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TEORIAS DA DEMOCRACIA: DA TEORIA CLÁSSICA À DEMOCRACIA COSMOPOLITA

As origens da democracia encontram-se na Grécia Antiga, por volta dos séculos V e IV a.C., vinculada a polis grega e ao exercício da participação política dos homens livres que atuavam em uma democracia direta, contribuindo para as deliberações do governo por meio da atuação nas Assembléias (22). Seus fundamentos filosóficos estão atrelados ao conceito de soberania popular, em que a participação e a tomada de decisões por parte do povo ocupam um papel central e não devem ser delegados. Essa é a base da teoria clássica da democracia, elaborada no século XVIII, cujo principal teórico foi o filósofo

Rousseau. Os dois pilares desta teoria são o bem comum e a vontade geral (23,24).

Essa concepção clássica foi criticada por Schumpeter, considerado um marco da teoria da democracia representativa – também denominada elitista. É nomeada democracia elitista porque para o autor as questões democráticas devem ser de competência de uma determinada elite, um conjunto de especialistas, e não devem está a cargo das massas, do povo. Ele analisou a democracia nas sociedades modernas e defendeu que nesse contexto a democracia direta era algo irreal, devendo necessariamente ser introduzida a ideia de representação, propondo a substituição da concepção de democracia associada à soberania popular pelo conceito de democracia como método (25).

Para Schumpeter a democracia refere-se a um método político, um meio que possibilita o alcance de determinado fim, qual seja, a tomada de decisões políticas, legislativas e administrativas, por parte dos líderes eleitos pelo povo (25). Ela representa simplesmente um instrumento – e não um fim em si mesma – em que indivíduos, por meio de eleições competitivas, adquirem os votos do povo para, desse modo, exercerem o poder decisório em seu lugar (23-26).

Schumpeter comparava a competição política por votos à operação do mercado; não defendia o sufrágio universal, para ele os únicos meios de participação abertos ao cidadão devem ser o voto para o líder e a discussão. A participação, portanto, não tem papel central. Um número suficiente de cidadãos deve participar para manter a máquina eleitoral (arranjos institucionais) funcionando de modo satisfatório. Desse modo, é uma teoria centrada no número reduzido de líderes (23-25).

Por outro lado, Dahl parte das concepções de Schumpeter e busca ampliá- las, elaborando o que ele denomina de teoria pluralista da democracia, na qual apresenta a democracia como poliarquia – o governo de múltiplas minorias. Para Dahl as eleições funcionam como um ponto central do método democrático porque fornecem o mecanismo através do qual pode se dar o controle dos líderes pelos não líderes. Segundo esse autor, a teoria democrática ocupa-se dos processos pelos quais os cidadãos comuns exercem um grau relativamente alto de controle sobre os líderes (23-26).

Dahl apresenta a hipótese de que uma porcentagem pequena de indivíduos, em qualquer forma de organização social, aproveitará as

oportunidades de tomada de decisão e, portanto, o controle depende do outro lado do processo eleitoral, da competição entre os líderes pelos votos da população; o fato de que o indivíduo pode transferir o seu apoio a um grupo de líderes para outro confirma que os líderes são relativamente afetados pelos não líderes. Defende que a competição é o elemento especificamente democrático do método e que a igualdade política refere-se à existência do sufrágio universal; igualdade de oportunidade de influenciar aqueles que tomam as decisões (23).

De acordo com Costa (26) a democracia poliárquica proposta por Dahl seria um sistema político com seis características: os funcionários são eleitos pacificamente, de modo frequente, em eleições transparentes, sem coerção; eleições livres, justas e frequentes; liberdade de expressão; garantia de direitos dos cidadãos de terem fontes de informações alternativas que não estejam monopolizadas pelos governos e/ou por nenhum outro grupo; autonomia dos indivíduos para formarem associações e cidadania inclusiva. Em síntese, a teoria de Dahl aponta que existem duas variáveis que medem o grau de uma sociedade poliárquica: o grau de participação da população no sistema de competição política e a existência de regras que servirão como normas que regularão os conflitos, que ele denomina de nível de institucionalização. Portanto, tanto para Schumpeter quanto para Dahl a participação política é reduzida à participação eleitoral.

Todavia, o enfoque restrito que a democracia representativa confere à participação – enquanto participação meramente eleitoral – é criticado por vários autores defensores da teoria da democracia participativa, destacando-se Caroline Pateman (23), que faz o contraponto a Schumpeter a partir da análise de teóricos clássicos da democracia participativa, como Rousseau, Stuart Mill e GDH Cole.

Pateman (23) defende a tese sobre a efetividade da participação direta da cidadania com base especialmente nos estudos realizados por GDH Cole. Além disso, autores como Dagnino, Olvera, Panfichi, Avritzer e Boaventura de Sousa Santos também destacam as limitações da teoria da democracia representativa e referem que ela reduz o conceito de política à luta pelo poder, traduzida enquanto “el logro de la autorización y la representación a través de las elecciones” (27).

Para eles a teoria da democracia participativa fundamenta-se na ampliação do conceito de política através da participação cidadã nos processos de deliberação em todos os espaços e esferas públicas que abordem questões

relativas ao conjunto das sociedades, e está associada à ideia de um sistema articulado de instâncias de participação, intervenção e controle social dos cidadãos sobre as ações do governo. A participação é, portanto, concebida enquanto elemento central, relacionado intrinsecamente com a emancipação social e com potencial de promover transformações nas sociedades (27).

Nesse sentido, Santos (28) propõe uma forma de classificação hierarquizada da democracia, cuja intensidade democrática é definida pela capacidade de compartilhamento do poder, pela reciprocidade do reconhecimento e pela democratização e valorização das formas de produção de saberes forjados na ação política, uma vez que defende que não há democracia das práticas sem democracia dos saberes.

A partilha de poder deve ser orientada à construção de uma agenda que não se limite ao âmbito local, mas que busque potencializar os processos de luta antineoliberal por meio da articulação das lutas locais, regionais e nacionais (29), haja vista que as mudanças no cenário mundial decorrentes da reestruturação produtiva e globalização aprofundaram as desigualdades sociais e conduziram à diminuição da capacidade de influenciar nas ações do governo, à perda da legitimidade democrática, perda da credibilidade das instituições políticas e dos processos de participação na democracia representativa, produzindo um cenário social de baixa intensidade democrática (29-31).

No entanto, a imposição da democracia de baixa intensidade realizada pelos países ricos aos periféricos enfrenta resistências das classes populares que se expressam em processos potentes de participação que incluem novos atores sociais, revelando formas de democracia participativa. A participação de alta intensidade democrática refere-se a uma participação que busca identificar e transformar relações assimétricas de poder e implica, necessariamente, na ampliação dos espaços políticos e consequente indução de mudanças no interior da estrutura do Estado, relativa aos aspectos como a representatividade, legitimidade, participação e mobilização social (29,32).

Com efeito, induzir a permeabilidade do Estado, ou de qualquer outra arena, fórum, grupo ou agências, que tratem de questões referentes às políticas públicas é fundamental para a consolidação de processos democráticos na perspectiva participativa. Sabe-se que o processo de globalização vivido nas últimas duas décadas conduziu a um enfraquecimento do poder dos Estados-

Nação e que isto influenciou as formas de participação e organização dos movimentos e da sociedade civil, bem como as formas de democracia vigentes.

Costa (26) pondera que os estados-nação têm passado por profundas mudanças, acarretadas pela perda da relevância das suas fronteiras, da capacidade de regulação do capital e de sua capacidade redistributiva. Destaca três principais mudanças: a primeira delas refere-se ao surgimento de movimentos de resistência cultural regionais, envoltos em processos de (re)afirmação de identidades locais, que surgem como reação à “pressão homogeneizadora de uma cultura mundial” e atualmente articulam o local ao global, por meio de relações diretas, sem mediação.

A segunda mudança relaciona-se à intensificação dos movimentos migratórios do sul para o norte, que tem reconfigurado as democracias maduras, tanto no sentido da ampliação da pluralidade quanto em seu pólo oposto, de (re)ascensão de sentimentos nacionalistas e da segregação. Apesar disso, afirma que atualmente existe uma tendência à valorização da diversidade cultural e repulsa à assimilação cultural.

Por fim, a terceira transformação refere-se à emergência das mobilizações sociais transnacionais e ampliação das formas de comunicação e dos intercâmbios entre atores sociais de todo o mundo, que têm ampliado as trocas materiais e simbólicas entre os povos, disseminando novos estilos de vida e de formas de ver o mundo, bem como à desterritorialização das manifestações culturais.

Todas essas mudanças vêm conduzindo a uma redefinição do funcionamento e do papel do estado-nação. Os defensores das teorias da democracia cosmopolita argumentam que essas novas configurações do Estado seriam justamente os elementos promotores de formas inovadoras de governo que indicam a emergência de uma democracia cosmopolita (26). Para os democratas cosmopolitas a ascensão dos inúmeros atores sociais articulados no interior de fóruns e lutas comuns, cujas bandeiras referem-se às questões que estão para além das fronteiras territoriais e associadas às causas mais globais, tais como a justiça social e o meio ambiente, evidenciam a existência de uma “sociedade civil global” (26).

No entanto, Costa (26) discorda da concepção de “sociedade civil global”, uma vez que ela sugere que está sendo construída uma agenda social global que

representa e é submetida à aprovação de uma esfera pública mundial democrática e isso, segundo ele, não estaria acontecendo. Além disso, pondera que a profusão de mobilizações transnacionais de atores não estatais, ao contrário de revelar a existência de uma suposta sociedade civil global, expressam em verdade uma multiplicidade de redes temáticas fragmentadas. Ademais, afirma que os problemas normalmente são tratados em espaços transnacionais segmentados em que somente uma elite de militantes tem acesso e conclui afirmando que a retórica da democracia cosmopolita, em verdade, oculta a desigualdade na distribuição de chances e de poder vigente na política mundial.

Como se pode observar, a democracia cosmopolita ainda é muito controversa. No contexto brasileiro as discussões parecem girar mais fortemente em torno da teoria da democracia participativa, tanto no que se refere à esfera da sociedade política como também da sociedade civil, especialmente no âmbito dos movimentos sociais, sejam quais forem suas formas de expressão. Todavia, independentemente do tipo de democracia, o que a realidade da sociedade contemporânea tem sinalizado, tanto em nível nacional como especialmente no contexto internacional, é uma reafirmação do ideal democrático e uma ampliação das lutas sociais relacionadas ao mesmo, tal como foi o processo desencadeado pela “Primavera Árabe”.

No entanto, é curioso observar que a afirmação e as lutas pela democracia se dão sob múltiplas formas de expressão dos movimentos sociais, que atuam de modos distintos e carregam também outros valores, sentidos e razões que parecem transitar entre a modernidade e a pós-modernidade.

3.3 MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: ENTRE O CLÁSSICO E O