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1. OS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS SOB O PRISMA DA IGUALDADE RACIAL

1.5 A terceira geração de direitos e o negro

É usual a menção de que os direitos de terceira geração transcendem o âmbito de proteção dos direitos de primeira geração e dos direitos de segunda geração. Os primeiros conferem poderes e garantias ao indivíduo perante o Estado e os segundos tutelam interesses de um grupo social, ao passo que os direitos de terceira dimensão destinam-se a um conjunto indeterminado de pessoas:

Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar- se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário de gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.78

Em função dessa perspectiva que esses direitos são chamados de direito de solidariedade ou de fraternidade:

77 Do mesmo modo que Marx compreende que se os direitos humanos, a seu tempo, direitos de primeira geração, não trouxe o reino dos céus à Terra, eles constituem um avanço dentro das possibilidades de seu tempo: “A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática”. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 41.

45 O reconhecimento dos direitos sociais não pôs termo à ampliação do campo dos direitos fundamentais. Na verdade, a consciência de novos desafios, não mais à vida e à liberdade, mas especialmente à qualidade de vida e à solidariedade entre os seres humanos de todas as raças ou nações, redundou no surgimento de uma nova geração ‒ a terceira ‒ , dos direitos fundamentais.79

Observe-se que o critério do sujeito titular do direito, seja o indivíduo, o grupo ou a coletividade, é complementado com a noção segundo a qual esses direitos são dotados de valores de alto grau de humanismo.

Esses critérios merecem alguns esclarecimentos. Os direitos de terceira dimensão realmente tutelam interesses de uma coletividade indeterminada de pessoas, basta lembrarmos o direito a viver em um meio ambiente sadio ou então o direito à conservação do patrimônio histórico. Nessas situações, é impossível atribuir a titularidade desses direitos a somente uma pessoa ou então a um grupo, de forma que outras pessoas não sejam também titulares do direito. Todavia, entre os direitos de terceira geração, há um grupo de direitos em relação aos quais se identifica distintos graus de interesse das pessoas em relação aos bens por eles tutelados, é o caso dos direitos de cunho antidiscriminatório. Evidente que se pode afirmar o interesse geral da sociedade em viver em um mundo sem discriminação. Porém, não podemos desconsiderar que há pessoas conscientemente contrárias a esses direitos. Em uma perspectiva ideal, toda a humanidade almeja viver fraternalmente, contudo o racismo, o machismo e outras concepções hierarquizantes permanecem em nosso tempo. Igualmente, o alto grau de humanismo atribuído aos direitos de terceira geração também pode ser atribuído aos direitos de outras gerações, ao menos no que diz respeito aos valores a eles subjacentes, não excedendo lembrar que entre o discurso e a realidade existe ainda uma grande distância a ser vencida, na medida em que a liberdade e a igualdade não fazem parte do cotidiano de todos aqueles seres humanos que vivem em sociedades que adotam esses direitos em suas constituições ou em seus compromissos internacionais.

Dito isso, entre os documentos que carreiam direitos de fraternidade, temos a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 21 de dezembro de 1965. Pode-se considerar a convenção como o mais importante compromisso internacional para a solução dos

79 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 57.

46 problemas decorrentes da discriminação racial, razão pela qual é um dos documentos mais relevantes na perspectiva do negro.

Por certo todo o desenvolvimento dos direitos humanos e direitos fundamentais é importante para a situação dos negros. Os direitos de primeira dimensão, como vimos, estendeu o reconhecimento da liberdade e da igualdade ao gênero humano, embora na prática ainda tenha convivido com a escravidão, servindo, porém, como argumento na luta contra a escravatura. Também possuem sua relevância os direitos que visam assegurar condições sociais mais benéficas ao grupo social que vende sua força de trabalho, garantindo-lhe acesso à educação, cultura, assistência social e direitos trabalhistas, melhorando, assim, a situação social do negro.

Entretanto, a Convenção ataca a discriminação racial, que serve de barreira para que o negro tenha acesso integral aos direitos garantidos nas outras gerações. Ademais, esse documento foi inspirador para os movimentos sociais na luta por respeito e dignidade.

Trataremos mais detidamente da discriminação racial nos capítulos posteriores e veremos que a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial servirá de fundamento para a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial. Por ora importa lembrar que há juristas que advogam a tese de que existem outras dimensões de direitos, há quem fale em quarta, quinta, ou sexta dimensão, que seriam direitos relacionados à segurança genética, à água potável, à democracia, à informática, além de outros. Por outro lado, já se argumentou que essas novas dimensões ou gerações seriam um açodamento, na medida em que se poderia enquadrar esses novos direitos nas dimensões já existentes.

Considerando o escopo de nosso estudo, ao tratarmos da terceira dimensão de direitos atingimos aquela em que se trata especificamente da situação do negro e nos cabe agora enfrentar a forma pela qual, nos dias atuais, esses direitos são interpretados e aplicados.