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2 DO MUNDO PSÍQUICO AO MUNDO ESPIRITUAL: UM SALTO

2.3 A teoria dualista sobre o homem

Quanto às teorias sobre o homem, Scheler critica, principalmente, a doutrina dualista de Descartes a respeito do homem, afirmando:

Pelo fato de ter dividido todas as substâncias em “pensantes” e “extensas” e de ter ensinado que somente o homem dentre todos os seres é constituído a partir destas duas substâncias em uma ação recíproca, Descartes introduziu na consciência ocidental todo um exército de equívocos da pior espécie acerca da natureza humana77.

Ao separar a esfera pensante da esfera física, Descartes comete o erro, segundo Scheler, de reduzir todo o universo animal e vegetal à categoria de coisas mecânicas. Além disso, apenas o homem seria o possuidor de consciência, o restante dos seres seria desprovido de esfera psíquica. Uma consequência disso, de acordo com Scheler, é que a categoria fundamental da vida foi posta                                                                                                                          

de lado e fora do mundo pensante. Na doutrina cartesiana o homem é tido como animal na qualidade de corpo orgânico, o que ocasiona a descrição do homem em analogia com uma máquina. Uma máquina sem alma, e esta radicalmente distinta do corpo78. No entanto, na ideia antropológica de homem, Descartes une corpo e alma, algo demasiadamente confuso visto a separação introduzida por ele entre substâncias pensantes – alma – e substâncias extensas – corpo –.

No entanto, apesar das críticas à doutrina cartesiana, Scheler elege um ponto positivo de tal pensamento, a saber, Descartes reconheceu a supremacia e autonomia do espírito sobre tudo o que é orgânico e vivente. Contudo, todo o resto da doutrina cartesiana é tido como falso por Scheler. Por exemplo, Descartes acreditava que o psíquico era atribuição apenas da consciência e do córtex cerebral, quando a verdade é que as funções psíquicas que formam o caráter humano não localizam-se apenas no cérebro, mas sim na base do encéfalo e no sistema de glândulas endócrinas. Assim, “todo o corpo e não apenas o cérebro tornou-se hoje uma vez mais o campo fisiológico paralelo dos acontecimentos anímicos”79. Dito isto, a vida pulsional e a afetividade do homem, que formam basicamente o fundamento originário do psíquico, não estão ligados apenas ao mecanismo cerebral como defendeu Descartes, mas a todo o corpo humano.

Para Scheler, o problema acerca do corpo mecânico e da alma não pode ser interpretado dualisticamente, isto é, esfera psíquica e corpo, cérebro e partes extensas formam um único conjunto. Ao separarmos a consciência do corpo mecânico e reduzirmos toda a vida anímica à consciência estamos recorrendo ao erro cartesiano. A ideia de que o centro do homem é o corpo e a alma, diferente do corpo mecânico, está fora de questão, apenas foram verdadeiras na filosofia de Descartes. Na doutrina ontológica e cosmológica de Scheler, os processos fisiológicos – do corpo mecânico na teoria cartesiana – e os processos psíquicos – a consciência na teoria cartesiana – são unos e idênticos. Fenomenalmente, contudo, eles são diversos, mas as suas estruturas são as mesmas e, tanto o processo fisiológico quanto o processo psíquico visam a fins e à totalidade. Quanto mais primitivos eles são, mais totalizantes e fortes são, e fazem parte de um sistema vital de funções mais que mecânicas80.

                                                                                                                         

78 A obra cartesiana na qual tal tema é abordado é o Tratado do homem. 79 Scheler, A Posição do Homem no Cosmos p. 70.

80 O corpo ligado à experiência da pessoa enquanto ato pessoal jamais é diminuído ao valor de uso ou de

instrumento. O corpo é expressão da pessoa, isto é, ele é o primeiro gesto da experiência da pessoa para com a objetivação do mundo humano.

A união que Scheler proporciona às ideias de corpo mecânico e de consciência formam uma única harmonia. Para ele, a parte químico-física do corpo e a parte psíquica estão conectadas, e o “procedimento fisiológico é fenomenologicamente tão ‘pleno de sentido’ quanto o procedimento psíquico ou os decursos conscientes; e estes são com frequência exatamente tão ‘estúpidos’ quanto os decursos orgânicos”81. Além de Descartes, que executou uma filosofia unilateral da consciência, a ciência ocidental também executa uma ciência unilateral em direção ao corporal e ao vital. Também a medicina oriental obedece uma ciência unilateral, mas essa orientada para a alma e para o psíquico.

Scheler, por outro lado, lança mão dessa vida una, ligando o ponto extremo do físico com o ponto extremo do psicológico. E essa união abrange o ser humano e todos os seres vivos. A junção que Scheler defende entre alma e corpo mecânico/fisiológico ou entre psíquico e físico, faz com que não haja diferença em grau entre animal e homem. Tanto o animal possui um sistema vital tão bem formado e estruturado quanto o homem. A diferença que ocorre entre o animal e o homem está situado em um nível muito mais denso, a saber, na diferença entre espírito e vida. O espírito faz com que a diferença entre homem e animal seja superior à mera distinção entre corpo mecânico e alma. Enquanto que o corpo mecânico e a alma podem se tornar objetos, o espírito é aquele que tudo pode objetivar, mas ele mesmo nunca será objeto. O espírito em si mesmo é autônomo e independente, apenas torna-se dependente quando demanda atividade, e assim, volta-se para o processo vital temporal a partir da pessoa. Assim sendo, a visão cosmológica scheleriana situa vida e espírito em sintonia e dependência na pessoa, a fim de ambos possuírem atividade e força. Fora de um tal processo, o espírito se constitui supra temporalmente e supra espacialmente. Quanto as condições ontológicas do espírito e do impulso afetivo, ambos estão mutuamente em crescimento por meio do espírito humano histórico, e no desenvolvimento da vida num todo.