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2. Cidade alteridade e subjetividades

2.1 Teorias biopotentes e micropolíticas

Biopotência da multidão e do comum

Pelbart nos apresenta a própria cidade, ou melhor, a “forma-cidade” como alternativa à forma-Estado. Este último domina e se instala sobre a cidade, no entanto, esta escapa dele, assim como escapa do capitalismo (PELBART, 2000, p. 42-43). Podemos dizer que escapes aos poderes hegemônicos sobre a cidade são designados por migrantes, por ciganos e pelos pobres. Como diz Francesco Careri sobre os ciganos, não se pode entrar “em acordo” com os ciganos, “eles nos escapam. E vão continuar escapando. A única forma de sobrevivência deles é de nos escapar.” (JACQUES; CARERI, 2013, p. 16).

Os ciganos são nômades antigos, em contrapartida, no mundo contemporâneo, aparecem novos nômades. O nomadismo e a miscigenação constituem-se “figuras de virtude” e “as primeiras práticas éticas” globais (HARDT; NEGRI, 2001, p. 50). Os pobres, os sem-teto, os sem-terra, os desempregados, a população de rua, os precários como dizem Hardt e Negri, encarnam-se na “figura de um sujeito transversal, onipresente, diferente e móvel, um atestado do irreprimível caráter aleatório da existência” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 51)

Pode-se dizer que essas figuras citadas pelos autores testam novas vivências, novas experiências, novas sociabilidades, novos afetos na prática.

Há muito tempo os assentamentos urbanos precários no Brasil – as favelas – se apresentam como lugares onde “a multidão de pobres inventa estratégias de sobrevivência, encontrando refúgio e produzindo formas de vida social, descobrindo e criando constantemente recursos do comum mediante circuitos expansivos de encontro” (HARDT; NEGRI, 2011, p. 259).

Destaca-se: é necessário considerar a favela como componente vivo da cidade, ressaltando toda a pluralidade que lhe é característica. “O território da favela é um espaço de potência, de criatividade, de inovações tecnológicas, sociais e culturais. O território da criatividade na América Latina é a favela” (ABRAMO, s/d).

A respeito dessa engenhosidade dos pobres e migrantes brasileiros, Carlos Nelson F. dos Santos diz algo semelhante:

Pouca gente para e pensa no enorme dispêndio de energia social necessária para a maioria da população realizar tamanho salto histórico. No que foi preciso fazer para sair da vida rural, sem perspectivas, e entrar em cidades onde se tentava viver segundo os moldes da mais moderna cultura capitalista. Deixados à revelia, os pobres se viram mesmo muito ocupados com os problemas prementes que diziam respeito à sua sobrevivência e, por extensão, ao processo de urbanização. Tiveram de enfrentar como puderam a necessidade de inventar empregos, lugares de moradia, transporte, saneamento, opções de lazer. Não se saíram tão ©mal: mantiveram vivas áreas centrais, desprezadas por ocupantes anteriores; construíram, de qualquer maneira, favelas em sítios impossíveis e proibidos; foram para periferias, para cidades novas e frentes pioneiras. (SANTOS, 1988, p.133).

Maria Szmrecsanzyi (1985, p. 51) dirá que Santos também denunciava, em 1985, um moralismo que sempre tende a reduzir as muitas ordens que nos apresentam o fascinante e múltiplo universo urbano a uma única ordem, seja a da produção estrito senso, da produção econômica, seja a da produção no senso político, isto é, a produção da disciplina.

De acordo com Hardt e Negri (2004, p.185) somos todos pobres, pois “O pobre é a encarnação da produção biopolítica. Trata-se do abandono da dialética do pobre como proletariado, no seio da qual os indivíduos oscilam de maneira precária entre o emprego e o desemprego”, para adotar uma antinomia na qual a pobreza é produtiva de riqueza, mas

a riqueza que ela cria lhe é usurpada e este ato está na origem de seu antagonismo. Entretanto, ela não perde sua capacidade de produzir riqueza, na qual reside sua potência. É nesta combinação de antagonismo e de potência que se forja uma subjetividade revolucionária (HARDT; NEGRI, 2004, p.186).

Pelbart nos lança questões disparadoras:

De que maneira, no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de se agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de autovalorização?. Num capitalismo conexionista, que funciona na base de projetos em rede, como se viabilizam outras redes que não as comandadas pelo capital, redes autônomas, que eventualmente cruzam, se descolam, infletem ou rivalizam com as redes dominantes? Que possibilidades restam, nessa conjunção de plugagem global e exclusão maciça, de produzir territórios existenciais alternativos àqueles ofertados ou mediados pelo capital? (PELBÁRT, 2011, p. 21).

Retomamos o conceito de biopolítica, mas agora numa perspectiva mais otimista, que abre espaço para a discussão da potência biopolítica da multidão, ou a biopotência da multidão, pois se acredita

" que paralelamente ou mesmo dentro deste sistema flexível do capitalismo contemporâneo, é possível resistir positivamente, ativando processos que fogem à lógica da captura das máquinas biopolíticas de subjetivação". (RENA, 2014)

Nessa perspectiva, as forças vivas presentes por toda parte na rede social deixam de ser apenas reservas passivas à mercê de um capital insaciável, e passam a ser

consideradas elas mesmas um capital, ensejando uma comunialidade de autovalorização. Em vez de ser apenas objeto de uma vampirização por parte do Império, são positividade imanente e expansiva que o Império se esforça em regular modular, controlar.

Todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada, detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode torna-se vetor de valorização e de autovalorização. Assim, o que vem à tona com cada vez maior clareza é a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão. É esse corpo vital coletivo reconfigurado pela economia imaterial das últimas décadas que, nos seus poderes de afetar e de ser afetado e de constituir para si uma comunialidade expansiva, desenha as possibilidades de uma democracia biopolítica. (PELBÁRT, 2011, p.139).

Como dirá Rena (2014, p. 73),

Enxerga-se no poder político da multidão (corpo biopolítico coletivo, heterogêneo, multidirecional) uma biopotência que produz e é produzida pelas fontes de energia e valor capitalizadas pelo Império. E é justamente por meio da multidão, com a força virtual de seus corpos, mentes e desejos coletivos, que se acredita ser possível resistir e escapar a essa nova ordem Imperial. Diante do poder virtual inerente à multidão, vislumbram-se novas possibilidades de subverter o Império e superá-lo, tirando partido do caldo biopolítico e das subjetividades coletivas. A multidão, enquanto organização biopolítica, é o que pode construir uma resistência positiva, criativa e inovadora, produzindo e sendo gerada pelo desejo do comum.

Cabe ressaltar que, tradicionalmente, o termo multidão é usado de maneira pejorativa, indicando um agregado indomável que cabe ao governante domar e dominar. Já o termo povo (diretamente relacionado ao estado-nação) é concebido como um corpo público animado por uma vontade única. A multidão também é confundida como o termo massa (diretamente relacionado ao mercado), que de forma homogênea abole todas as singularidades, com densidade absoluta e direção única. Homogênea, compacta, contínua, unidirecional, a massa é todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional. (NEGRI, 2005)

[...] a multidão é plural, centrífuga, refratária à unidade política. Ela não assina pactos com o soberano e não delega a ele direitos. A multidão inclina-se a formas de democracia não representativa. Ela é um conjunto de singularidades que possui a potência da construção do comum, fora da lógica socialista ou capitalista. A multidão, na sua configuração acentrada e acéfala, no seu “agenciamento esquizo”, é oposto ao povo e à massa. (PELBART, 2011,p. 26).

Fora da lógica dos movimentos viciados da esquerda clássica, que acredita na ideia unitária de povo e fora da lógica do mercado, que só pensa nos cidadãos como massa de indivíduos e como consumidores. A multidão é plural e atua no trabalho vivo e imaterial produzido em rede coletivamente e criativamente. Portanto, estancar a força motriz destes movimentos não vai ser tarefa fácil para o Estado-capital, já que o que os move é o comum e o afeto, e o próprio sentido ativo da vida (RENA, 2014).

A multidão e suas atividades – produção, encontro e antagonismo – são inerentes à metrópole, que ao facultar o contato e a proximidade entre pessoas e coisas contribui com a transição da produção material para a imaterial. Isso se dá “em processos que potencializam o trabalho vivo como a produção de ideias, de afetos, de relações sociais e de formas de vida – o comum” (NEGRI; HARDT, 2011, p. 256).

Expressamente, o comum está em pauta, citando novamente Pal Pelbart – podemos observar as revoltas e as manifestações que eclodiram em todo o mundo a partir de 2011. O comum tem a ver com as reivindicações por transporte público gratuito ou mais justo socialmente, assim como com a preservação das áreas verdes e dos espaços públicos, além da luta pelo direito a uma outra democracia real, não apenas representativa e sim direta e horizontal. Os modos de vida na cidade contemporânea requerem cada vez mais o livre compartilhamento do comum. Todas estas expressões estão sendo reivindicadas nas lutas dos mais pobres, dos movimentos sociais e de muitos outros grupos, como parte da reapropriação da cidade (PELBART, 2011).

As ocupações e as manifestações ocorridas entre 2011 e 2014 também proporcionaram a criação do espaço comum. Espaços que não estão sujeitos a ordens

preestabelecidas, que são criados por necessidade ou ação coletiva. O comum implica autogoverno e espaço de “qualquer um”; contestando a propriedade privada, a dicotomia privado-público e a “captura do capital humano” (SERRANO, 2012, p. 45).

O comum é produção, é processo, não pode ser considerado produto de um processo ou de um espaço homogêneo. O comum é conflito, é necessariamente antagonismo, é atravessado por lutas sociais e pautas políticas. E em relação a esta produção do comum, ou ao próprio comum, Negri ressalta que:

[...] é sempre construído por um reconhecimento do outro, por uma relação com o outro que se desenvolve nessa realidade. Às vezes chamamos essa realidade de multidão porque quando se fala de multidão, de fato, se fala de toda uma série de elementos que objetivamente estão ali e que constituem o comum. Mas o problema é simplesmente ser comuns ou ser multidão, o problema é fazer multidão, construir multidão, construir comum, construir comumente, no comum. Este fato é cada vez mais fundamental (NEGRI, 2005, p. 4).

Narrativas micropolíticas

De acordo com Luis Batista (1999), é necessária a compreensão do espaço público contemporâneo e da urbanidade como fator fundamental de subjetivação e da micropolítica. Pois estes sempre estiveram ligados à desordem, à heterogeneidade funcional e à diversidade.

Nesse momento, pensamos em outra cidade, não apenas como aquela homogênea construída pelas forças hegemônicas capitalistas, mas como uma constelação de múltiplos espaços heterogêneos que se encontram ora justapostos, ora separados, sendo, em algumas ocasiões, contraditórios entre si e, em outras, complementares. A cidade seria o conjunto, sempre em processo de se fazer, de agrupamentos com formas mais ou menos definidas. Estas formas são o resultado não da superfície, mas de trajetórias múltiplas que se entrecruzam e cujos resultados são imprevisíveis (MASSEY, 2012). Pois as cidades não comportam apenas uma dimensão macropolítica, mas também micropolítica (GUATTARI, 1992). Buscamos apropriar o termo “micropolítica” de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) para denominar de narrativas micropolíticas estes outros processos e movimentos que escapam, que vão a contrapelo das narrativas dominantes, e que resistem à hegemonia do capital, constituindo territórios alternativos.

Entendemos, assim, as narrativas micropolíticas como movimentos de apropriação do urbano, imbuídas de reivindicações espacializadas, que questionam a ordem socioespacial vigente, ditada por uma ideologia hegemônica (seja do mercado imobiliário, da indústria turística, entre outras).

É fundamental salientar que “macro” e “micro” não se referem a grande e pequeno, tampouco a Estado e sociedade em oposição a casais ou grupos pequenos. Essa diferenciação está relacionada com um funcionamento que só ativa a relação com a alteridade, com o mundo, como uma projeção de nossas representações que a posicionam fora de nós (macropolítica) e uma subjetividade processual, vulnerável à presença do outro.

Igualmente, macro é a política do plano gerado pela linha dos territórios, isto é, aquela que configura o mapa, onde se esboça um encontro de territórios, “imagem da paisagem reconhecível a priori”, já que esse cobre apenas a esfera do visível, é essa linha que recorta os sujeitos, caracterizados por oposições binárias: burguês-proletário, branco-preto, jovem-velho, homem- mulher, etc., assim como também segmenta objetos, unidades de tempo, etc. Em suma, o mapa desenha sujeitos, objetos, unidades de tempo (ROLNIK, 2011, p. 60).

Enfim, ao contrário do macro, o micro é a política do plano gerado pela linha dos afetos, primeiro movimento do desejo (ROLNIK, 2011, p. 31), linha das intensidades não subjetivadas, determinadas por agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1994, p. 513-515) que o corpo produz e, portanto, são inseparáveis de suas relações com o mundo (ROLNIK, 2011, p. 61). (MEJÍA, 2012, p. 3-4).

A micropolítica não se propõe simbolizar, interpretar ou representar nada, mas esboçar cartografias ligadas a determinadas dimensões da multiplicidade, ela pretende devir apenas agenciamentos maquínicos de desejo e coletivos de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 230).

[Pois] a representação, mesmo quando eficaz, bloqueia a democracia, em vez de fomentá-la, na medida em que se traduz como vontade geral, isto é, aqueles previamente selecionados por todos que não respondem à vontade de todos, pois, verdadeiramente, não correspondem a ninguém (HARDT; NEGRI, 2014, p. 45).

Contra isso, a multidão surge como novas formas de colaboração e de fazer com que sejam recusados os mecanismos representativos da democracia burguesa, mesmo quando sob as siglas de esquerda (RENA, 2014).

Assim, é preciso discutir e colocar a frente estas narrativas micropolíticas, em especial, aqui, aqueles que estão produzindo, apropriando e deliberando uma (re)construção subjetiva do espaço urbano da cidade contemporânea. Ou seja, debatendo e formulando ações que constituam novos processos em direção à democracia real (dissensual e direta), que aglutinem horizontalidade, decisão

colaborativa aos processos participativos e experimentação de novos modos de organização nos e dos espaços urbanos, especialmente os públicos, culturais e do conhecimento.

Entendemos, também, que nem todos esses movimentos de fazer cidades alternativas partam exclusivamente de uma postura intencional e ideológica de enfrentamento. Podem partir da falta de opção ou da impossibilidade de serem inseridos na produção e consumo econômico vigente. Ou ainda, pode ser que a opção por esse movimento alternativo nasça simplesmente do desejo de inserção de algo novo, colaborativo, muito mais do que de reação ou enfrentamento à algo. De qualquer forma, este processo e movimento criativos colaboram para este outro fazer cidade como um escape possível, configurando-se em narrativas micropolíticas do direito de qualquer um fazer cidade.

De fato, é uma busca emergencial de espaços compartilhados, comuns, negociados, abertos à atualização a cada movimento, sendo múltiplo, e. principalmente, sendo agenciado pelos atores locais, necessário para outro caminho de produzir cidades.