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Capítulo 1 – PODER-CORPO: a genealogia

2.1 Teoria como caixa de ferramentas

“A dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da problematização (...) Problematização da loucura e da doença a partir das práticas sociais e médicas, definindo um certo perfil de “normalização”; problematização da vida, da linguagem e do trabalho em práticas discursivas obedecendo a certas regras ‘epistêmicas’; problematização do crime e do comportamento criminoso a partir de certas práticas punitivas obedecendo a um modelo ‘disciplinar’ (Foucault, 1990: 16)15.

A quem se propõe a trabalhar com Michel Foucault, uma questão de fundo se impõe: Como lidar com um autor que nunca quis ser modelo, que não quis ser ‘fundador’ de uma discursividade?16 Como trabalhar com um autor que criticou as noções convencionais de obra e comentário? Enfim, como trabalhar com um autor que não quis ser autor17, como é o caso de Foucault? Essas questões nos levarão a problematizar, até o ponto onde seja possível explicitar, o que entendemos por teoria.

Para Foucault (1987)18, Nietzsche inaugura novas técnicas de interpretação, a partir do que a interpretação é tarefa infinita. Não há para Nietzsche um significado original. Não há nada absolutamente primário a interpretar, porque no fundo já tudo é interpretação, cada símbolo é em si mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas a interpretação de outros símbolos: “se se prefere, não houve nunca um

interpretandum que não tivesse sido interpretans, é uma relação mais de violência que

de elucidação”, a que se estabelece na interpretação (Foucault, 1987: 23).

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O Uso dos Prazeres. 16

Para Foucault (1992), Freud e Marx são exemplos de “fundadores/instauradores de discursividades”, pois, estabeleceram a possibilidade e a regra de formação de outros textos; o que parece justificar a necessidade dos constantes “retornos a” esses autores.

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Para uma problematização do “princípio do autor”, da “função” autor em Fucault, ver o tópico 2.4 desta tese. Ver, também, Foucault (1992).

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Foucault tomou Nietzsche menos como objeto de análise que como grille de

lecture e relacionou-se com ele menos como o comentador e seu interpretandum que

como o pensador com sua caixa de ferramentas. Foucault preocupou-se não em fazer trabalhos sobre Nietzsche, mas em usar Nietzsche em seus trabalhos. Não buscou a atualidade dos textos de Nietzsche, mas pensou sua atualidade com Nietzsche; ocupou- se menos da verdade dos textos de Nietzsche do que em problematizar a verdade.

Nas palavras de Foucault: “O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse” (Foucault, (1998a: 143)19.

Há pensadores que não se prestam a comentários, não são pensadores de sistemas. Esse é o caso de Nietzsche; foi assim que Foucault se relacionou com Nietzsche; é assim que nos relacionamos com Foucault. O melhor tributo que se pode fazer a um autor que não quis ser autor é usá-lo. Tomamos Foucault não por pensador-

de-sistemas, mas um pensador-de-problemas, que fez experimentos com o pensar.

Nele, as palavras não valem como significações, representações das coisas. E querer comentá-lo, revelar o sentido de seu discurso, implica tomar partido da interioridade e da representação. É preciso, ao contrário, fazer uma leitura intensiva, produzir novas e diferentes intensidades.

A questão é pensar não na atualidade do texto foucaultiano, mas pensar a atualidade através dele. O que interessa é utilizar, pôr para funcionar Foucault, mobilizá-lo como caixa de ferramentas para encontrar formas de problematização que sejam interessantes e produtivas – sem ir ao texto para encontrar o sentido ou a intenção por trás do texto, a intenção original do autor. Interessa-nos aqui pensar que

ferramentas Foucault oferece para problematizar a nossa atualidade. E, desde já, para os propósitos deste trabalho, pensamos que elas são variadas e produtivas.

Buscamos, é bom que se diga, inspiração em Foucault sem assumir um “discurso foucaultiano”; desenhamos, portanto, um estilo de problematização. Entendendo também a interpretação como essa tarefa infinita e indefinida, ela assume aqui a tez de uma problematização: problematizar nossas práticas de saber e poder para que se possa abrir para novas práticas, problematizar nossos discursos, para que novas discursos sejam possíveis. Problematizar, enfim, “os sistemas de pensamento”.

A questão não reside nos objetos já dados de antemão (o corpo, a doença, a sexualidade, a loucura, etc.), mas nas práticas que produzem esses objetos. Daí que esse método “cria” problemas, mais do que se ocupa em “resolvê-los”. Tomando a interpretação não como elucidação tranqüila do que há, mas como uma violência que se impõe, cria objetos para o pensamento, trata-se de nos apoderarmos de nosso objeto, fazê-lo vergar, multiplicar as possibilidades de pensá-lo, tendo clareza de que essa não é a única forma de fazê-lo, nem a melhor, mas uma entre muitas possíveis.

Em uma conversa com Foucault, Deleuze alude a uma afirmação de Proust: “trate meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seus instrumentos” (1998a:71)20. E a complementa com a seguinte frase: “uma teoria é uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante” (Ibid: idem)

É nesta direção que estamos orientando a pesquisa. A teoria como “caixa de ferramentas” responde a questão básica “o que entendemos por teoria?”: é o modo como, a partir de certa sistematização e operatividade, lidamos com as coisas, as

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“Sobre a Prisão”, in Microfísica do Poder. 20

nomeamos e, assim, as ordenamos. Não é pura e vã abstração. Conceitos são o esforço, daí a violência, de imprimir ordem ao caos e à ambivalência do mundo (Cf. Bauman, 1999). Categorias são instrumentos que inventamos para atribuir certa homogeneidade ao que é por definição heterogêneo, criando agrupamentos de coisas, por similitude e diferenciação das demais, que passam a nos parecer de algum modo “familiares”, inteligíveis. Portanto, teoria se mobiliza, usa-se, no sentido de um produtivo nominalismo radical (Cf. Rajchman, 1987).

É preciso que fique clara a nossa posição em relação a Michel Foucault, os usos que aqui se fazem dele, para que nossa empresa seja compreendida e para que não se criem determinadas expectativas que o trabalho não visa a corresponder. Foucault não é o nosso objeto de estudo. Não se trata aqui de analisar o corpo em Michel Foucault. Mas sim de pensar a condição contemporânea do corpo a partir de algumas ferramentas que acreditamos encontrar em Foucault. Trata-se de trabalhar com

Foucault: tornar operacionais alguns conceitos e mesmo insights seus, pois em

Foucault os conceitos não podem ser tomados em si mesmos, mas como “caixas de ferramentas” que concorrem para a produção de coisas novas. A nossa chave de leitura de Foucault recorta de sua obra alguns conceitos e noções – sobretudo as noções como

prática discursiva, formação discursiva, enunciado, biopoder, dispositivo, a priori histórico, regime de verdade –, um certo modo de trabalhar – uma arqueo-genealogia

– e uma preocupação mais ampla: o que nos acontece hoje?

Por isso, não nos interessa se fazemos “a leitura mais fiel da sua obra”. A coerência que queremos manter é inscrever um certo modo de perguntar no contexto mais geral de um diagnóstico do presente, a partir da pergunta por uma ontologia do presente: qual a nossa atualidade? Como chegamos a ser o que somos – por meio de

quais dispositivos? Como se estabeleceram certos contornos que nos definem e limitam? O que estamos nos tornando ou estamos em via de nos tornar?