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Em Altamira36 é muito difícil discernir as linhas do tempo, pois passado, presente e futuro se fundem a todo instante naquele lugar. Andando pelo centro, logo nos primeiros dias, me deparo com dois outdoors, localizados numa de suas avenidas principais, que nos oferecem pistas sobre aquela cidade. No primeiro, a imagem de um avião sobrevoando um bairro planejado de Altamira, aludindo à venda de lotes, estampava os seguintes dizeres: “O PROGRESSO aqui chega primeiro!”. No segundo, não era possível observar a imagem inteira, pois uma parte do painel já havia se deteriorado, provavelmente em função das chuvas intensas no inverno paraense. Mas a imagem que ali restou ilustrava a bandeira do Brasil, de fundo, com o rosto do ex-presidente Médici, governante do país na época da ditadura militar. Engraçado que, mais tarde, descubro que existe uma cidade próxima à Altamira chamada Medicilândia.

Aquelas imagens teimavam em continuar nos meus pensamentos à medida que caminhava pelas ruas da cidade. Mas o que elas queriam nos dizer? Em que medida tais imagens se aproximavam dos atuais modos de viver em Altamira?

Andava a passos lentos, bastante distraída com aquelas imagens, até que um som estridente de uma buzina, vindo de uma caminhonete imponente, espanta os meus pensamentos. Com o susto, resolvo parar para tomar água numa pequena lanchonete, localizada na esquina de uma avenida. O tempo estava abafado e precisava me recompor para fazer uma visita a um ribeirinho que estava morando na parte central da cidade. Mesmo no inverno, a temperatura em Altamira passa facilmente dos trinta graus.

Sento numa mesa e, ao lado, dois homens, que aparentavam ter uns cinquenta e poucos anos, conversavam em voz alta. Ambos vestiam calça jeans, botas de cano alto e chapéu de vaqueiro. Um deles me chamou muito atenção pelos seus penduricalhos de ouro. Era impossível não reparar no anel, em seu dedo menor, e no relógio de pulso que, de longe, esbanjavam riqueza e poder. Percebo que o diálogo entre os dois gira em torno do preço do gado, e segundo eles o valor de mercado da carne subia a cada dia. Estava claro que se tratava de uma conversa de negócios. Falavam sobre a expansão de terra para o pasto e o preço do

36 Município localizado à margem esquerda do rio Xingu, a oeste do Pará. De acordo com último censo, a população conta com aproximadamente noventa e nove mil habitantes. IBGE. Censo Demográfico 2000. Disponível

em:<https://ww2.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?lang=_ES&codmun=150060&search=para|altamira|inf ograficos:-dados-gerais-do-municipio>. Acesso em: 20 jun. 2018.

alqueires em Altamira. Quando a conversa se encerrou, os dois deram um forte aperto de mãos e, ao se despedirem, um deles falou: “estou com um uísque escocês em casa, te espero

lá para a gente fechar logo esse negócio, rapaz.” Após isso, cada qual entrou em sua

caminhonete luxuosa e seguiu viagem.

Eles partiram e eu fiquei ali, atônita. Aquela conversa havia me perturbado, levando- me a pensar na vida em Altamira, principalmente para os povos da floresta. Se os modos de existir dos ribeirinhos são determinados “por uma relação íntima com a floresta e o rio”37

, num estreito vínculo de pertencimento à terra, como é para eles viver numa cidade onde a terra é propriedade, ou ainda, sinônimo de disputa e de lucro?

Eram muitos os sinais que esta cidade emitia. Sentia que precisa caminhar mais, me embrenhar naquele lugar. Continuei, assim, a perambular pelas ruas da cidade. Durante o trajeto, passo por uma barbearia sofisticada que me chama muita atenção por sua enorme fachada de vidro, e por lojas de grife. Nesse instante, pareço estar em São Paulo, num bairro de elite, cheio de boutiques e de espaços pomposos. Mas ao ver passar, na avenida, uma moto com uma criança na parte da frente, encaixada na perna da mulher condutora, com uma outra na garupa carregando um botijão de gás, aliás, todas elas sem capacete, percebo que, de fato, estou em Altamira. Mas esta cidade que percebo agora é diferente também daquela Altamira dos fazendeiros, com suas caminhonetes potentes. Isto porque para uma parte da população que foi empurrada para a periferia, a forma de transporte na cidade é feita por motos, inclusive, não é incomum nos depararmos com uma motocicleta carregada de gente e de coisas nesta Altamira. De fato, a cidade que meu corpo percorria, num só dia, eram muitas. Quantas Altamiras ainda iria conhecer?

O sol forte fazia com que eu apertasse o passo rumo à casa de um ribeirinho. Ao longo do caminho, mal se viam árvores para nos abrigar do calor. Como pode uma cidade na Amazônia não ter quase nenhuma árvore? As árvores parecem ser um grande empecilho para muitos que ali vivem, principalmente para os fazendeiros, que veem uma terra “limpa” como um grande negócio, ou melhor, um grande pasto.

Mais adiante, entro numa rua de terra onde me deparo com o esgoto à céu aberto e com várias crianças brincando e correndo ao redor. Urubus também faziam parte dessa paisagem urbana: uns estavam em cima dos postes de luz e outros encontravam-se no chão, comendo o lixo esparramado no local. Bem próximo a esse lugar, notei que havia várias casas

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Brum, E. Vidas barradas de Belo Monte. 18 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.uol/noticias/especiais/vidas-barradas-de-belo-monte.htm#ser-rico-e-nao-precisar-de-dinheiro>. Acesso em: 20 maio 2018.

de madeiras. Um homem passava de bicicleta por ali carregando no guidão várias galinhas vivas. Mulheres carregando seus filhos no colo andavam pela rua com guarda-chuvas, protegendo-se do sol.

A essa altura, já nem sabia mais aonde estava indo. Tudo ali me entristecia e enfurecia. As imagens dos outdoors apareciam forte em meus pensamentos. O PROGRESSO chega aqui primeiro para quem? Quem são as pessoas que se beneficiam do tal progresso? De fato, a cidade do progresso não era para todos.

Figura 5: Reassentamento Urbano Coletivo, Altamira/PA

ISSO A QUE DERAM NOME DE REASSENTAMENTOS URBANOS