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TERCEIRA PARTE A CONSTRUÇÃO DA TRADiÇÃO

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CAPíTULO

VI

EXU E OS ANTROPÓLOGOS

Vimos de que maneira Exu continua presente no candomblé com a maioria de

suas características africanas. Essas características, no entanto, não foram su-

blinhadas com a mesma intensidade nos estudos afro-brasileiros que se suce- deram ao longo do século XX. Ao contrário, parecem ter sido objeto, como na rcinterpretação do EXli de. umbanda no candomblé atual, de intenso processo de negociação entre os valores africanos dos cultos e os valores dominantes da sociedade brasileira. Dessa maneira, passa-se de um EXli negado, identificado com o diabo cristão e perigosamente ligado à prática da magia, a um EXli media- dor entre os homens e os deuses, elemento central da construção religiosa da "verdadeira" tradição africana.

O deslizamento semântico da figura de Exu está ligado às estratégias de adaptação escolhidas pelos membros dos cultos de origem africana, em funçâo da percepção que a sociedade brasileira tinha deles. Os trabalhos dos antropó- logos registram essa variaçâo no tempo, sem no entanto ligá-la às mudanças em curso na sociedade brasileira em relação ao imaginário associado à cultura e à religião "negra", Preocupados em estabelecer o vínculo entre a África e o Brasil, os pesquisadores quase sempre viam o candomblé como uma ilha sem história, cujo único objetivo seria a manutenção da fidelidade a um passado que se queria imutável. Assim, esforçaram-se em reconstruir a forma original das religiões africanas, que provaria a tradicionalidade de ao menos um dos segmentos dos cultos afro-brasileiros: o candomblé nagô.

No entanto, ao fazer uma leitura crítica dos trabalhos desses pesquisado- res, deparamo-nos com uma evolução das significações dadas à figura de Exu que não se relaciona com as supostas oposições entre cultos puros e cultos degenerados. Com efeito, desde o fim do século XIX,quase todos os estudos sobre o candomblé foram dedicados ao candomblé nagô, que éapenas uma das Illodalidades dos cultos afro-brasileiros. Além disso, todos esses estudos foram feitos nos três terreiros da nação ketu, considerados os mais tradicionais: o Engenho Velho, o Gantois e o Axé Opô Afonjá1• Como veremos, a diferença de

, r\ únic<I exceção é a lese de Claudc Lépine (1978) sobre o SiSICl1l<Ide classificação dos tipos psicológicos no candomblê ketu da Bahia, desenvolvida no terreiro de Olga de Alilkctu. Ordep TrindadeSerra (1978} foi o ::mico a se interessar porurn terreiro angola em Salvador, depois da obra

perc~pç,'iO do papel de Exuéum dos principais desafios na luta travada entre terrclros no meio dos cultos afro-brasileiros.

. A adaplação constante das categorias religiosas mostra uma capacidade de se lDt~grar aos valores da sociedade abrangente, que faz do candomblé nagú o paradIgma do culto "africano puro", mesmo quando ele manipula a tradição para negar seus aspectos menos apresentáveis. A aliança entre os pesquisado- res e os m~mhros dos terreiros considerados mais tradicionais não é, portanto a ex.pressao da resistência de uma cultura africana, como gostariam Roge; Ba~(~dl'ou !uana E. dos Santos, e sim o resultado de uma estratégia, de uma pratICa polltica de acomodação perante os valores dominantes da sociedade brasileiral..No~sa análise das modificações da imagem de Exu nos trabalhos

dos pesqUIsadores - sejam eles médicos ou antropólogos -em função do contex- t~ social e cultural no qual elas aparecem, visa demonstrar o caráter de constru- çao, no plano político, de uma tradição africana em busca de legitimidade.

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NEGRO COMO OBJETO DE CIÊNCIA

Os estudos afro-brasileiros nasceram exatamente no m t

_, , '. . omen o em que o negro

cx-cscravo.- fOIadmitIdo no seio da comunidade nacional, após longo cami- nt~o para a..i~bc~dadc, 1\ abolição do tráfico de escravos para o Brasil, em 1850, f~l conse:~encla das pressões exercidas pela Inglaterra, que decretara a proibi- çao do trafICO em 25 de março de 1807. O Congresso de Viena de 1815 h '

lT d ' aVia

ra'IlCa o essa decisão, assinada pelo reI' de Portugal, proibindo o tráfico de

~scrav05 provenientes de todos os portos da costa africana situados ao norte do j'.quador. Mas, ao contrário da indústria inglesa nascente, que buscava criar

de Édison Carneiro (1937). Hoje. outras modalidades de culto começam a ser cstudad

cilndomblê dccaboc!o (Teles dos Santos 1992), embora ainda não tenha sido realizado :5, CQ~~O CX,lUstlVOde outras tradições que não a dos nagôs. m cs u o I Rlsério (I9RH: 161)falade ullla "eficácia rcssocializadora" na prática religiosados na - I" d

a urna gr,lnde capacid,lde de tecer vinculos políticos que permitiram 'o • f" g05, a la a

d'l d . ' "nagoseanmarcomo

mo c () omlnJnlc no mercado religioso. Cita os trabalhos de Hawick (1972) e de G (19,76), m quais criticam a visâo tradicional do nc,'ro como v'l' 'd . cnovesc d <:> J lma passiva a escraVidão Fs .

OISauloresdefendem o ponto devista segundo o qual, mesmo na sociedade mais to ta .. ". - ses

()prJJm~l~s sempn' encontram margens de mano!Jra para desenvolver estraté 'ia_~de SObr~~;:~~c~s tanto flslca qUJnlo cultural. Silveira (19RR. 1R6) " g _ la nagô o sinal {It-uma prática polítICa de ad~ptaçãtamb~m;e na .pr~do.mlnâncIJ do c,lndomblé Jdaptar e de escamotear os elementos .. , o c nao e rCSlstenClil, Essa capaCidade de se

maIs Incomodos do culto (o' I d' E . negra) não paa'cc ser muito diferente das estratégias de legitimaçã:~~~iuC:da:

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novos mercados para suas mercadorias, a economia brasileira, que dependia diretamcnte do trabalho escravo, tinha todo intcrcsse cm prosseguir o tráfico negreiro com a África.

A Independência do Brasil, proclamada em 7 de setembro de 1822, não foi imediatamente reconhecida pela Inglaterra, que exigia como precondição a total abolição do tráfico de cscravos. Em 1825, os governos português e inglês reconheceram, enfim, a Independência e, pouco depois, assinaram um tratado consagrando a abolição do tráfico. Mas as resistências dos negociantes de es- cravos e dos grandes proprietários de terras brasileiros dificultaram a aplica- ção desse primeiro tratado. De 1807 a 1835, o Brasil, sobretudo a Bahia, conhe- ceu várias rebeliões de escravos que começaram a minar o sistema escravagista-1•

Foi preciso esperar 1850 e a lei Eusébio de Queirós para que o tráfico de escra. vos com a África fosse definitivamente abolido, e 1871 para que a primeira lei a favor dos escravos fosse promulgada: a lei do Ventre Livre, a qual concedia a liberdade a todo filho de cscrava nascido após essa data. O debate sobre a abolição da escravidão seria pouco a pouco alimentado pelos interesses dos proprietários de terras do Sudeste - notadamente da regiao de Sao Paulo -, que pressionavam o governo a fim de facilitar o fluxo de imigração de trabalhado- res vindos da Europa. A aboliçao marcaria o declínio político e econômico dos grandes proprietários de terras do Nordeste, irremediavelmente ligados ao modo de produção escravagista, e acarretaria a emergência do poder dos fazen- deiros do Sudeste. A abolição da escravidão, no entanto, só seria decretada em maio de 1888, com a Lei Áurea, um dos últimos atos da Monarquia antes da proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

Essas grandes mudanças foram seguidas, no meio das elites intelectuais, por um debate sobre a realidade brasileira e seus componentes humanos: o branco, o negro e o indígena. Era a época da difusão de teorias sobre as desi- gualdades raciais, que se impuseram no Brasil ao lado das idéias positivistas, naturalistas e evolucionistas. A partir da segunda metade do século XIX, a literatura e a cultura brasileiras começaram a sofrer a força da influência de modelos europeus, como a história natural e a antropologia, que forneciam os instrumentos necessários à interpretaçao da natureza tropical e das relações entre raça e cultura no Brasil~, Em 1838, o imperador D. Pedro II criou o Insti. tuto Histórico e Geográfico, que tinha por missão repensar a história brasileira

1Sobre as rebeliões na Bahia, cf. Verger (1968: 329-53) e Reis (1986; 1988 e 1992).

• Em relação ao debate sobre a influencia do meio e das raças no desenvolvimento da cultura nos trópicos, cf. Ventura (1991). Para o debate sobre raça c nação no Brasil, cf. Schwarcz (1993) e

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A BUSCA DA ÂFRICA NO CANDOMBLÉ

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com o intuito de consolidar o Estado nacional. Em 1840, o naturalista bávaro

Carl Fricderich von Martius ganhou o concurso de melhor projeto historiográ. fico dedicado ao Brasil. Segundo ele, a missão do Brasil era realizar a mistura de

raças, sob a tutela atenta do Estado: acabava de nascer o mito da democracia

racial.

O debate sobre a necessidade da mestiçagem acarretou a questão da dege-

nerescência inevitável do povo brasileiro, obrigado a misturar raças que não ocupavam o mesmo nível na escala evolutivas. Assim, a questão étnica setOf-

nau central na construção de uma identidade nacional brasileira c na passa- gem do modo de produção escravagista ao liberalismo. Tornou-se necessário estudar tudo o que havia contribuído para a especificidade nacional, deixan~ do-se de lado a valorização do indígena, característica do movimento român- tico, em proveito da análise da cultura negra. O primeiro a sublinhar essa necessidade foi Sílvio Romero:

Éuma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões africanas. Quando vemos homens como Bleek refugiarem-se dezenas e dezenas de anos no cen- trp da África somente para estudar uma língua c coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, c a Europa em nossos salões, nada havemos produ- zicto neste sentido! Éuma desgraça. [...] O negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciê.nda(1888: 10-1).

Assim, a antropologia passa a ser elemento indispensável para se pensar o Brasil: o outro não é mais exterior à nação, ele é parte integrante desta. Ocorre

Skidmorc (1974). Hurbon (198R) analisa a influência das teorias européias ligadas à. antropologia e ao evolucionismo sobre as elites haitianas, no que chama a "barbarlzação" do negro. ~OEssl/i SUf l'illéSl/litétles faces JIlI/IlaiIiCS, de Gobincau, publicado em 1854, foi muito discutido no

Brasil. Gobineau, que passou, na qualidade de ministro da França, uma temporada na corte brasi- leira, profetizava a decadéncia da civilização como conseqüênCia da mistura de raças. A inaptidão das ra.ças nãO-brancas. à Cj~ilizaÇão não podia ser corrigida pela educação: só li mestiçagem podena elevar as raças mfenorcs, mas com O inconveniente de rebaixar as superiores. O conceilo de degenerescência foi levado a seus limites extremos por Buffon, cujas idéias sobre a degenerescéncia ~erivando da mestiçagem foram adotadas pelos poligenistas, que negavam uma origem comum as raças h.u~anas. 0. debate entre monogenistas e [Joligenistas foi uma das principais questões antrop~loglcas do secufo XIX, tendo levado à dissolução da Sociedade Etnológica de Paris eà

formaçao de dois grupos no interior da Sociedade de Antropologia, fundada em Paris em lM59.

então o que Ventura (1991: 38) chama um auto-exotismo, em que o intelectual "periférico" percebe a realidade que o cerca como exótica. Como produto da idealização da Europa e de sua civilização, o intelectual brasileiro só pode reafirmar a inferioridade da cultura popular, resultado da mistura de raças inferioresfi •

Quando foi promulgada a abolição da escravidão, em 1888, o imaginário ligado ao negro já passara da servidão necessária e civilizadora ao "perigo negro" ligado à libertação dos escravos, o qual ameaçava a civilização e a própria sobrevivência do Estado nacional. As rebeliões da primeira metade do século XIX haviam deixado marcas profundas no imaginário das elites bran- cas. Tudo indicava a inferioridade do negro: era um vagabundo, um marginal que não queria trabalhar, um alcoólatra, em suma, um elemento perigos07•

Foi nesse clima cultural e político que os primeiros estudos" africanistas" se desenvolveram no Brasil. Raymundo Nina Rodrigues foi o pioneiro. Médi- co -legista, defendeu as teorias evolucionistas, dominantes na época: o negro era culturalmente inferior e sua presença na sociedade brasileira representava um perigo para o conjunto da nação. Assim, em oAIli11lismo fetichista dos negros

da Bahia (1900), após afirmar "a incapacidade psíquica das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo", sublinha o perigo que o negro representa para os demais componentes do povo brasileiro: "Não se vá acredi- tar no entanto que estas práticas limitem e circunscrevam a sua influência aos negros mais boçais e ignorantes da nossa população. [...] na Bahia todas aS" classes, mesmo a dita superior, estão aptas a setomarem negras" (:185-6).

O fato de o negro ser indubitavelmente inferior não impedi.a de modo algum, na sua opinião, a existência de negros mais "evoluídos" ao lado de outros que o eram menos. Nina Rodrigues retomou a hierarquia entre as raças estabelecida por Romero, segundo a qual o negro era superior ao indígena, mas

" I'arece-me interessante pensar no paradoxo desse auto-exotismo. Na verdade, a palavra exotismo deriva do grego C'xotikrls, isto é, "fora do campo de visão". Ora, nada era mais familiar ao intelectual brasileiro que o negro, como bem evidencia Romero.

, Célia Azevedo (1987) dedica seu estudo àinterpretação do negro no imaginário das elites brasileiras no processo de formação do Estado nacional. Analisa a importância desse imaginário quantoâ CriaçãO da ideologia do branqueamento, a qual ocupa lugar central no dcsenvolvimento de um projeto de nação. E lembra que i{omero, embora tenha sido o primeiro intelectual brasileiro a se interessar pelo negro. também era favorável a sua substituição, no âmbito econômico, pelo branco imigrado. A inferioridade do negro e sua inaptidão para se civilizar deviam, pois, mant(>- lo à margem do processo de constituição do Estado nacional: "O Brasil não é, não deve ser, o J-1aiti" (Homero citado por Azevedo 1987: 70).

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A BUSCA DA ÁFRICA NO CANDOMBLÉ

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inferior ao branco, ele próprio dividido entre a raça ariana, mais propensa ao progresso, e outras "raças", como a raça latina, que mostravam claros sinais de decadências. Assim, em seu estudo sobre os africanos no Brasil, que teve urna primeira edição incompleta em 1906, afirmou a supremacia dos negros iorubás (os nagõs da Bahia), verdadeira aristocracia dos negros trazidos para o Brasil. Isso o conduziu, como mostra Dantas (1984), a desenvolver no Brasil um dis. curso que conferia ao negro recentemente liberto uma nova inferioridade, desta vez em nome da ciência.

Com efeito, apesar do evidente interesse demonstrado por Nina Rodrigues peja cultura dos negros africanos da Bahia, e a despeito de algumas análises de grande sensibilidade sociológica'J, seus estudos eram animados por um projeto normativo que' visava regrar as relações entre as raças. Na obra dedicada à relação entre as raças humanas e o Código Penal no Brasil, publicada em 1894 e, portanto, anterior a seus estudos sobre a religião afro.brasileira, ele propôs que a legislação penal brasileira fosse dividida em códigos diferentes, que se- riam adaptados às "condições raciais e climáticas" de cada uma das regiões brasileiras, pois cada raça apresentava um grau de evolução diferente. Propôs igualmente que o negro e o índio, bem como o mestiço, tivessem responsabili. dade civil limitada, como ocorre para os loucos e as criançaslO.

A concepção de um negro refratário à civilização foi atenuada, em 1906, pela afirmação de uma "escala hierárquica de cultura e aperfeiçoamento" en. tre os povos africanos que haviam sido trf.zidos para o Brasil. Não era a realida- de ou não da inferioridade social dos negros que estava sendo questionada, já

~ A Inferioridadc relativa dos povosdc origcm lallna, como o português, cxplicava a Inferioridadc do povo brasileiro:"O scrvilismo do negro, a preguiça do índio co gênio autoritário c tacanho do português produziram uma naç.1oInformc. sem qualidadcs fecundas c originais" (Romcrocifado porVenlura1991:49).

• E.Isum trecho do <lutor que rc\'cla uma anállsc lüclda c sensível dos fcnômcnos estudados;

"Quando, cm dias dc abril dc 1895. as lutas politicas das facçõcs panidárias deste estado chega-

ram a um ••tcnsão tal que a toda a hora st=cspcrava o romplmcntoda gucrra civil f...] na porta do

edifício das câmaras amanhcccra dcposto um grande feitiço ou (oisa r~ita. A imprcnsa diária mctcu o caso a ridículo sem sc lcmbrar de quc cra aquelc um modo dc intervcnção da populaç:io fl'tlchista da cidade, tao lógico e legitimo na sua manlfcstaç.1o sOCiológica, quanto cra natural a

intc".cnçao do digno prelado arquidiocesano que, confercnciando com05chefcs dos dois grupos

litlgantcs. procurava rcstabelecer a pa7.c a concórdialla familia balanaw (Nina Rodrigucs 1900:

194).

t ••Essa ldéiil da nao-rcsponsabllldadc dos "selvagens" foi aplicada pelo Estado brasilciroaos índios,

quc ainda nao são tratados Integralmcnte como cidad:ios. Ourantc multo tcmpo submctidos à

tutela da Fundaç3.o Nacional do fndlo (FlJNAI],organismo governamental exprcssamcnte criado

fl<lraa sua protcç:lo,5010considerados menoresquc podem ser emancipados pcrantcalci.

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DANÇA DE lOGUNEDf

que a incapacidade que tinham de se adaptar à civilização era ."orgâ~ica e morfológica", e sim o grau de inferioridade que a presença d~S ~fncanos mdu. zia, pela mestiçagem, ao processo de formação do povo brasilelro._

Ora, os nossos cstudos demonstram que, ao contrário do que se supoe ge.ral- mente, os escravos ncgros introduzidos no Brasil não pertenciam exclus.•~a- mente aos povos africanos mais degradados, brutais ou selva~cns. AqU.lm. truduziu o tráfico poucos negros dos mais adiantados c, mais do qu~ISSO,

mcstiçoscamitas convertidos ao islamismoc provcnientes de estados afncanos bárbaros sim, porém dos mais adiantados (Nina Rodrigucs1906: 268-9).

Esses africanos menos bárbaros que os outros eram os nagô~, :ue em sua maioria viviam em Salvador. De verdadeira religião de Estado na Afnca, o cu!t~ deles tinha sido reduzido, no imaginário das elites brasileiras, a simpl:s pratl. cas de feitiçaria, "sem proteção nas leis, condenadas pela religião dO~lnante e pelo desprezo, muitas vezes apenas aparente, é verdade, das classes IOfluentes quc apesar de tudo, as temem" (: 238.9).

'Nina Rodrigues se ergueu, portanto, contra os abusos perpctrados pela;

t ridades na repressão aos cultos afro-brasileiros. Com efeito, o Artigo 15

au o •. . . d . da

do Código Penaf de 1890 conde~ava a pratica do cspmtlStno, a magia C

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feitiçaria, da mesma forma que o exercício ilegal da medicina (curandeirismo) e a cartomancia, isto é,tudo o que era usado "para fascinar e subjugar a credu- lidade pública". Essa regulamentação_ que visava aos fetichistas que pratica- vam a magia e a feitiçaria estava ausente do Código Penal de 1830, quando ainda vigorava a escravidão. A inquietude suscitada pelo negro "feiticeiro" se tornou clara quando este teve acesso à igualdade, teórica, com os demais cida~ dãos brasileirosl J.

Nina Rodrigues denunciou a repressão policial - muito forte na época, como demonstram os trechos de jornais por ele citados ~ e o recurso a "atos violentos, arbitrários e ilegais", levados a cabo contra o culto jeje-nagô, que ele considerava u~a verdadeira religião:

Como o demonstrou todo o estudo aqui feito, corroborado pelos realizados na África, trata-se, no caso do culto jeje-nagô, de uma verdadeira religião em que o período puramente fetichista está quase transposto, tocando às raízes do franco politeísmo. Os nossos candomblés, as práticas religiosas dos nossos negros podem, pois, ser capitulados de um erro, do ponto de vista teológico, e como tais reclamar a conversão dos seus adeptos. Absolutamente elas não são um crime, e não justificam as agressões brutais da polícia, de que são vítimas (1906: 246).

Nina Rodrigues via na herança das raças inferiores, que haviam coloniza- do o Brasil, a origem do que ele definia como "um estado rudimentar do senso jurídico", cujo pretexto era um "estúpido terror do feitiço e das práticas cabalísticas" (: 247). Afirmava também que uma feitiçaria tão bem organizada supunha a mesma responsabilidade social, e portanto penal, dos feiticeiros e de seus clientes, que eram freqüentemente oriundos das classes superiores12.

" A constituição de 1823 estipulava que a liberdade religiosa no Brasil era n:strita à religião cristã. Só aqueles que a praticavam podiam usufruir de direitos políticos no Império. O Artigo 16 precisava que todas as outras religiões eram apenas toleradas. Em ] !HI,), com a proclamação da Rcpúbl1ca, foi promulgado um decreto outorgando a plena liberdade religiosa: o Estado não podia mais. distingUir osCidadãos conforme suas convicções religiosas. A religião cristã não era mais religIão do Estado. Foi preciso, então, encontrar outros elementos de discriminação entre cultos rellglOsoslcgítimos e ilegítimos: o exercÍl"io <Ia medicina e a prática da feitiçaria p<lssaram a ser pretextos para a repressão aos cultos afro-braSileiros.

" Y\'~nr~c Maggie (1')92) analisa 25 processos criminais contra os praticantes de feitiçaria e

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