• Nenhum resultado encontrado

Teologia Pública na prática

No documento cicerocezariodacostaneto (páginas 90-97)

3. DESDOBRAMENTOS DO CONCEITO TAYLORIANO DE ESFERA PÚBLICA

3.1 A relação religião e Estado

3.1.2 Teologia Pública na prática

Já foi mencionado no capítulo dois o fato de Stackhouse caracterizar vários teólogos da história como teólogos públicos, mesmo que a concepção teórica de Teologia Pública como trabalhado na atualidade não existisse nas respectivas épocas, como o caso do pastor batista norte americano Martin Luther King Jr. Um ativista que viveu num grande período de segregação racial em seu país no século XX e que liderou um movimento de luta pacifista pelos direitos civis dos negros americanos, motivado e essencialmente baseado em sua fé religiosa, aplicou conceitos bíblicos de libertação para tratar da libertação dos negros norte- americanos do sistema de segregação racial.58

Neste sentido, a luta de Luther King poderia ser considerada um exemplo de sucesso da Teologia Pública na prática. Ainda mais, o termo Teologia Pública é pensado a partir do viés cristão, no entanto, se este conceito for alargado poder-se- ia até dizer que a luta, também pacifista e altamente ancorada em princípios religiosos éticos e morais do hinduísmo, de Mahatma Gandhi pela independência da Índia fora um exemplo também bem-sucedido de Teologia Pública na prática, assim como os esforços atuais de Warsi que estão, de algum modo, influenciados pelo islamismo.

58 A mais de duas décadas atrás já se produziu um artigo focado especificamente em Luther King e

sua luta, relacionado à prática da teologia pública. Ver em: DOWNING, Frederick. Martin Luther King, Jr. As Public Theologian. Theology Today, Princeton, v.44, n.1, p. 15-31, 1987.

Foi visto também que Koopman considera que a Teologia Pública já foi praticada na África do Sul de muitas maneiras, especialmente quando aquele país também viveu o seu regime de segregação racial, o apartheid. Publicações, declarações públicas, marchas de protesto por educação, regeneração moral, políticas públicas, justiça econômica e social, programas de bem-estar e etc., que foram encorajados por motivos religiosos já seriam, então, Teologia Pública na prática. E, segundo Le Bruyns, após a queda do apartheid, o próprio incentivo do presidente Nelson Mandela à ação dos religiosos na esfera pública pode ser considerado um encorajamento a prática da Teologia Pública.

Também já foi assinalado a relação da Teologia da Libertação com a Teologia Pública e assim, como de algum modo, a Teologia da Libertação ou teologias libertárias também poderiam ser vistas como manifestações da Teologia Pública na prática. Ainda no Brasil, também foi mencionado a tentativa de Renders de mostrar que a prática da teologia metodista é na verdade uma Teologia Pública, além do esforço de Cavalcante em defender que a prática da vocação protestante é Teologia Pública, o que o levou a percepção de que o protestantismo brasileiro precisa resgatar esta sua vocação e colocá-la em prática no Brasil para o bem da sociedade. Ademais disto que já foi exposto, a partir das publicações dos volumes dois, três e quatro da Coleção Teologia Pública (2012, 2014), pelas Faculdades EST e Editora Sinodal, ressalta-se também (1) o esforço de Rogério Link e Roberto Zwetsch em relacionar a questão indígena com a Teologia Pública, apontando, inclusive, históricas manifestações públicas da Igreja Católica Romana e da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) em defesa de causas de povos indígenas brasileiros; (2) a tentativa de Euler Westphal e Volmir Fontana de mostrar o grande potencial de contribuição da Teologia Pública para os dilemas da bioética, visto que a própria teologia, segundo eles, foi importante para o nascimento da bioética; (3) o ativismo teológico em prol de causas ecológicas, fundamentado no que tem sido chamado de ecoteologia, que Willian Kaiser de Oliveira relacionou como Teologia Pública; (4) a colocação de Valburga Streck a respeito do HIV/AIDS como um desafio prático de ação cidadã para a Teologia Pública, segundo ela, já com algumas iniciativas exemplares. Este tema do HIV/AIDS é expandido no volume quatro da Coleção Teologia Pública, contando com artigos de outros autores em diálogo também com a realidade africana.

No entanto, o que se propõe agora é a identificação de casos mais pontuais, claros e específicos que sirvam de exemplos práticos da realidade da Teologia Pública em solo brasileiro. Sinner (2007, p. 59), em tentativa semelhante, ressaltando as dificuldades de tal empreendimento, aponta para seis exemplos advindos principalmente do catolicismo e sua influência no Estado brasileiro e na sua esfera pública no século passado.

O primeiro exemplo se refere ao cartão postal mais conhecido do Brasil, o monumento do Cristo Redentor inaugurado em 1931, localizado na cidade do Rio de Janeiro, que segundo Sinner, marca visivelmente esta influência da igreja católica sobre o Estado naquela época, que também ficou conhecida como um esforço católico por uma neocristandade. O segundo exemplo de Sinner se deu na década de 1970, no período do regime militar, quando frades dominicanos foram presos e dividindo cela com alguns ateus, começaram a realizar celebrações religiosas que se tornaram públicas. Outro exemplo também aconteceu no período militar com a criação do programa de “Educação Moral e Cívica” obrigatório nas escolas, quando também foi publicada por sua comissão de supervisão uma Oração pelo Brasil: “Ó DEUS onipotente, princípio e fim de todas as coisas, infundi em nós, brasileiros, o amor ao estudo e ao trabalho, para que façamos da nossa PÁTRIA uma terra de paz, ordem e grandeza. Velai, SENHOR, pelos destinos do Brasil!”. O quarto exemplo se configura mais próximo do final do século passado, a partir da atuação midiática e política da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), segundo Sinner, “uma igreja pública, contestadora e contestada”. O quinto exemplo colocado destaca a atuação no espaço público brasileiro de Movimentos e ONGs com claros fundamentos religiosos, com referência em especial ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Por último, Sinner lembra uma celebração ecumênica ocorrida no avião do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando ele e diversos religiosos viajavam para o sepultamento de João Paulo II em Roma, no dia 7 de abril de 2005 (SINNER, 2007, p. 59-60).

Rodrigues (2013, p. 168-169), comentando ainda as relações entre religião e Estado no Brasil, também destaca o fato da presença de crucifixos e santos em exposição em repartições públicas e os trabalhos sociais em desenvolvimento no espaço público brasileiro, realizados a partir de motivações religiosas e reconhecidos pelo Estado, ilustrado no discurso de políticos que afirmam que estes trabalhos

“chegam onde o braço do Estado não chega”. Tais trabalhos sociais, como o da “Cristolândia” que visa, através da religiosidade, prevenir, recuperar e prestar assistência a dependentes e codependentes químicos, especialmente do crack, para reinseri-los a sociedade e a família59, poderiam também ser vistos como Teologia

Pública na prática.

Numa perspectiva mais crítica em relação ao Estado, se destaca também o trabalho da ONG Rio de Paz, filiada ao Departamento de Informação Pública da ONU (Organização das Nações Unidas), presidida por Antônio Carlos Costa, um pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil60. No site da instituição consta a “pressão

política e conscientização” como uma de suas frentes de atuação. Segundo o site: “Realizamos, periodicamente, protestos e manifestações, divulgamos fotos, promovemos lobby dos direitos humanos junto aos poderes estabelecidos, produzimos documentários e elaboramos abaixo-assinados”.61

Desta maneira, a ONG Rio de Paz se utiliza do discurso e ações estratégicas no espaço público para mobilizar a sociedade e junto dela moldar uma opinião pública que venha influenciar o Estado e sua política em áreas pertinentes como a segurança pública e assim se configura num exemplo atual de Teologia Pública em atuação na esfera pública brasileira.

A Rio de Paz tem ganhado grande projeção no cenário nacional, no entanto, outras instituições de influência religiosa cristã evangélica também têm atuado pelo Brasil com propósitos semelhantes. Visando estabelecer relacionamento entre estas instituições, foi criada no início da década passada a RENAS (Rede Evangélica Nacional de Ação Social). É interessante perceber na sua proposta disposta em seu site, as ideias que claramente configuram esta rede num exemplo prático do que

59 Disponível em: <http://www.cristolandia.org/#!quemsomos/c21kz>. Acesso em: 22 set. 2015. 60 Antônio Carlos Costa fundou esta ONG com clara motivação religiosa, fruto da sua leitura bíblica a

partir de uma teologia da justiça social. Isto fica explícito em seu blog, disponível em: <http://palavraplena.typepad.com>. Acesso em: 22 set. 2015.

E também é corroborado por site cristão evangélico, disponível em: <http://vigiai.net/artigos/fundacao- rio-de-paz-e-destaque-na-categoria-pela-cidadania-e-paz>. Acesso em: 22 set. 2015.

61 Disponível em: <http://www.riodepaz.org.br/frentes-de-atuacao/36/pressao-politica-e-

conscientizacao>. Acesso em: 22 set. 2015.

No site também é possível ter acesso a links para artigos e reportagens, fruto da cobertura da imprensa sobre as ações da ONG. Disponível em: <http://www.riodepaz.org.br/imprensa/clipping/>. Acesso em: 22 set. 2015.

está sendo proposto aqui como Teologia Pública. Segundo o site, a RENAS pretende:

Ser uma rede de alcance nacional, de relacionamento e ações entre as organizações, redes e igrejas evangélicas que atuam na área social na promoção e na defesa dos direitos humanos, no fortalecimento de políticas públicas, no empoderamento dos mais vulneráveis, proporcionando encorajamento, capacitação, articulação, mobilização, troca de experiências, informações, recursos e tecnologia social em benefício de uma sociedade mais digna, inspirados pelos princípios cristãos.62

Seguindo a linha da RENAS, recentemente líderes evangélicos progressistas de variadas denominações se reuniram no Rio de Janeiro com o objetivo de formar uma rede de articulação entre aqueles evangélicos que defendem pautas mais progressistas para a sociedade brasileira, tais como direitos civis para homossexuais, flexibilização da política de drogas e descriminalização do aborto, em contraposição aqueles evangélicos que defendem e atuam em pautas mais conservadoras.63

Este fato também revela uma das limitações dos evangélicos brasileiros de modo geral. Uma falta de unanimidade do que seria uma moral cristã para estes assuntos em debate, progressistas de um lado e conservadores do outro, estes aparentemente a maioria na chamada bancada evangélica presente no legislativo brasileiro. Mas, para além disto, nota-se nestas iniciativas e nesta disputa entre progressistas e conservadores manifestações claras do que seja a Teologia Pública na prática em plena atuação na esfera pública brasileira.

Um exemplo mais pontual do que foi teoricamente apresentado, a esfera pública tayloriana e a questão da Teologia Pública como um tipo de fazer teológico que abarca teologias diversas que se importam com questões públicas e que visam ao bem comum da sociedade, se deu com a Declaração64 da Convenção Batista

62 Disponível em: <http://renas.org.br/nossa-missao/>. Acesso em: 22 set. 2015.

63 Ver reportagem sobre este encontro em: TINOCO, Dandara. Evangélicos planejam ações para dar

visibilidade a projetos de igrejas na área de direitos humanos: Movimento é reação a discurso contra temas como aborto, direitos para gays e tolerância religiosa. O Globo, Rio de Janeiro, 19 set. 2015. Religião. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/evangelicos-planejam-acoes- para-dar-visibilidade-projetos-de-igrejas-na-area-de-direitos-humanos-17541315>. Acesso em: 20 set. 2015.

64 Disponível em: <http://batistas.com/tema_do_ano/DECLARACAO_BATISTA.pdf>. Acesso em: 21

Brasileira65 a respeito do Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, no qual, como

reza o artigo primeiro “fica instituída a Política Nacional de Participação Social - PNPS, com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil.”66 A CBB através da declaração publicada na internet e

divulgada em redes sociais virtuais se manifestou contra este decreto e, na qualidade de representante de uma parte da sociedade elaborou um discurso fundamentado na dignidade da pessoa humana e numa moral cristã. Nesse documento expressou a necessidade de lisura nas gestões públicas para o fortalecimento do ideal de democracia (em conformidade com ramos do protestantismo histórico) e zelando pela formação da opinião pública a respeito deste Decreto. Entende-se esse exemplo como uma forma de representação religiosa, Teologia Pública, atuando na esfera pública, como proposta por Taylor.

Semelhante a esta ação da CBB, em 2011, a ABIEE (Associação Brasileira de Instituições Educacionais Evangélicas), por conta de que estava tramitando no Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara nº 122/2006 (Projeto de Lei nº 5003/2001), que criminalizaria “toda e qualquer manifestação contrária à orientação sexual da homossexualidade”, entregou ao deputado João Campos, líder da Frente Parlamentar Evangélica na ocasião, a Carta de Brasília: Manifesto em favor das liberdades de pensamento, consciência, expressão e crença. Como assinalou Augustus Nicodemus, que reproduziu o teor do Manifesto em seu blog, “as entidades e igrejas que assinaram o Manifesto congregam aproximadamente 8 milhões de pessoas, entre alunos, professores e membros”67, e desta maneira, tal manifesto

65 Também identificada pela sigla CBB, órgão máximo da denominação evangélica Batista no Brasil,

representando cerca de 1.350.000 fiéis e como instituição existe desde 1907, servindo às igrejas batistas brasileiras como sua estrutura de integração e seu espaço de identidade, comunhão e

cooperação. Disponível em:

<http://batistas.com/index.php?option=com_content&view=article&id=3&Itemid=10>. Acesso em: 21 set. 2015.

66 BRASIL. Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014. Institui a Política Nacional de Participação

Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e dá outras providências. Diário

Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 26 mai. 2014. p. 6-8. Disponível em:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=26/05/2014&jornal=1&pagina=6&total Arquivos=172>. Acesso em: 21 set. 2015.

67 Disponível em: <http://tempora-mores.blogspot.com.br/2011/06/o-manifesto-de-brasilia-sobre-

liberdade.html>. Acesso em: 24 set. 2015.

Veja o conteúdo do Manifesto na íntegra no site da ABIEE, disponível em: <http://abiee.org.br/images/Manifesto%20em%20favor%20das%20liberdades.pdf>. Acesso em: 24 set. 2015.

também representa o que seria, num viés cristão evangélico mais conservador, a Teologia Pública na prática.

Na área da educação também se nota referências à prática da Teologia Pública na atualidade. Na verdade, segundo João Décio Passos (2011, p. 64), foi a partir do reconhecimento da teologia como um curso superior por parte do MEC (Ministério da Educação) que ela passou a poder ser considerada como, de fato, pública. Passos afirma que a teologia

adquire cidadania plena quando pode apresentar-se como conhecimento dentro das instituições de ensino superior, particularmente dentro das universidades, lugar regular, senão genético, de exercício da comunidade científica e lugar autorizado da divulgação e titulação científica, segundo a legislação pública educacional. Nesse espaço acadêmico, a teologia adquire status de conhecimento, de fato legítimo e legal. É quando se pode falar, propriamente em Teologia Pública. É particularmente no espaço público das instituições de ensino que abrigam as ciências legítimas e legalizadas que a teologia se torna cidadã e poderá ser ouvida socialmente.

Isto significa que para Passos, na prática mesmo, a teologia só se tornou pública quando, reconhecida e legalizada pelo Estado, adentrou definitivamente as universidades. Passos e Afonso Maria Ligorio Soares (2011) organizaram uma obra contando com artigos de diversos autores que trabalham justamente esta caminhada da teologia como uma área do conhecimento que veio a ter, e este processo prossegue em contínuo desenvolvimento, reconhecimento acadêmico e status de pública, e quais as implicações desta realidade. Neste sentido, Soares (2011, p. 288, 289) é categórico ao afirmar que “a teologia é benéfica à sociedade” que o Ocidente idealiza e não há nada mais inteligente que ter a teologia “em nossas universidades e na vida pública em geral”.

Por último, mas ainda na área da educação, a questão do Ensino Religioso nas escolas públicas brasileiras, assegurada pela constituição de 1988, tem sido matéria de grande debate na atualidade. Segundo Remí Klein (2012, p. 106, 102), citando Jacobsen, em artigo que trata sobre esta questão, “em relação ao Ensino Religioso nas escolas, a Teologia Pública se propõe a ‘educar para a esfera pública: inferências político-pedagógicas para a dialogicidade da teologia’, ou seja, o Ensino

Religioso como um espaço de Teologia Pública”, que contemple as teologias referentes à diversidade cultural religiosa do Brasil.

Este debate tem se mostrado caloroso na atualidade. Recentemente, mais precisamente no dia quinze de junho de 2015, foi realizada em Brasília uma audiência pública sobre este assunto. O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, atual relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 443968, quem convocou e abriu a audiência, observou que eram duas as linhas a

serem defendidas. Uma que o Ensino Religioso fosse confessional e outra que fosse não confessional.69

Ao todo foram trinta e um líderes representando variadas instituições religiosas e laicas que expuseram seus pensamentos sobre a temática. Surpreendentemente, alguns defenderam o não Ensino Religioso nas escolas públicas, algo que nem estava em pauta, mas a maioria acabou por defender um Ensino Religioso não confessional nas escolas públicas.70 No entanto, independente

do resultado, o que se ressalta aqui é a realidade do debate e os envolvidos nele e como ele se processou. Uma indicação clara do que seria, na prática, a Teologia Pública em atuação na esfera pública num contexto da laicidade à brasileira, e como ela pode contribuir para a contínua construção do Estado democrático brasileiro e o bem comum da sua sociedade. O que se revela na fala do ministro Barroso ao término da audiência: “Pessoalmente saio daqui muito mais capaz de equacionar as questões tratadas no processo do que antes da audiência”.71

No documento cicerocezariodacostaneto (páginas 90-97)

Documentos relacionados