• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – Enquadramento Teórico

Capítulo 3. Estudo das decisões judiciais

1. Teorias explicativas da discricionariedade

O processo de tomada de decisão judicial, ainda que se deva basear na aplicação da lei, é também, inevitavelmente, influenciado pelo sistema de crenças do magistrado em questão. Além do mais, os decisores judiciais são, eles próprios, o resultado das suas experiências pessoais e influenciados por fatores como a política, a cultura, a sociedade, entre outros. A decisão judicial produzida não é, portanto, isenta de subjetividade, uma vez que no momento de análise e interpretação dos factos não é possível eliminar a componente humana que subjaz a ponderação que é feita tendo em conta os elementos disponíveis.

Há quem parta da teoria da escolha racional para desenvolver modelos de tomada de decisão. Segundo esta perspetiva, para uma escolha poder ser classificada como racional, é necessário que seja efetuada mediante o conhecimento de todas as alternativas possíveis. Ainda assim, aos magistrados está acessível apenas uma fração das alternativas disponíveis, sendo que este conhecimento parcial gera incerteza junto dos mesmos. Para poderem ultrapassar este entrave, os procuradores recorrem a modelos de organização mediante a utilização de procedimentos padrão que irão mitigar a incerteza com base na procura por soluções satisfatórias ao invés de ótimas (March & Simon, 1958, cit. in Albonetti, 1986, 1987).

De entre as perspetivas explicativas existentes relativas à discricionariedade nas sentenças, aquela que tem assumido um lugar de destaque na literatura é a perspetiva das preocupações focais (Focal Concerns’ Perspective). Introduzida por D. J. Steffensmeier (1980), esta teoria diz-nos que as sentenças evidenciam três preocupações centrais dos juízes, designadamente o grau de culpa do perpetrador, a proteção da comunidade e as consequências práticas das decisões judiciais.

O grau de culpa do ofensor está, necessariamente, relacionado com considerações legais, como a severidade da ofensa por exemplo, já que a pena a aplicar é determinada em função da culpabilidade do arguido e do nível de danos causados à vítima. Outro fator que também contribui para o apuramento do grau de culpa do agressor é o tipo de envolvimento por parte do mesmo no cometimento do crime (enquanto autor material, coautor ou instigador…), bem como a existência de registo criminal anterior que, neste caso, intensifica a perceção de risco e culpabilidade do ofensor.

43

A proteção da comunidade está associada à necessidade de incapacitar ofensores perigosos e ainda de atuar com vista a dissuadir potenciais ofensores. Visto que as decisões dos juízes se destinam a assegurar a proteção do público e a prevenir a reincidência é necessário avaliar o risco que o réu constitui para a restante sociedade. Para tal são tidos em conta vários fatores como características do arguido, designadamente consumos aditivos por parte do mesmo e a existência de laços comunitários, o facto de o arguido já possuir um considerável número de delitos anteriores também influencia a decisão, pois, deste modo, será percecionado como menos suscetível de reabilitação.

Ao nível das consequências práticas das decisões judiciais, estas referem-se tanto a consequências organizacionais como individuais, estando as primeiras relacionadas com o impacto que as decisões provocam no funcionamento do sistema de justiça criminal e as últimas com as circunstâncias individuais do ofensor e da sua família e comunidade em que se encontra inserido. Relativamente às consequências que advêm para o suspeito ofensor, poderão ser ponderadas pelo aplicador do Direito, preocupações relativas a necessidades especiais do arguido, à capacidade do mesmo para cumprir a pena, à interrupção de vínculos familiares, etc. No que reporta às consequências do foro organizacional, as mesmas encontram-se associadas à gestão dos recursos disponíveis e à lotação do sistema prisional assim como à necessidade de assegurar o fluxo constante dos processos da forma mais eficaz possível (D. Steffensmeier, Ulmer, & Kramer, 1998).

Dado que os juízes nem sempre têm na sua posse informação suficiente que lhes permita determinar de forma precisa a culpabilidade ou perigosidade do ofensor, não podem, como tal, fazer uma escolha racional. Neste sentido, estes profissionais desenvolvem uma perceção abreviada, a perceptual shorthand, baseada em estereótipos e atribuições relacionadas com características do ofensor como a idade, o género e a raça que lhes permitirá ultrapassar estas limitações. Logo, “race, age, and gender will interact to influence sentencing

because of images or attributions relating these statuses to membership in social groups thought to be dangerous and crime prone” (D. Steffensmeier et al., 1998).

Os autores comprovaram ainda que ofensores do sexo masculino, jovens (entre os 20 e os 30 anos) e de raça negra são punidos mais severamente do que mulheres caucasianas de meia idade ou ainda mais velhas. Estes resultados atestam que, embora os fatores legais sejam ponderados na tomada de decisão, também fatores extralegais influenciam a fase decisória, estando ainda em consonância com a perspetiva das preocupações focais.

44

Albonetti (1986), por sua vez, apresenta a teoria de evitar a incerteza (Uncertainty

Avoidance Perspective). A autora na construção desta perspetiva parte do pressuposto de que o sucesso de um procurador é determinado em função da obtenção de condenações. Nas palavras da própria “(…) prosecution is mobilized around concerns for uncertainty avoidance

linked directly to concerns for career success” (p. 638).

Visto que não está ao alcance dos decisores a previsão do comportamento dos restantes intervenientes no processo e que apenas têm conhecimento de uma parcela das alternativas possíveis, a antecipação do desfecho judicial é caracterizada pela incerteza. Assim, especificamente em relação à decisão de acusar, a incerteza advém da incapacidade dos magistrados controlarem o comportamento do arguido, do advogado de defesa ou do júri. Na tentativa de evitarem a incerteza, os magistrado acabam por optar acusar quando a probabilidade de obtenção de uma condenação se revela favorável e decidem não o fazer nos casos em que o veredicto condenatório não parece alcançável (Albonetti, 1987).

Posteriormente, Albonetti (1991) aplica a teoria de evitar a incerteza às decisões tomadas pelos juízes, sustentando que estes procurariam gerir a incerteza na determinação da sentença através do desenvolvimento de “respostas padronizadas” (patterned responses) que são produto de um processo de atribuição influenciado por juízos causais. Desta forma, os juízes sustentar-se-iam em estereótipos envolvendo a raça, género e as decisões em fases anteriores do processo, estabelecendo uma relação entre estes e a probabilidade de existência de atividade criminal futura. Assim, a incerteza envolvida na tomada de decisão judicial provém da impossibilidade de prever de modo fidedigno o comportamento futuro do infrator. Socorrendo-se de características do ofensor como as habilitações literárias, dependências, a situação profissional do arguido e de circunstâncias do crime como o uso de arma, etc., os juízes avaliam a propensão do arguido vir a reincidir futuramente.

Esta autora avança ainda com a hipótese de que a discriminação e disparidades existentes nas sentenças judiciais podem ser o resultado de tentativas por parte dos juízes para atingirem a racionalidade limitada (bounded rationality) na condenação e, deste modo, absorver a incerteza, sugerindo que fatores extralegais respeitantes ao arguido que terá maior probabilidade de reincidir poderão influir na tomada de decisão (Albonetti, 1991).

Frohmann (1997) sugere que o critério utilizado pelos procuradores para determinarem que casos irão seguir para julgamento prende-se com a obtenção de um veredicto condenatório. Isto faz com que, quando confrontados com a necessidade de optar por avançar com o caso (ou não o fazer), os mesmos procurem prever de que forma o historial,

45

comportamento e motivações do suspeito e da vítima, bem como o próprio incidente, serão interpretados e avaliados pelos restantes decisores e, particularmente, pelos jurados. Desta maneira, a antecipação por parte do magistrado de que não conseguirá obter uma condenação através do júri por exemplo, legitima a rejeição do caso. A incerteza subjacente a estas predições conduz os procuradores a desenvolverem também eles perceptual shorthand que incorpora estereótipos acerca do que podem ser considerados crimes reais e vítimas credíveis. Estes estereótipos podem derivar tanto da opinião do próprio magistrado, como serem a manifestação da opinião do júri.

Como tal, os procuradores ponderam, não só, elementos legais respeitantes à gravidade do caso e à culpabilidade do ofensor, mas também são alvo de escrutínio fatores como o caráter da vítima, a sua relação com o suspeito e a disponibilidade da mesma em cooperar no decorrer do processo. São, assim, contrabalançadas as provas que poderão fortalecer a acusação, em detrimento de fatores extralegais que possam diminuir as hipóteses de obtenção de um veredicto condenatório (Frohmann, 1997).

O estudo de Spohn, Beichner, & Davis-Frenzel (2001) propõe-se a replicar e expandir o trabalho desenvolvido por Frohmann (1997), analisando de igual modo as justificações apresentadas pelos procuradores para a rejeição de casos.

É também sugerido pelos autores que a decisão de acusar por parte dos magistrados é orientada por um conjunto de preocupações focais, à semelhança do estabelecido por D. Steffensmeier et al. (1998) para os juízes.

Embora os dois grupos de profissionais tenham em consideração o grau de culpabilidade do ofensor, a severidade da ofensa e os danos resultantes para a vítima, as suas preocupações diferem no que toca às consequências práticas das decisões judiciais. Aos juízes importa sobretudo ponderar os custos sociais da punição, enquanto que aos magistrados o que interessa é a obtenção de um veredicto condenatório. Deste modo, há uma maior probabilidade de um procurador optar pela acusação nos casos em que o crime é grave, quando a evidência probatória existente é robusta e quando há vestígios de lesões na vítima.

Particularmente nos processos de violação, os autores apontam a credibilidade da vítima como sendo uma das principais preocupações por parte dos magistrados. Inclusivamente, é dito por um procurador que processa casos de violação há mais de oito anos que “As long as I

have sufficient belief in the victim’s credibility, I can overcome almost everything else. The bottom line is whether the jury will believe the victim. Rape cases rarely involve witnesses

46

and don’t always involve physical evidence, so it all comes down to the victim and her credibility.” (Spohn, Beichner, & Davis-Frenzel, 2001).

Dado que a credibilidade da vítima se revela um elemento central nos crimes de violação, como mais adiante iremos ter possibilidade de comprovar, a perceptual shorthand desenvolvida pelos magistrados a fim de reduzir a incerteza e assegurar a condenação jaz essencialmente em estereótipos relativamente às vítimas de violação, à violação em si e a comportamentos relevantes nesse contexto (Spohn et al., 2001).