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O terceiro paradigma foca-se num ponto de vista onde em vez de o cinema e a memória funcionarem em função um do outro, surge uma conceção em que o cinema e a memória atuam juntos e se dá primazia à sua mutualidade e inseparabilidade, dissolvendo os limites entre o interior e o exterior, o pessoal e o social, o individual e o cultural e o verdadeiro e falso.

Até agora temos visto como a memória é concebida como um modo de cinema e como o cinema é concebido como um modo de memória; no entanto, mais recentemente, a relação “cinema/memória” tem sido explorada de novos pontos de vista, e neste paradigma são mencionados dois teóricos específicos, Annette Kuhn e Victor Burgin. O mundo do “cinema/memória”, termo definido por Radstone, é “constituted of images, sequences, and their associated affects. Situated within the mind, yet positioned between the personal and the cultural, cinema/memory melds images remembered from the cinema with the inner world’s constitutive ‘scenes’ or scenarios.” (Radstone, 2010: 336)

O que surge desta relação “cinema-memória” não se fica por uma ligação entre os processos de memória em relação ao cinema nem vice-versa, mas sim uma conceção onde os limites entre memória e cinema são dissolvidos em favor de um ponto de vista que defende a sua mutualidade e inseparabilidade. Ao explorar o mundo do “cinema/memória”, esta perspetiva vai dissolver os limites conceptuais entre o interior e o exterior, o pessoal e o social, o individual e o cultural e o verdadeiro e o falso; os estudos de Burgin e Kuhn, nomes referidos acima, ambos tomam forma naquilo que Kuhn descreve como uma prática que usa a análise crítica das memórias de um indivíduo para produzir perceções mais aprofundadas da relação complexa da identidade com a cultura e os media. As investigações sobre a temática “cinema/memória” procuram uma resposta para o que liga as imagens e sons na memória pessoal às imagens e sons na memória coletiva, e os estudos de Burgin e Kuhn seguem caminhos diferentes, apesar de ambos sugerirem que o processo que liga a memória pessoal e a coletiva constitui a mediação psíquica do cinema do mundo interior individual.

O método de Burgin para compreender a natureza persuasiva de imagens específicas que são relembradas de filmes utiliza a psicanálise para explorar a cadeia de associações que vai desde os afetos que surgem associados a estas imagens específicas até às suas mais antigas fantasias psíquicas. “For Burgin, then, these remembered film images constitute ‘screen memories’ (as Freud had called them) – memories ‘that come (…) to mind in place of, and in order to conceal, an associated but repressed memory’.” (Radstone, 2010: 337). Assim, “Noting that sociologists have found ‘an almost universal tendency for personal history to be mixed with recollections of scenes from films and other media productions’” (Radstone, 2010: 337), e retirando também das ideias psicoanalíticas de D. W. Winnicott, bem como da sua própria autoanálise, Burgin conclui que “the inner landscape within which fantasies are bound together with scenes and images spectated at the cinema constitutes the ‘location of cultural experience.’” (Radstone, 2010: 337).

Estudos sobre “cinema/memória”, como os de Burgin, revelam o processo que liga o mundo interior ao mundo exterior, “experiência” e “cultura” (Radstone, 2010: 337). No entanto, por exemplo no que toca a perspetivas públicas/políticas que motivam a crítica aos filmes nostálgicos ou históricos, estes estudos oferecem “micro” retratos (Radstone, 2010: 337) das localizações mais íntimas da cultura. O próprio Burgin mostra alguma inquietação com os seus estudos:

Burgin himself expresses some unease about his own shift from film theory’s “study of the ways in which films (…) contribute to the formation, perpetuation and dissemination of dominant systems of commonly held beliefs and value” to the study of “whatever irreducibly subjective meanings an image might have for this or that individual.” Responding to his own unease, Burgin concludes by proposing that what he finds at the end of his own analysis has a universal resonance: “the mise-en-scène of a riddle we must all answer at one point or another (…): the enigma of sexual difference.” (Radstone, 2010: 337)

No caso de Kuhn, a mesma apresenta-nos a possibilidade de a análise do “cinema/memória” conseguir ultrapassar este universalismo aparente que Burgin refere nas suas conclusões, sendo que, na sua análise, Kuhn revela a capacidade que o “cinema/memória” tem de ligar indivíduos com imagens específicas de filmes. Esta ligação criada surge como um caso de duas vias:

Beginning with her own daytime reveries while walking through London streets, Kuhn traces certain of her reverie-images back to two films – Humphrey Jennings and Stuart McAllister’s moving wartime documentary Listen to Britain (1942), and Derek Jarman’s powerful and angry attack on the ravages wrought by Thatcherite politics upon Britain, The Last of England (1988). Kuhn notes that both these films make shorthand allusion to the mythopoiesis of a particular national imaginary. (Radstone, 2010: 337)

A sintonia entre os elementos estéticos e a sensibilidade destes filmes e os elementos constituintes dos mundos interiores da memória sugere uma possibilidade de estas evocações de memória tornarem os elementos assimiláveis com as paisagens internas do devaneio (traduzido de reveries, mencionado no parágrafo citado acima):

Kuhn’s central exploration, or “memory work” demonstrates how her own daydream images or “reveries” allude to yet transform images from remembered films. Kuhn reveals how, by means of

integrated, in modified form, with those “scenes” that constitute our inner worlds. (Radstone, 2010: 337)

Esta exploração do “cinema/memória” como uma experiência cultural ilumina os processos íntimos pelos quais a subjetividade se liga com a cultura, o local ou a comunidade enquanto também nota como estes processos podem ser facilitados por filmes que partilham a estética, linguagem e textura da memória.