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Terceiro ato: trabalho na indústria, trabalho qualificado

No documento Irislane Mendes Pereira.pdf (páginas 54-58)

Uma panorâmica apresenta um novo cenário, e o descreve como um escritório. A música retorna para, então, justificar e nos preparar para o discurso que segue: “Se, para alguns tem caridade na vida desta cidade, só vale ter profissão”. A câmera encontra o depoente (depoimento 8), um empresário, que sentado em sua mesa dá continuidade ao discurso generalista do locutor. Em plano geral, com fala pausada e direcionada à câmera, ele diz: “Observa-se no migrante nordestino uma maior parcela de desconfiança, talvez por ser um homem mais angustiado ou por desconhecer os tipos de relações que encontrará no novo ambiente. Isto tem levado, inclusive, alguns empregadores a vetar a admissão deste elemento, enquanto ainda na fase de entrosamento no novo meio”.

Classificado como locutor auxiliar9, o seu discurso em tom bastante formal transmite informações que convergem ao discurso do locutor no final do primeiro ato: provém “de zonas agrárias mais atrasadas do país” para “formas sociais e urbanas mais avançadas e racionais do Brasil”. Esta terceira voz, que colabora para a coesão do argumento, compartilha com o locutor o poder da avaliação mais generalizante da situação dos migrantes. Apesar de estar subordinado a ele tem um rosto que se beneficia deste cenário e das teorias expostas. Na função de aliviar a locução off, sua fala “aproxima as informações genéricas do ‘real’” (BERNARDET: 2003, 25). A ele dá-se o direito da fala, sem que haja intervenção, demonstrando, de certa forma, uma hierarquização de vozes presente no filme (Figura 3).

Figura 3: Trabalho qualificado: indústria

9 “De modo geral, os locutores auxiliares estão numa posição de poder, quer pelo saber, quer pelo cargo que ocupam, bem como pela função que desempenham no sistema de informação do filme. Estão assim mais próximos dos locutores do que dos entrevistados” (BERNARDET, 2003: 26).

Quando o realizador cede a palavra ao empresário, o faz por convicção. A ausência de perguntas, nesta primeira aparição, endossa a linha de raciocínio desenvolvido pelo autor através da montagem, pois o discurso elucida, de certa maneira, as teorias propostas pelo estudo sociológico e enunciadas pela voz off. O seu discurso é livre de qualquer ruído ou interferência e a sua fala não é questionada ou enfraquecida pela montagem.

Em seguida, em plano americano, uma família é apresentada. Assim como no quadro de Portinari, ela é retratada de maneira frontal, centralizada e estática; as personagens estão praticamente imóveis. Ao homem, que logo no início percebemos ser um migrante (depoimento 9), é cedido o direito da fala. O seu discurso omite a sua origem e o motivo que o trouxe à São Paulo, mas se direciona à trajetória profissional e às conquistas materiais proporcionadas pelo trabalho qualificado na indústria. Narrativa que converge para o tema discutido neste ato: trabalho qualificado.

Opondo-se à sequência e ao discurso anterior, outro migrante (depoimento 10), em posição de entrevista, fala ao entrevistador, que se mantém fora do quadro. Ele narra a sua vinda e a sua condição profissional ao chegar à São Paulo: sem qualificação. A sua maneira de falar e o seu discurso se mostram mais livres, diferentemente da rigidez do depoimento anterior.

Vemos algumas imagens de uma fábrica em atividade: uma casa de fundição (Figura 3). Pelo que ouvimos anteriormente, este local corresponde ao discurso do migrante qualificado. Assim como o empresário é retratado em seu ambiente profissional, o escritório, a este migrante, que ascendeu profissionalmente, também é dado este tratamento. E o que mostrar do migrante não qualificado? Podemos pensar, a partir desta pergunta, que as diversas atividades exercidas refletem a sua condição de errante, que continua a perambular, neste ponto, de trabalho a trabalho. A instabilidade encontrada no mercado de trabalho, juntamente com a preocupação em relação à saúde e a recusa de alguns trabalhos, o mostra de maneira indolente. Conduzida pela montagem, o operário desempregado que passou por diversos empregos, corrobora para a linha de raciocínio do empresário quanto à falta de qualificação a que está submetida grande parte dos migrantes.

É importante notar que o filme vai se construindo em dicotomias: emprego/desemprego, modernidade/atraso, cidade/campo, norte/sul. Esta articulação de

oposições indica a relação entres os migrantes de maneira significante no filme que, evidenciado pela montagem, mostra contradições de pessoas do mesmo grupo, porém, com pontos de vista diferentes. A aparente simplicidade de planos serve para tecer estes significantes.

A alternância continua e os depoimentos se contrapõem: casa própria/casa alugada, filhos/sem filhos. Todo o discurso é montado na questão da estabilidade e instabilidade. Com a imagem em plano próximo e com mais mobilidade, o operário qualificado exalta em seu discurso o povo de São Paulo como um “povo que olha para frente e ajuda àqueles que precisam”. Também presenciamos sua negação do Norte em função do Sul: “Não me considero um nortista e sim, um paulista. E aqui eu pretendo morrer”.

Em contraponto à imagem da primeira família e seu discurso temos como resposta imagens do segundo depoente que, sentado à mesa com a sua mulher, tem na sua voz em off a narração das dificuldades encontradas em permanecer na casa. O registro de ações banais do cotidiano deste depoente – sentar à mesa para tomar café, retirar a gaiola da casa, arrumar o casaco – é exemplo de uma visão de vida sem estabilidade.

Percebemos que as personagens emprestam o seu corpo, a sua gestualidade, as suas expressões verbais e faciais ao cineasta, que retém apenas elementos significativos à caracterização e construção do tipo. Mas o que ocorre é uma dissolução da individualidade em favor da elaboração do tipo. “Ficamos com a impressão de perfeita harmonia entre o tipo e a pessoa, quando o tipo – abstrato e geral – é todo-poderoso diante da pessoa singular que ele aniquila” (BERNARDET, 2003: 24).

Na sequência seguinte a imagem do empresário é retomada. Em plano próximo e bem centralizado, ele responde às perguntas do entrevistador, que assume o discurso consolidando questões significativas ao filme. Esta entrevista se localiza entre depoimentos dos operários, sugerindo respostas às questões apresentadas e contrapondo-se às falas. O seu discurso nos informa sobre as dificuldades na qualificação e no aprimoramento da mão de obra migrante, assim como a carência de profissionais bem qualificados. Os depoimentos que seguem renovam cada um destes discursos, cada fala do empresário.

Neste momento, apesar do discurso particular, é permitido a este operário qualificado o papel de “locutor auxiliar”, identificando-o, pelo modo de agir, com a imagem do empresário. Neste ponto, não há interferência do entrevistador em relação ao discurso, gerando dúvida quanto à sua origem, apesar de criar a sensação de discurso autônomo. Percebemos que a maneira de falar o texto, a postura e a entonação de voz, são elementos dotados de significação e que compõem um quadro de comportamento cênico (SANTEIRO, 1978: 81)

Quando este operário fala dos seus “irmãos do Norte”, o seu discurso também é generalista. E o seu depoimento funciona como ferramenta de estabelecimento do discurso do autor, de um ponto de vista externo a ele. Totalmente inserido no ambiente em que vive as suas conquistas e a sua qualificação o distancia dos outros migrantes.

As sequências de planos não deixam dúvidas quanto ao uso da encenação desenvolvida em função da filmagem. Bernardet, ao revelar o método de trabalho do ator natural, comenta sobre os planos e cortes que, ao expor uma falha de continuidade na sequência das cenas filmadas na casa deste operário “não-qualificado”, revela a sua atuação “como ator ao fazer gestos especificamente para a câmera” (BERNARDET, 2003: 22-23).

Pela maneira de enunciar, pelas entonações e, principalmente, pelo comportamento cênico, identificamos estas personagens como “atores naturais” (SANTEIRO, 1978) compreendidos como sujeitos que agem em função do registro. O seu discurso regido e estabelecido pela equipe de filmagem é representado por si mesmo, porém, em função do combinando.

A dimensão do operário qualificado e do operário sem qualificação está ali representada também pela fala de outro depoente, o empresário. O seu discurso, diferente dos demais entrevistados, é sobre os operários de forma generalizada. Ele não parte de suas experiências, pois não fala de si.

A própria estrutura da montagem utilizada apresenta uma alternância de discursos que se reiteram e se legitimam; ora endossando, ora desqualificando. Há um princípio organizador responsável pela combinação de discursos e imagens, garantindo a coesão na construção do argumento fílmico. Recurso justificado pela ausência da voz off, permitindo ao “locutor auxiliar” a apropriação da fala do saber que se sobrepõe aos discursos dicotômicos dos migrantes (BERNARDET, 2003).

Enquanto o operário desempregado caminha pelas ruas, remetendo-nos à ideia inicial das figuras errantes, a sua imagem é acompanhada pela música que retorna para informar e marcar a passagem para o próximo ato: “Desemprego e caridade, nas portas já da cidade, me esperavam para a peleja”.

No documento Irislane Mendes Pereira.pdf (páginas 54-58)