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O terceiro período (2017 aos dias atuais): eu estou buscando a normalidade

Capítulo 5. O SIGNIFICADO DE SER COTISTA

5.2 A DISPUTA EM TORNO DO SIGNIFICADO

5.2.3 O terceiro período (2017 aos dias atuais): eu estou buscando a normalidade

Foi debatido, neste tópico, sobre as mudanças do novo processo de avaliação da política de cotas, bem como sobre a visão dos novos sujeitos que estão ingressando por meio da nova modalidade de cota, em virtude da qual as cotas para negros de qualquer trajetória ou, de forma irrestrita, independem do percurso de formação. Assim, a indagação que foi colocada neste capítulo é: Se o ser cotista tem passado por um processo de deslocamento, como os novos sujeitos têm subjetivado esse significado? O que representa ser cotista para esses estudantes? Por que eles fazem uso desse mecanismo? Essas são algumas das questões que respondemos aqui.

Como estava previsto na Resolução do Conselho Universitário nº 015/2012, após 5 anos de sua aprovação, a universidade deveria passar por um processo de avaliação e novamente se posicionar com base no relatório da Comissão de Acompanhamento e Avaliação da Política de Cotas. Mais uma vez, intelectuais foram chamados para debater o tema.

Nos dias 18 e 19 de janeiro, o debate foi fomentado pelo professor José Jorge de Carvalho. Nos dias 25 e 26 de janeiro, Marcelo Tragtenberg e André Lázaro discursaram sobre o tema.

No dia 17 de fevereiro de 2017, um dia antes da discussão no Conselho Universitário, o professor Sávio Cavalcante proferiu a palestra Cotas, Meritocracia e Justiça

Social: qual deve ser a posição da universidade pública? É notória a presença de novos

intelectuais nesse processo mais recente de debate sobre a política de cotas da instituição e, para compreendermos os rumos que essas medidas têm tomado seria benéfico analisar a fala dos professores. Contudo, não encontramos gravações ou transcrições dos eventos listados acima.

Desse modo, voltamos os olhares para o relatório da comissão que avaliou a política entre 2013 e 2016. Nesta foi possível observar que, após longa explanação quantitativa, os membros apresentaram três propostas. Na primeira, a comissão recomenda a manutenção da reserva de 20% de cotas para escola pública e 20% para negros de escola pública; já, na segunda

recomendação, os avaliadores sugeriram que o acompanhamento deva ser constante e a revisão ocorrer após transcorridos 20 anos, porém, a segunda parte dessa proposta oferece um outro limite para o sistema: “ou, até que os índices do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística de desigualdade socioeconômica e raciais demonstrem a superação destes problemas”; na terceira recomendação há alguma trivialização das categorias de desempenho.

São estes os dizeres:

Considerando que a evasão ocorre com estudantes originários de todas as formas de ingresso, recomenda-se criar novas políticas de permanência e fortalecer as existentes, em todas as dimensões do estudante como: pedagógica, econômica, psicossocial, dentre outras242

Essas duas últimas recomendações não foram incorporadas á resolução ao fim dos debates e a primeira foi ampliada. Todavia, essas também indicam mudanças. Ao considerar que a política deveria vigorar por 20 anos ou até que os índices de desigualdade socioeconômica e raciais, a serem auferidos pelo IBGE, demonstrassem a superação do problema. Os participes da Comissão deixam evidente que a finalidade da política de cotas é a mudança da sociedade, no tocante à educação, não sendo mais necessária quando essa mudança fosse confirmada.

Já a recomendação para o reforço de medidas que combatam a evasão de estudantes e, principalmente, a consideração de que o abandono da graduação não é fato “natural” entre os cotistas – ainda que ocorra por situações específicas a esse grupo – mas sim um problema que demanda o aperfeiçoamento e a criação de mecanismos voltados à permanência, constituindo- se uma inovação, ainda que a medida tenha sido rejeitada no debate.

Relativamente a essa questão, a resolução apenas recomenda, em seu artigo 11, que os estudantes que optaram por concorrer pelo sistema de cotas mas, no processo de disputa, ingressaram por vagas universais, pela possibilidade da migração, ainda assim serão elegíveis para o acesso às ações de permanência permitido apenas aos cotistas. Ou seja, de 2013 a 2016, o estudante que se inscreveu por cotas, mas delas não se utilizou, não poderia concorrer a bolsas que a universidade destina apenas para esse público.

Essa mudança nos mostra quanta diferença fazem questões, aparentemente triviais. Não há dúvidas de que a posição ocupada pelo estudante alcançou no vestibular não alterou a sua condição socioeconômica, utilizada como critério para a seleção de bolsistas de inclusão social, não existindo por isso motivos para excluí-lo da seleção de bolsas por critérios socioeconômicos.

242 Recomendação constante no Relatório da Comissão Permanente de Acompanhamento e de Avaliação da Política de Cotas na Universidade Estadual de Londrina – 2011 a 2016, arquivo físico disponibilizado pela Pró- Reitoria de Graduação.

Quanto aos percentuais de reserva, verifica-se que a proposta aprovada foi além da demanda da comissão, pois, nessa ocasião, ficaram reservadas 20% de vagas para estudantes de escola pública, 20% para negros de escola pública e mais 5% para negros de qualquer trajetória, permitindo-se que negros de escolas privadas concorram por cotas raciais. Também ficou garantido, nesses 5% irrestritos, a estudantes negros já graduados concorrerem por cotas. Esse é o caso do estudante que buscamos ouvir.

Entretanto, antes de conhecermos as razões que levaram Rafael a prestar o vestibular por cotas raciais e, especificamente, na reserva de 5%, é válido confrontarmos a posição que o pró-reitor de graduação Jairo Pacheco defendia em 2004, no debate que ocorreu na Câmara dos Vereadores, com a discussão entre escolas privadas, universidade pública e a medida aprovada em 2017.

Respondendo ao colega de mesa professor Alderi Ferrarezi, presidente do Sindicato das Escolas Particulares de Londrina, o qual havia dito que o problema do negro estava sendo utilizado para que se conseguisse o ingresso de estudantes de escolas públicas e não do negro propriamente. Assim se manifestou Jairo:

Professor Alderi, a proposta identifica duas parcelas da população excluídas do acesso ao ensino superior: os oriundos de escola pública, enquanto a forma possível de apreensão de uma parcela de menor renda da sociedade e dos negros, que se constata por levantamentos objetivos. Combina com o enfrentamento de duas formas de exclusão: a econômico-social, com vagas para a escola pública, e a étnica ou racial, com parte desta cota para negros. O negro que não está na escola pública e que tenha uma condição de classe média, ou próxima a isto, suficiente para frequentar uma escola não- publica, está em condições para não precisar daquilo que é preconizado pela medida. Aí é uma questão de coerência e uma tentativa de equilíbrio dos dois sistemas243. (Grifo nosso).

Alderi havia dito também que, pela proposta que estava sendo apresentada, era como se “o negro de escola privada virasse branco”. A discussão entre escolas privadas e a universidade pública precisa ser mais bem analisada, no entanto, analisando os materiais levantados para o estudo em tela, observamos que, na referida audiência pública, a maioria do público era de alunos de escolas privadas os quais portavam faixas com dizeres, como “cotas não”, “o sistema de cotas só disfarça a péssima qualidade do ensino público no Brasil” e outras. Todavia, é sabido que, por mais baixo que seja o número de estudantes negros em escolas privadas, existem estudantes negros nessas instituições; ademais, a concessão de um número x de bolsas paraestudantes de escola pública em escolas privadas, é também uma realidade.

243 Fala de Jairo Queiroz Pacheco na Audiência Pública: Sistema de Cotas na Universidade Estadual de Londrina, realizada em 21/06/2004, na Câmara dos Vereadores de Londrina, p. 15.

Dessa forma, o debate entre esses dois atores sociais, representantes das instituições, aparece-nos mais como uma negociação em que, para o emissário do âmbito privado, quanto menos espaço ele perder melhor será, ainda que isso signifique, implicitamente, advogar cotas para negros de escolas privadas. Por não contarmos com nenhum manifesto formal do sindicato das escolas privadas, outra leitura também é possível, isto é, podemos entender que as acusações do professor Alderi ao professor Jairo visavam tão somente desqualificar o sistema de cotas; por isso, a galeria da Câmara encontrava-se repleta de estudantes oriundos da iniciativa privada inflando o debate.

De todo modo, sejam quais forem as reais motivações dos atores envolvidos, é notória a complexidade desse debate; não à toa, as mudanças advindas desse processo, têm-se mostrado significativas. Tendo, ou não, o professor Alderi uma visão mais eloquente dos fatos que o professor Jairo, ele notava que, passados mais de 10 anos, as afirmações do pró-reitor mostravam não só como redutoras de questões complexas – tendo-se em vista que a defesa de cotas para negros, independente do percurso de formação, pode ser ouvida, ainda que com outros nomes e de outras formas, de intelectuais já no início do debate, mas também a síntese de um pensamento mais geral daquele momento.

Dessa forma, a garantia de cotas para negros de qualquer trajetória acadêmica, incluindo-se aqueles que já tenham cursado uma graduação, representa um ponto de amadurecimento no entendimento dessa questão. Por já termos discutido, no capítulo 3, as mudanças que essa resolução trouxe, aqui buscamos apenas marcar as complexidades e o sinuoso percurso pelo qual essa política pública caminhou nestes anos.

Para compreender as mudanças trazidas por essa nova resolução, realizamos uma entrevista com o ‘novo perfil cotista’, no caso em tela representado por Rafael. Ingressante no ano de 2018, no curso de Medicina, Rafael (33 anos) já é formado em Odontologia, graduação que cursou na própria UEL, entre os anos de 2001 e 2005. Após ter-se formado, Rafael deu sequência aos estudos, fez mestrado, também na área de odontologia, em Bauru, na Universidade de São Paulo. Ademais, antes de ingressar novamente na UEL, o estudante teve um consultório odontológico por mais de 10 anos.

Em termos financeiros, a realidade que Rafael nos relatou aproxima-se da que foi descrita por Maria, ou seja, uma família de classe média. O estudante confidenciou que, durante a primeira graduação - considerada por ele como muito onerosa - quem o mantinha na universidade era seu pai, não tendo ele nunca a necessidade de trabalhar enquanto estuda.

Outro ponto em comum com Maria ocorreu em razão da ascensão social dos pais que os filhos buscaram ampliar. Rafael diz sempre ser o único negro nos espaços em que habita. No

entanto, diferente de Maria, ele percebe que é observado pelos demais clientes e vigiado pelos funcionários, como se dissessem que seu lugar não é ali.

Ao perguntarmos por que o estudante resolveu prestar vestibular para Medicina e por que pelo sistema de cotas, ele diz que foi uma decisão tomada em conjunto com a sua esposa e que ele estava prestando vestibular nas universidades públicas de São Paulo, quando, lendo o edital da UEL, descobriu a ampliação no sistema de cotas e verificou nesta uma oportunidade de mais fácil acesso. Nestes termos correu o debate:

Participante.: Eu fiz nas públicas do Estado de São Paulo e ai surgiu a

oportunidade de eu fazer aqui na UEL também, quando eu fui ler o edital eu vi que tinha essa possibilidade também, dos 5% que era uma possibilidade nova. É... Acho que, sinceramente assim, eu acho que, tenho que ser sincero com você, eu acho que eu vi naquilo ali, na verdade, uma possibilidade de tornar o meu ingresso mais facilitado.

Pesquisador.: Uhum.

Part.: Então, por esse motivo, aí eu peguei e optei por esses 5%. É.… não só por

isso, mas também pela questão de eu me identificar como uma pessoa negra, também pelo motivo de eu achar que o negro, ele tem que ser cada vez mais visto em posições que... como médico, engenheiro, como dentistas, como ministros, como presidente.

Pesq.: Uhum.

Part.: Se a gente não começar de algum ponto, a gente nunca vai chegar nesse...

naquilo que a gente objetiva, naquilo que a gente almeja.

Pesq.: Uhum.

Part.: Então, eu quero fazer parte dessa construção também. Pesq.: entendi.

É notório que Rafael possui uma compreensão mais ampla da sua posição na sociedade e de onde ele quer estar. Além disso, o estudante toma para si mesmo a missão de fazer com que o negro seja visto em posições de destaque. Neste ponto, o ator social demonstra realizar o processo de estranhamento, diante da constatação da ausência do negro nessas posições, assim, além de verificar essa ausência, Rafael entende por que os negros não ocupam, ou melhor, são impedidos de ocupar essas posições de destaque, e se empenha para conquistar esse objetivo. Assim, o que poderia parecer meramente uma estratégia de ascensão social individualista,

ganha contornos de autorreconhecimento positivo do qual falou Costa (2002), também militante, desejando colocar o negro, de forma generalizada, em evidência.

Essa é a primeira resposta que o estudante levanta para a sua opção de ingresso. Porém, depois de debatermos outras questões, quase no fim da entrevista, questionamos o ator sobre qual seria, para ele, o objetivo que as cotas teriam que cumprir para deixar de serem necessárias. Nos seguintes termos decorreu o diálogo:

Part.: Quando entrar em um restaurante e.... as pessoas não.... E eu não perceber

que as pessoas estão me olhando, por eu ser o único negro naquele local.

Pesq.: Entendi.

Part.: Quando... é. Eu tinha um consultório, que nem eu falei pra você. Pesq.: Uhum.

Part.: O... Acho que eu esqueci de falar isso pra você, eu tinha um consultório, eu

fiz uma vez um cartãozinho e esse cartãozinho, ele... eu fui buscar na.... Eu queria colocar uma imagem de um dentista tá. Aí eu fui buscar na internet um dentista negro pra colocar, um desenho, pra colocar no cartão. Não achei dentista negro. Peguei um dentista branco, coloquei no photoshop, pintei ele de negro, coloquei no meu cartão. E esse era o meu cartão de visita.

Até que um dia, um paciente tava sendo atendido, já era meu paciente a bastante tempo, a uns 3 anos mais ou menos, que era um paciente de ortodontia, e ele virou pra mim e falou “viu, por que você colocou o dentista negro aqui na... no cartão? ”. Como assim cara? Ele falou assim “é, por que você não colocou um...” Como é que ele falou... “Por que você não colocou um dentista normal? ”.

Então, acho que isso responde o que você está me perguntando.

Pesq.: Uhum.

Part.: A partir do momento que ele vê como aquilo não sendo normal, então, talvez

o normal tenha, não tenha muito com a quantidade né, daquilo que se vê.

Pesq.: Uhum.

Part.: Então eu estou buscando isso, a normalidade.

Pesq.: Entendi. (Rafael, Medicina, ano de ingresso 2018, realização da entrevista 2018).

A entrevista com Rafael revela um dos novos significados possíveis para o sistema de cotas. Isto é, ao identificar que é vítima de um racismo sutil, que o próprio interlocutor denomina na sua fala como racismo velado, segundo ele, uma das caracterizações do racismo brasileiro, o sistema de cotas surge como uma contraofensiva a esse racismo. Se não existem

negros em posições de destaque, vamos colocar os negros lá, pensa o estudante. No entanto, o raciocínio não termina aí; para ele não se trata de uma política que sempre deverá existir. Deve existir, sim, apenas até que a presença dos negros nessas posições seja “normal”, o que podemos entender como “naturalizada”.

Desse modo, ficou evidente para nós, a partir desse novo perfil de cotista racial, que uma das finalidades da política de cotas, no mínimo uma das finalidades imaginada pelos seus beneficiários, é a desracialização, que, no entender de Rafael, é tornar a presença do negro

normal nos espaços de poder.

5.3 A POLÍTICA DE COTAS DA UEL, OS MODELOS DE AÇÃO AFIRMATIVA E