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3. APRESENTAÇÃO DA ENTIDADE DE ACOLHIMENTO

3.3. A NOZERO – B IENAL DE A RTE C ONTEMPORÂNEA DE C OIMBRA

3.3.1. A Terceira Margem – The Third Bank

O Rio Mondego é uma das referências de Coimbra, transmitindo uma imagem de continuidade e de impermanência, criando uma poética na cidade que o rio divide em duas partes. ―O nosso tempo é ínfimo se comparado com o do rio.‖131 A relação da cidade de Coimbra com o rio que a atravessa foi-se alterando ao longo dos anos. Durante muitos séculos a margem direita (lado da Universidade) era a mais habitada.

O conto que dá título à Bienal Anozero‘19 pode ser interpretado a partir de um olhar sobre a história da própria cidade de Coimbra e do respetivo património, que é marcada, como já referido, pela convivência com as águas do Rio Mondego, que, ao longo dos séculos, alagou vastas vezes as suas margens. O seu ritmo natural obrigou a população a

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Idem, pág. 10.

130 Idem, pág. 9.

131 Coletânea de Autores, “3ª Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero‟19 A Terceira Margem/The

Third Bank”, Carlos Antunes, Agnaldo Farias, Lígia Afonso, Nuno de Brito Rocha, Anozero’19 Bienal de

uma permanente adaptação a algo que não se pode mudar. No início do século XIV, na margem esquerda do rio, foi erguido o convento dedicado a Santa Clara, fundadora do ramo feminino na ordem franciscana, e subsidiado por Isabel de Aragão (Rainha de Portugal). Ao longo dos anos foi sofrendo alterações com alteamentos no seu piso térreo, a ponto de se ter construído um andar superior.132 Mas as contínuas inundações obrigaram as Clarissas, ali reclusas, a abandonar este convento e a encontrar um novo refúgio no Monte da Esperança, que é hoje, desde o século XVIII, o Convento de Santa Clara-a-Nova. Ambas as instituições como que se entreolham, e abaixo delas segue o rio, ―reiterando a vacuidade das nossas construções, sólidas ou abstratas. Em 1910, a parte norte foi atribuída ao Exército, que a ocupou até 2006. O Convento estava abandonado até a arte o reivindicar, e o Mondego, como eixo da sua situação a um só tempo geográfica e simbólica, conduziu a bienal ao conto A Terceira Margem do Rio (1962) de João Guimarães Rosa (1908-1967).‖133 A ligação com o ritmo imutável do rio acontece de maneira reversa no conto.

O protagonista do conto, quando toma a decisão pessoal de ir cursar o rio numa canoa, não é numa tentativa de contornar a natureza, mas de ir solitariamente enfrentá-la, tendo sido a canoa feita de propósito para ele, cabendo apenas justo o remador. É esta atitude de autorreclusão, este gesto radical a céu aberto, que define o território da terceira margem.134 A escolha do curador para a Bienal 2019 partiu de uma estratégia de internacionalização, com intenção de crescer e sedimentar a Bienal, tendo esta escolha ficado decidida em Maio de 2016, anunciando assim o final da edição do Anozero‘17. Para alcançar este objetivo e dar o passo seguinte, foi especialmente relevante o trabalho curatorial de Delfim Sardo, na segunda edição, que permitiu, dentro do território nacional, um trabalho firme e consensual, conferindo um alargado reconhecimento público, podendo assim apostar na internacionalização.135

Assim sendo, vários fatores foram tidos em conta na escolha do curador, tais como o prestígio, mas o que pesou mais nesta decisão foi a imediata empatia que os diretores do CAPC criaram com Agnaldo Farias, em 2015, quando se conheceram. O convite ao curador surge também no contexto de a bienal considerar o território ibero-americano (em

132 Idem, ibidem. 133 Idem, ibidem. 134 Idem, págs. 18-19. 135

particular Espanha e Brasil) como um espaço privilegiado para a sua internacionalização, recuperando e fortalecendo, deste modo, ligações matriciais da nossa identidade.

Assim sendo, este colocou a proposta de tema na mesa, em janeiro de 2018, durante as primeiras reuniões, que foi imediatamente aprovada e apresentada à imprensa em fevereiro de 2018136, pelas razões que já esclarecemos no início neste ponto. Privilegiando o trabalho coletivo, os curadores adjuntos, Lígia Afonso e Nuno de Brito Rocha,137 foram posteriormente escolhidos por Agnaldo Farias, em maio de 2018. Em outubro do mesmo ano, a equipa curatorial efetuou uma visita aos espaços, para reconhecimento territorial e avaliação do potencial de cada espaço. Após esta avaliação, a equipa inicia o processo de Studio Visits, que consiste na pesquisa de possíveis artistas a expor no Anozero. Posteriormente a esta seleção, foi enviado um dossier gráfico e fotográfico aos artistas, com informações sobre os espaços, juntamente com um enquadramento histórico, dando-lhes pistas sobre o tipo de obra/ intervenção que poderiam trazer, sujeitas depois a uma análise e a uma escolha feita pelos curadores. A partir deste ponto, inicia-se todo o processo de produção (empréstimo/execução/custo de obras, transportes, seguros, cronograma, etc.). No início de setembro começa a preparação dos espaços (desmatação, limpezas, etc.), questões que iremos abordar mais à frente neste relatório, no 4º capítulo.

Posto isto, a proposta do curador-geral para a Bienal de Coimbra tem como título A Terceira Margem e como pano de fundo a obra de Guimarães Rosa – escritor, romancista e médico brasileiro, tendo sido considerado um dos melhores escritores brasileiros do século XX. A sua escrita apresenta um realismo mágico, algum regionalismo e uma liberdade de várias invenções linguísticas e neologismos, sendo estas algumas das suas características. Salienta a importância de ter a linguagem ao serviço da temática e vice-versa, reforçando que uma potencializa a outra. Inaugura, portanto, uma metamorfose no regionalismo brasileiro.138

Na sua obra, A Terceira Margem do Rio, podemos observar um espírito de alienamento e silêncio provocado por uma espécie de existencialismo duro. O narrador do conto é um homem adulto, que conta a história do seu pai, que manda construir uma canoa para nela

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Camilo Soldado, “Agnaldo Farias: um curador brasileiro a caminho da Bienal de Coimbra”, artigo, Jornal o Público, 7 fevereiro 2018, disponível em: https://www.publico.pt/2018/02/07/culturaipsilon/noticia/agnaldo- farias-um-curador-brasileiro-a-caminho-da-bienal-de-coimbra-1802264

137 Consultar Anexo 4, para mais informações sobre os curadores. 138

viver, no meio do rio, o resto dos seus dias, não tocando mais em terra, deixando para trás a sua família e sem conceder qualquer explicação. No final do conto surge ―o reconhecimento do filho pelo pai, o atendimento efetivo da evocação feita à margem, mas o súbito acovardamento do narrador impede a concretude do encontro; o retraimento do ser trai a própria condição humana.‖139 Inspira-se em duas vertentes da literatura brasileira, da primeira metade do século XX: o regionalismo e o romance psicológico. Guimarães Rosa lança mão da mitologia, de lendas e do mito poético para transcender aos padrões estéticos e quanto mais se adentra, mais se descobre, combinando imaginação, realidade e poesia.

Foram retiradas cinco expressões do conto que serviram de eixo conceitual para os desdobramentos e conceitos a trazer para a Bienal Anozero‘19, tendo sido as seguintes: nosso pai nada dizia; longe, no não-encontrável; passadores, moradores de beira; executava a invenção; e chega que um propósito. Estas cinco expressões-tema sugerem silêncio, passagem, marginalidade, invenção e militância. As mesmas são interpretadas por meio de diversas vozes: através de uma curadoria tripartida e dos autores, servindo, também, como ponto de partida para o Programa de Ativação, desenvolvido pelos alunos do Mestrado de Curadoria, do Colégio das Artes da UC.140

O Anozero, para além de ocupar o Convento de Santa Clara-a-Nova como habitual, estende-se pelas ruas do centro da cidade, ocupando espaços como o Edifício Chiado e a Sala da Cidade; pela Universidade de Coimbra, ocupando o Museu da Ciência – Laboratório Chimico, Galeria da História Natural e Colégio das Artes; e pelos dois edifícios do próprio CAPC, sendo que no CAC se contou com a curadoria paralela de Tomás Cunha Ferreira, com a exposição ShipShape.

139 Coletânea de Autores, “3ª Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero‟19 A Terceira margem/The

Third Bank”, Agnaldo Farias, Lígia Afonso, Nuno de Brito Rocha, Anozero’19 Bienal de Coimbra – A Terceira

Margem/The Third Bank, Coimbra, Edições Almedina, 2019, pág. 20.

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