revogada no concílio de Calcedônia em 451.

Além de algumas obras polêmicas contra escritos de Cirilo de Alexandria, Teodoreto compôs uma grande quantidade de obras exegéticas: sobre o Cântico dos Cânticos, Daniel, Ezequiel, os Doze Profetas menores, os Salmos, Isaías e Jeremias, as Cartas de Paulo. Depois do concílio de Calcedônia, ele compôs um livro de Perguntas sobre trechos difíceis do Octateuco, dos livros de Reis e Crônicas.

3.4.2 A linguagem da exegese

Assim como os Gláfyra de Cirilo, as Perguntas não contêm uma introdução propriamente dita, apenas começam com um pequeno parágrafo introdutório. Parte do vocabulário técnico é idêntico ou parecido com o de Cirilo de Alexandria, pois também encontramos o advérbio ainigmatôdôs e a expressão apophênai saphê (esclarecer), que lembra o diasaphein do alexandrino.

Aparecem, porém, algumas novidades. A começar pela ideia de que os lugares que precisam de interpretação são apenas ‘questões aparentes’ (dokounta

zêtêmata). Com tal pressuposto, não há de admirar que Teodoreto não use

exegeta no intuito de criar sentido. O intérprete deve resolver (dialuein) as questões aparentes, ou seja, decompor algo complexo em unidades mais simples, desdobrar o significado (anaptussein ton noun), no sentido de estender para deixar visível o que era invisível porque dobrado, mostrar as causas (dêloun tas aitias), o que significa torná-las visíveis, explicar a significação escondida na letra (epideiknunai

tên en tô grammati kekrummenên dianoian), prover a interpretação das coisas ditas

enigmaticamente (tôn ainigmatôdôs eirêmenôn hermêneian). Todas essas

expressões apontam apenas a tarefa de possibilitar que o leitor veja coisas que estão no texto, mas que, por alguma razão, ele não consegue ver.

Na segunda parte do parágrafo introdutório, Teodoreto toca num assunto que não foi nem aludido por Cirilo, a saber, a diferença entre interpretação correta e incorreta, ou, para usar o vocabulário de Teodoreto, entre o questionamento feito de maneira ímpia (dussebôs) e o questionamento feito por amor ao estudo (philomathôs). E é interessante notar aqui que não é uma diferença entre quem busca aprender de maneira correta e quem busca aprender de maneira correta. As interpretações erradas são uma manifestação de heresia, e não apenas um saber equivocado. E se examinamos em que consiste a impiedade, a heresia a respeito da interpretação da Bíblia, encontramos algo que está em pauta até hoje nas discussões sobre interpretação da Bíblia: a infalibilidade e inerrância da Bíblia. Ser ímpio é pretender que a Bíblia afirma coisas incorretas (ouk ortha) – adjetivo que pode ter uma conotação dogmática, como na palavra composta orthodoxos - ou contraditórias (enantia), sendo que na verdade a Bíblia apenas contém passagens difíceis (epaporoumena).

Em conformidade ao que se espera de um exegeta antioqueno, Teodoreto parece deter-se mesmo no campo da busca da intentio auctoris/operis, que supõe uma atividade de explicação, mas não de criação ou de mudança de sentido. Além disso, ele tem uma visão do que é correto ou não que pode envolver critérios dogmáticos além de critérios lógicos. Veremos a seguir, como isso se concretiza na interpretação do capítulo 3 do livro do Êxodo.

3.4.3 O resultado da exegese

Assim como Cirilo, Teodoreto não comenta o texto do capítulo inteiro, mas, enquanto Cirilo pegou toda uma parte contínua e a citou e parafraseou para depois tecer seu comentário cristológico, Teodoreto pegou três questões para elucidá-las, a saber: a identidade de quem aparece no fogo, o mistério da sarça, e a remoção das sandálias.

A primeira questão surge da mudança de ‘mensageiro’ para ‘senhor’ no texto da Septuaginta (YHWH no texto hebraico). Apesar de sua formação antioquena, e de não ter apontado uma orientação geral cristológica para sua interpretação, Teodoreto baseia nessa dupla identidade aparente sua interpretação de o interlocutor de Moisés ser Jesus, Deus Filho. Nesse caso, não se pode falar em interpretação tipológica, pois não se trata de uma prefiguração, mas é o próprio Deus Filho que aparece a Moisés.

A segunda questão envolve o espinheiro. Teodoreto vê no queimar e não consumir-se do espinheiro três possíveis alegorias. Uma é puramente judaica, e é até mencionada nos comentários judaicos, a opressão que não destrói Israel. Uma é puramente cristã: a concepção de Deus filho que não destrói a virgindade de sua mãe. E a terceira é universal: a força do amor de Deus. É interessante notar que o autor deixou coexistir interpretações tão diferentes, lembrando que ele afirmou que existiam interpretações erradas. E uma interpretação cristã a respeito de um ponto importante como a virgindade de Maria não fez com que outras interpretações não fossem possíveis. Nisso, ele se aproxima do comentário judaico que estudamos um pouco antes, que também deixou coexistir interpretações até contraditórias.

A terceira questão, na qual Teodoreto rejeita interpretações alheias, ficou um pouco confusa: “Alguns dizem: para expulsar as preocupações cotidianas ligadas à vida mortal, pois os couros das sandálias são mortos. Outros: para santificar a terra pelos pés nus. Mas eu não aceito nenhuma das duas explicações” (TEODORETO DE CIRRO, 2007, p. 228-230). A justificativa da rejeição da primeira parte é a falta de sacerdote e de profeta, sem que a justificativa fique muito clara. Pois em seguida Teodoreto chega a afirmar que se trata de uma instrução prévia para o culto sacerdotal. Talvez Teodoreto queira apenas dizer que o erro é de dizer que se tratava de uma necessidade para o próprio Moisés e não apenas de uma instrução

prévia. A rejeição da segunda parte se deve ao fato de que a terra já estaria santa, porque tinha sido tocada por Deus previamente na sua aparição. Ora, se não se pode santificar o que já é santo por ter sido santificado por Deus, como poderia Teodoreto rezar o “Pai nosso”, como com certeza o rezava? Afinal, o nome de Deus já é santo por si, como podem os cristãos santifica-lo? Provavelmente os dois erros sejam para Teodoreto, dois casos de afirmação de contradição na Bíblia, mas nenhum dos dois é um caso de contradição evidente.

3.4.4 Conclusão/avaliação

A exegese de Teodoreto de Cirro, apesar de algumas coisas em comum, aparece muito diferente da exegese de Cirilo de Alexandria. Naturalmente, ambos elaboram interpretações cristãs, cristológicas do Antigo Testamento. A diferença é que, ao contrário de Cirilo, Teodoreto não se limita a esse tipo de interpretação. Sua formação antioquena faz com que ele dê também valor a interpretações que ficam dentro do limite do Antigo Testamento. Também, em razão da mesma formação antioquena, ele procura resolver aparentes problemas de contradição no texto bíblico, com o pressuposto de que não é possível haver nenhuma. Segundo um critério que Umberto Eco usa para distinguir uma intentio operis de uma

interpretação lectoris, e partindo do princípio dogmático que Deus é o autor de toda

a Bíblia, Teodoreto procura elaborar uma interpretação que evidencie a coerência interna do texto.

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