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Teorizações sobre a influência do papel do Estado nas relações de género

5. Abordagens pluralistas: entre o estruturalismo e o construtivismo social

5.3. Teorizações sobre a influência do papel do Estado nas relações de género

sobre o género, têm atribuído particular ênfase ao papel do Estado. Além das perspectivas que entendem que, invariavelmente, em todos os seus momentos históricos e em todas as sociedades, o Estado perpetua as estruturas patriarcais, sendo portanto fonte de opressão das mulheres (cf. Eisenstein, 1978; cit. in Fagan, 1998:s/p), destaca-se também a tese segundo a qual o Estado é uma entidade patriarcal e capitalista, ainda que susceptível de algumas variantes. De acordo com esta última linha de raciocínio, o Estado não é concebido como uma entidade

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monolítica, mas sim como uma instituição permeável à dinâmica dos processos culturais, sociais, políticos, económicos e históricos peculiares de cada sociedade. As orientações estatais dependem dos processos de conflito, emanados das relações de classe e das relações de género. Estas teses sublinham que uma análise que incida sobre os conflitos de género, em particular, permitirá verificar que os conflitos, no caso dos países escandinavos, foram decisivos na edificação de um quadro legal e de um Estado-providência mais favoráveis às mulheres (women-

friendly) (Kolberg, 1991, cit. in Fagan, 1998: s/p; veja-se também Hirdman, 1998;

Mahon, 1998).

Esta segunda perspectiva, porém, reflecte alguns matizes: nela encontramos olhares mais optimistas quanto à possibilidade de as relações patriarcais poderem ser modificadas por via da intervenção do Estado (Kolberg, 1991, cit. in Fagan, 1998: s/d), até ao argumento de Sylvia Walby. Para esta autora, pese embora as diferentes formas e graus, qualquer Estado é sempre patriarcal prevalecendo enquanto entidade opressiva das mulheres. No mesmo registo de argumentação, outra teses têm evocado que, mesmo nos países escandinavos, as políticas estatais não têm conseguido debelar o problema da desigualdade de género, sobretudo na esfera privada, não resolvendo a questão da articulação entre o trabalho remunerado e o trabalho doméstico/familiar. Aliás, os mercados de trabalho na Escandinávia são profundamente segmentados - realidade que decorre também do facto de as políticas entretanto gizadas, seja a nível europeu ou nacional, repousarem na falsa neutralidade de género, descurando que os seus efeitos não são idênticos para homens e mulheres (Borchorst, 1990, cit. in Fagan, 1998:s/p; Leira, 1998, 2001; Mahon, 1998).

As teorias que, no âmbito dos estudos sobre o género, se têm centrado nesta temática, analisam em particular as orientações dos Estados-providência. Além do papel crucial que este desempenha nas relações de emprego, é relevada a sua influência no domínio das relações de género. Neste sentido, a centralidade do Estado-providência advém do facto de a sua actuação ser fundamental quer no incentivo (ou desencorajamento) da participação das mulheres no mercado de trabalho, quer no grau de modernização (ou de tradicionalismo) das relações de género na família e na sociedade em geral. No fundo, a questão essencial é a de saber em que medida é que os Estados-providência actuam no sentido de atenuar as desigualdades sociais, incluindo entre homens e mulheres, ou se, pelo contrário, contribuem para reproduzir e reforçar as assimetrias produzidas no âmbito do sistema capitalista e no sistema de género (cf. e.g., Lewis, 1992; Orloff, 1993, cit. in Mahon, 1998: 154; Guerreiro e Romão, 1995; Wall, 1996, 2003; Leira, 1998, 2001; Hirdman, 1998; Fagan, 1998; Drew, 1998; Daly e Lewis, 2000; Perista e Lopes, coord., 1999; Torres et al., 2004).

A maioria das análises feministas tem partido de uma reflexão crítica relativamente à tipologia de Estados-providência elaborada por Esping-Andersen

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(1990). A tese central do autor é a de que o sistema de relações industriais, o sistema educacional e o Estado-providência são instituições cruciais da estruturação do emprego. Contudo, aquele último tem um papel crucial no encorajamento (ou desencorajamento) do processo de desmercadorização

(decommodification) dos indivíduos.25 Quando a consagração dos direitos sociais se

processa à margem da dependência em relação ao mercado, dá-se um processo de

desmercadorização ou de independência individual (1990: 21-22). No início da

década de 1990, e a partir das diferentes filosofias dos Estados relativamente à

desmarcadorização, Esping-Andersen propôs uma tipologia de regimes de Estados-

providência. Esta resultou de uma abordagem centrada nas causas estruturantes e nas forças históricas e institucionais, bem como na diversidade de trajectórias de desenvolvimento e maturação dos respectivos Estados. O autor procurou contemplar as características dos direitos sociais, a posição dos indivíduos no mercado de trabalho e a inerente estratificação social, assim como a relação entre Estado, mercado e família.

Nesta tipologia são identificados três tipos ideais de Estados-providência: o liberal ou anglo-saxónico, o continental ou corporativo, e o social-democrata. Segundo o raciocínio de Esping-Andersen, os Estados inspirados na filosofia política da social-democracia intervêm no sentido de regular o mercado de trabalho, tendem a desenvolver políticas sociais que vão ao encontro dos interesses dos trabalhadores, e promovem a solidariedade e a cidadania social por via da igualdade de estatuto (todos os indivíduos, independentemente da classe ou da posição no mercado, são abrangidos pelos mesmos direitos sociais) (Esping-Andersen, 2000: 25). Dito de outro modo, as políticas sociais têm uma abrangência universal e não se limitam à vinculação laboral e contributiva, ao invés do que sucede com os Estados- providência de tipo corporativo e de tipo liberal (Esping-Andersen, 1990, 2000). Para Esping-Andersen (1990), como já aqui se evocou, os Estados-providência têm um papel fundamental no incentivo ao processo de desmercadorização do trabalho, o qual é visto como um pré-requisito da independência dos indivíduos e da consagração da cidadania social. Todavia, como sublinha Jane Lewis (1992:161), o trabalhador que o autor tem em mente é do sexo masculino; as mulheres que não participam na actividade económica estão, por sua vez, ausentes da tipologia proposta. No mesmo timbre Evelyn Mahon ressalta que o processo de

desmercadorização difere entre os homens e as mulheres; em muitos Estados, a mercadorização dos primeiros assentou num processo de desmercadorização das

segundas, isto é, numa relação de dependência das mulheres relativamente às políticas públicas de bem-estar (situação que esteve longe de as tornar ‚mais independentes ou mais cidadãs‛) (1998:153).

25 Por oposição a mercadorização, conceito que se refere ao facto de a sociedade capitalista ter imposto a

cada indivíduo a necessidade de vender a força de trabalho para poder sobreviver (cf. Esping- Andersen, 1990).

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A tipologia de Esping-Andersen não contempla a relação entre o Estado- providência e o trabalho não-pago - domínio onde se incluem vários serviços sociais que não têm lugar na esfera formal e que são providenciados pelas famílias,

i.e., preponderantemente pelas mulheres (Orloff, 1993). Autores como McLaughlin

e Glendinning (1994) referem que, para além da desmercadorização, é fundamental o conceito de desfamiliarização na an{lise da dicotomia entre ‚dependência‛ e ‚independência‛ (cit. in Mahon, 1998: 158).26 Nesta óptica, as mulheres só serão

‚independentes‛, e só beneficiarão de real liberdade de opção e de escolha, quando as famílias (leia-se as mulheres) estiverem isentas das responsabilidades pela prestação de cuidados de bem-estar à família (e.g. Lewis, 1992, 1998; Daly e Lewis, 2000).

Ainda que não tenha desenvolvido o raciocínio, Esping-Andersen sugere que os regimes de Estado-providência social-democratas são mais favoráveis à igualdade de género, porquanto perseguem uma filosofia de emancipação relativamente à família tradicional (1990: 28). Todavia, Leira (1998) sustenta que, quando se analisa o padrão de relações de género na Noruega, logo caem por terra os princípios delineados por Esping-Andersen quanto às características do modelo de Estado- providência escandinavo (cit. in Lewis, 1992: 162; veja-se também Leira, 1998). Esta posição traduz, portanto, a necessidade de integrar a dimensão relações de género, bem como o papel das redes de apoio familiares e de prestação de cuidados informais na análise da provisão do bem-estar social.

Jane Lewis (1992, 1998) é, neste debate, uma autora de referência. Primeiramente, a autora critica o modelo proposto por Esping-Andersen alegando que este apenas se concentra na dimensão económica, isto é, nas implicações das políticas sociais emanadas dos Estados-providência na esfera do emprego e nas relações de classes (incentivo ou não à desmercadorização do trabalho). Além de subestimar o trabalho não-pago e a prestação de cuidados que tem lugar à margem do sector formal, o autor não contempla os efeitos das políticas no plano sociocultural e nas relações de género. Num segundo momento, J. Lewis propõe uma tipologia que reflecte a forma como os papéis sociais de homens e mulheres são perspectivados pelos diferentes Estados-providência. À luz do raciocínio da autora, todos os Estados modernos subscreveram de algum modo o modelo masculino de provedor de

26 Todavia, o autor viria mais tarde a integrar esta crítica no seu pensamento, sublinhado precisamente,

que redutor centrar a análise do bem-estar social apenas nos regimes dos Estados-providência, na medida em que, na sociedade, a família tem um papel preponderante nesse capítulo (cf. Esping- Andersen, 2000: 82).

Pereirinha (1997) sublinha, igualmente, que a tipologia desenvolvida por aquele autor, ao circunscrever-se ao sector formal da economia, exclui da sua análise o sector informal - aliás, preponderante nos países do Sul da Europa; ao mesmo tempo, subestima o papel fundamental dos mecanismos de solidariedade dinamizados pelas redes informais de apoio existentes nas sociedades civis destes países. Neste sentido, importará que as conceptualizações sobre o Estado-providência não se confinem às relações entre o Estado e o mercado formal, mas que abranjam o papel desempenhado pela sociedade civil em geral, desde o agregado doméstico ao sector dos serviços de proximidade prestados em regime voluntariado.

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subsistência económica (the breadwinner model), ainda que com cambiantes e evoluções relativamente diferenciadas. É então possível, a seu ver, identificar três tipos de Estados-providência:

Estado-providência assente no modelo masculino de provedor de subsistência económica

Este tipo de Estado parte do pressuposto que o homem é o provedor dos meios de subsistência da família e que à mulher cabem as responsabilidades da esfera doméstica e familiar, havendo portanto uma tradição de separação rígida entre a esfera pública e a privada. Os sistemas fiscais baseiam-se na noção de agregado familiar. O sistema de segurança social prevê benefícios sociais para as mulheres dependentes (direitos derivados das contribuições dos cônjuges), pelo que se subentende que os homens beneficiam de segurança social e as mulheres de assistência social. As políticas do foro familiar estimulam as situações em que os cuidados à infância ou a outros dependentes (idosos, doentes ou deficientes) são prestados pela família (ou seja, pela mulher). Nestes casos, a licença parental, além de prolongada, é pouco ou nada remunerada (logo, a probabilidade de ser usufruída pelos homens pais é praticamente nula). A este facto alia-se a escassez de facilidades públicas de apoio às famílias, a rigidez dos horários escolares e a ausência de alternativas extracurriculares (e.g. Inglaterra e Irlanda).

Estado-providência parcialmente assente no homem como provedor da subsistência económica.

Neste caso, ao contrário do modelo anterior, constata-se uma tradição de participação feminina no mercado de trabalho. O Estado tende a promover um conjunto de políticas de inspiração pró-natalista, as quais se destinam a compensar as famílias pelos custos inerentes à natalidade, à manutenção e à educação das crianças. São também concedidas licenças remuneradas de assistência à família, que coexistem com uma rede ampla de serviços públicos de apoio, sobretudo no que concerne à infância (e.g. França).27

Estado-providência pouco assente no homem como provedor da subsistência económica

O Estado, ao abrigo da orientação política dos governos social-democratas, assume que todos os indivíduos adultos em idade activa devem participar na actividade

27 Rachel Silvera (2002) salienta, fundamentalmente, a prevalência de políticas ambíguas neste tipo de

Estados, as quais ora apoiam, ora desencorajam, a participação das mulheres na actividade económica (incluem-se aqui a França, a Bélgica e a Holanda). Nestes casos, um sistema de protecção social vinculado à carreira contributiva coexiste com uma concepção tradicional de família.

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económica. No caso da Suécia, em particular desde os finais da década de 1960,28

têm sido definidas políticas e medidas tendentes a promover a taxa de actividade feminina. O sistema fiscal e o de segurança social assentam, desde 1971, na noção de indivíduo (sistema de tributação individual). Um dos princípios da social- democracia, debatido e reforçado pelas mulheres deste filão político, é o de que a igualdade pressupõe a não existência de subordinação económica entre os indivíduos. É da responsabilidade do Estado criar e sustentar as condições para que homens e mulheres sejam independentes. Desde então, foi desenvolvida uma ampla rede de infraestruturas de apoio às crianças. Ao mesmo tempo, definiram-se várias políticas e incentivos no âmbito da conciliação entre a vida familiar e a profissional e da igualdade de género. No entanto, continua a recair sobre as mulheres a responsabilidade do trabalho não-pago, o que significa que as relações de género na esfera privada pouco se têm alterado. O facto de as licenças parentais serem usufruídas essencialmente por mulheres fomenta, também, a segregação sexual no mercado de trabalho.

Todavia, a tipologia formulada por Lewis, salvo o seu inegável préstimo analítico e a tónica que coloca na relação entre trabalho pago e trabalho não-pago, não releva o facto de os próprios Estados-providência e as políticas sociais serem influenciadas pelas ideologias de género. É neste sentido que nos parece fundamental introduzir o argumento de Birgitt Pfau-Effinger (1998); como se verá no capítulo seguinte, para esta autora, cada Estado-providência tem incrustadas pressuposições ideológicas dominantes em torno do papel social de homens e mulheres. Nas sociedades em que o contrato de género é mais igualitário, como é caso dos países escandinavos, o Estado tem activamente apoiado a participação dos homens e das mulheres no mercado de trabalho (cf. Duncan, 2000; Crompton, 2002).29 Neste âmbito, a autora defende a necessidade de uma abordagem que

28 Até esta altura, prevalecia na Suécia o modelo tradicional de divisão entre o espaço público

(participação masculina) e o espaço privado (domínio feminino). Para um maior desenvolvimento em torno da evolução deste modelo na Suécia, vide Lewis (1992); Leira (1998, 2001).

29 Todavia, a partir das análises e dos estudos por nós consultados, fica clara a percepção de que é

ilusória a representação de um modelo escandinavo coerente, homogéneo e coeso. Na verdade, são várias as dissimilitudes nos processos de industrialização, de modernização e, posteriormente, de terciarização, bem como no campo das políticas de emprego, sociais e familiares. Na Noruega, por exemplo, o modelo da mulher doméstica foi mais vincado do que em qualquer outro país daquele grupo de países. Constata-se ainda uma discrepância importante nos padrões de participação feminina na actividade económica, distinguindo-se as Finlandesas, relativamente às Suecas, por um registo de participação mais intensivo, a tempo inteiro (todavia, importa referir que uma proporção significativa destas mulheres se encontra a beneficiar de uma licença parental e que, pese embora estarem contabilizadas nos números da população activa, não estão efectivamente a trabalhar fora de casa). Na Suécia, a par dos equipamentos públicos de apoio à infância, as políticas tendem a incentivar a flexibilidade de tempo trabalho, e as mulheres tendem aqui a prestar actividade em horários reduzidos. Ainda, enquanto o Estado na Finlândia tem procurado providenciar subsídios para assistência a crianças pequenas (políticas individuais), a Suécia tem insistido fundamentalmente na disponibilização de instituições colectivas socioeducativas e de guarda de crianças (políticas colectivas) (cf. Pfau-Effinger, 1999; Bang, Jenson e Pfau-Effinger, 2000; Leira, 1998, 2001).

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procure apreender a malha complexa de inter-relações que se estabelece entre as instituições, a cultura e as acções sociais – desafio que passa pelo recurso à abordagem de gender-arrangement, a qual sistematizamos no ponto que se segue.

5.4. Teorias sobre a influência dos sistemas culturais na configuração dos