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2. Representações na Geografia: Cartografias possíveis

2.3 E o que podemos representar através dos mapas?

2.3.2. Território como categoria de análise geográfica das representações

154 A priori, defende-se aqui que os mapas podem representar os territórios, e em Rondônia os mesmos proporcionaram uma leitura espacial dos conflitos de uso que resultou na fragmentação dos territórios dos povos indígenas, pois como se sabe,

“...praticamente todos os grupos indígenas perderam grandes porções de seus territórios, fragmentados em parcelas que são reivindicadas e demarcadas, num parcelamento que gera novas reivindicações, assentadas no direito constitucional que enfatiza os “direitos originários” dos índios sobre suas terras, independentemente da demarcação” (GALLOIS, 2004, p. 39).

Contudo, para Oliveira (1989) não é da natureza das sociedades indígenas estabelecerem limites territoriais precisos para o exercício de sua sociabilidade. Segundo Alarcón (2001) o território indígena é todo o espaço imprescindível para que o grupo étnico tenha acesso aos recursos que tornam possíveis a sua reprodução material e espiritual, de acordo com características próprias da organização produtiva e social. Nesse sentido, Gallois (2004) afirma que a ideia de território fechado junto aos povos indígenas só surge com as restrições impostas pelo contato, pelo processo de regularização fundiária, fato que para a autora favoreceu também o surgimento de uma identidade étnica. Essa discussão então se materializa com a demarcação de terras indígenas.

Assim, concorda-se com Gallois (2004) e considera-se que a diferença entre “terra” e “território” remete a distintas perspectivas, em que terra indígena diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto que território remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. Com isso, para os povos indígenas a concepção de território enquanto espaço identitário é mais satisfatório, mas as outras análises são possíveis. Nesse sentido, segundo Salomon et al. (2005) terras e territórios indígenas, desde os contatos mais antigos das sociedades indígenas com não indígenas, transformaram-se em um ponto crucial para a sua sobrevivência.

O conceito de território apresenta diversas concepções, das quais destacam-se aquelas apresentadas por Lobato Correa (1994), como: espaço identitário; território como domínio jurídico; território a partir do uso/apropriação. Segundo Santos (1994) não se pode pensar o território enquanto categoria analítica sem o uso que se faz do mesmo. Com isso, o uso pode caracterizar um território. Assim, também, como possibilidade de análise dos usos, os mapas contribuem para análise do território.

155 Segundo Holzer (1997) o território tornou-se um conceito científico a partir da etologia. Sustentado por outros autores, Holzer (1997) afirma que um ornitólogo estabeleceu a primeira definição de territorialidade como sendo "a conduta característica adotada por um organismo para tomar posse de um território e o defender contra os membros da própria espécie” (Howard, 1920; citado por Bonnemaison, 1981:253 apud HOLZER, 1997). Holzer (1997) apresenta todos os “problemas” que envolvem a conceituação de território sobre a ótica etnológica. Assim, para o autor o conceito de território, sob enfoque fenomenológico, não pode ser determinado tão somente por algum sistema econômico.

De forma geral, concorda-se com Claval (1999) quando o mesmo afirma que os estudos a partir dessa categoria de análise refletem uma profunda transformação do mundo e de uma mutação correlata das maneiras de compreendê-lo. Para o autor o território sugere estratégias de controle necessárias à vida social - uma outra maneira de dizer que ela exprime uma soberania (CLAVAL, 1999).

E, assim, “falar de território ao invés de falar de espaço é evidenciar que os lugares nos quais estão inscritas as existências humanas foram construídas pelos homens, ao mesmo tempo pela sua ação técnica e pelo discurso que mantinham sobre ela” (CLAVAL, 1999, p. 11).

Para Haesbaert (2004a, p. 1) “território, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político” e diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação”. Segundo o autor poderíamos falar em dois grandes “tipos ideais” ou referências “extremas” frente aos quais podemos investigar o território, um mais funcional, outro mais simbólico (HAESBAERT, 2004a). Fernandes (2008) ao tratar dos tipos de territórios os distingue em: primeiro território, segundo território, terceiro território e território imaterial. Segundo o autor esta leitura permite compreender as diferencialidades das relações e territórios, e mapear as conflitualidades para compreender melhor os sentidos das disputas territoriais.

Parece razoável que do ponto de vista da Cartografia o território, a partir do uso e apropriação, possa ser revelado em diversas escalas, ou seja, sob a perspectiva dos territórios materiais e dos fluxos. As cartografias de modo geral contribuem para revelar as diferenciações da produção e como os territórios são organizados, permitem discussões das relações e das classes sociais que os maneja. Assim, o conceito de

156 território nos remete ao envolvimento com o espaço de dominação, propriedade/pertencimento de grupos e estabelece relações de poder específico.

Dessa forma, a abordagem do território não ocorreu para delimitação dos mesmos junto aos povos indígenas, mas antes para pensar a fragmentação de um espaço que era todo ocupado por povos indígenas. Com isso, se apenas as terras indígenas restaram para os povos indígenas, é sobre elas que se concentram os estudos. Essa análise revela as formas específicas de ocupação e práticas sociais em Rondônia, pelo indígena e não indígena, e que regulam o uso do espaço. Isso por que “não há como definir o indivíduo, o grupo, a comunidade, a sociedade sem ao menos inseri-los num determinado contexto geográfico, ‘territorial’” (HAESBAERT, 2004a, p. 20).

Ainda segundo Haesbaert (2004b, p. 79), “o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural”. Nesse sentido, Gomide (2008) se apropriou do conceito de território e territorialidade, enquanto categoria analítica, para estudo do povo A’uwe Xavante do Mato Grosso. Para a autora essa abordagem é importante, “pois possibilita um entendimento sobre a formação das terras indígenas, assim como uma análise sobre a fragmentação dos territórios indígenas” (GOMIDE, 2008, p. 46).

Em Rondônia, Almeida Silva (2010) analisou o território sob os aspectos físicos e imateriais, e a territorialidade como ação no território. O autor chamou, deste modo, a atenção para o fato de que os conceitos de território e territorialidade aplicados em sua pesquisa possuem outros significados de representação distintos dos nossos, isso porque a apreensão de mundo é realizada pelo constructo dos valores ancestrais apoiados na representação e presentificação cosmogônica (ALMEIDA SILVA, 2010, p. 19).

Sob outros aspectos, o território é um conceito utilizado para se referir “aos espaços de governança em escala municipal, reunindo um conjunto de municípios que formam uma microrregião, como, por exemplo, os Territórios da Cidadania” (FERNANDES, 2008, p. 5), mas também aos projetos em escalas transnacional, como exemplo, os “eixos” territoriais da Iniciativa para la Integración de la Infraestructura Regional Suramericana (IIRSA)92.

Nessa perspectiva é importante referir às políticas públicas e privadas de apropriação do espaço, que tanto afetam a vida dos povos indígenas. Em Rondônia

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É um processo multisetorial que pretende desenvolver e integrar as áreas de transporte, energia e telecomunicações da América do Sul, em dez anos.

157 destaca-se os programas de governo que estão inseridos nas políticas de integração da Amazônia. Segundo Fernandes (2008), essas políticas formam diferentes modelos de desenvolvimento que causam impactos socioterritoriais. O incentivo e expansão da ocupação, seja pelo Estado ou pela iniciativa privada, desterritorializa outras relações sociais e extermina relações não capitalistas, contribuindo para a destruição dos territórios camponeses e indígenas (FERNANDES, 2008).

Nesse contexto, no movimento da sociedade em suas transformações, a categoria território usado revela a complexidade da relação social com o seu meio (CAVALCANTE et al., 2011). Dessa possibilidade surge o Primeiro Território, que constitui outros territórios produzidos pelas relações das classes sociais (FERNANDES, 2008).

As ações de incentivo à ocupação em Rondônia, já descritas, e como mapeadas no Capítulo III, revelam como ocorreu a apropriação do território. No contexto regional a Amazônia parece cada vez mais emoldurada no processo de transformação contemporâneo, em que a técnica e a ciência estão imbricados nos horizontes de ação dos agentes econômicos e públicos quanto à transformação do território (CAVALCANTE et al., 2011). Esses movimentos vão influenciar na formação do segundo território, que é definido pela propriedade como espaço de vida que pode ser particular ou comunitária, mas vai além, pois, por exemplo, as sociedades capitalistas criaram as propriedades capitalistas (FERNANDES, 2008).

No contexto do segundo Território, Fernandes chama a atenção para o fato de que “os territórios capitalistas e não capitalistas produzem permanente conflitualidades pela disputa territorial. Territórios indígenas, quilombolas, camponeses, de moradia, com suas várias identidades, são constituídos na multiterritorialidade rural e urbana” (FERNANDES, 2008, p. 5). Ainda segundo o autor o terceiro território é o espaço relacional considerado a partir de suas conflitualidades e reúne todos os tipos de territórios.

O terceiro território está relacionado às formas de uso dos territórios, portanto, às suas territorialidades (FERNANDES, 2008), àquilo que se pode mapear, pois segundo o autor esta é a representação das formas de uso dos territórios.

O território imaterial pertence ao mundo das ideias, das intencionalidades, que coordena e organiza o mundo das coisas e dos objetos, o mundo material, e é a base de sustentação de todos os territórios (FERNANDES, 2008). Os diversos tipos de território são materializados em Rondônia a partir da superação dos obstáculos da circulação

158 (Figura 43), ou seja, das dimensões qualitativas de espaço-tempo necessárias à produção de uma mercadoria globalizada (SILVA, 2014).

Segundo Silva (2014, p. 71) “a partir de 1997 a Hidrovia Madeira - Amazonas interliga os portos de transbordos de soja dos grupos Maggi e Cargill (agentes hegemônicos), conectando a cidade de Porto Velho à Itacoatiara, no estado do Amazonas, e à Santarém, no estado do Pará”. A prática da agricultura de soja no sul de Rondônia pressiona para retirada da vegetação nas proximidades das terras indígenas, Parque do Aripuanã, Rio Omerê e Kwazá do Rio São Pedro, aspectos discutidos em profundidade nos resultados.

Figura 43. Rede Territorial: transportes e circulação de soja na Amazônia Meridional. Fonte:

Silva (2005).

Por fim, as possibilidades de leituras do território através dos mapas revelam representações da territorialização ou delimitação do traçado do Estado; delimitações administrativas para facilitar o controle centralizado sobre o território nacional e seus domínios; cartografias dos zoneamentos para prescrever utilizações para o território (ACSELRAD et al., 2008).

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CAPÍTULO III

Marco geodésico danificado em areais na Terra Indígena Kwazá do Rio São Pedro. Agosto de 2011. Fonte: Guidelli (2013).

O contato coloca um grupo indígena diante de lógicas espaciais diferentes da sua e que passam a ser expressas também em termos territoriais. As diversas formas de regulamentar a questão territorial indígena pelos estados nacionais não podem ser vistas apenas do ângulo do reconhecimento do direito à “Terra”, mas como tentativa de solução desse confronto (RICARDO (Org.), 2004).

No século XVI, os índios eram ou bons selvagens para uso na filosofia moral europeia, ou abomináveis antropófagos para uso na colônia. No século XIX, eram, quando extintos, os símbolos nobres do Brasil independente e, quando de carne e osso, os ferozes obstáculos à penetração que convinha precisamente extinguir (CUNHA, 1994).

160 3.1. Introdução

A foto de abertura do capítulo é proposital, pois revelou um pouco de como a terra indígena Kwazá do Rio São Pedro é tratada. Assim, não basta ser a menor terra indígena de Rondônia, com área de 16.799 hectares, a Rio São Pedro também está localizada em área de solos arenosos (Figura 7), o que lhe confere susceptibilidade natural a erosão muito alta. Seus limites são invisíveis, mas as ações degradantes saltam aos olhos e atentam contra os marcos geodésicos que foram parcialmente removidos. Além disso, o fogo que veio das fazendas atingiu a placa da FUNAI, que indicava que a partir dali encontra-se uma terra indígena e que o acesso é limitado. Obviamente que a foto foi obtida numa terra indígena, mas a realidade não é exclusiva da TI Kwazá do Rio São Pedro.

O desenvolvimento econômico e a busca sedenta pela riqueza a qualquer custo ameaça as terras indígenas em Rondônia no “pós-contato” e configura um claro processo de des-re-territorialização. As pressões sobre a legislação que garantiu o direito à terra estão em curso por um grupo que representa o agronegócio na câmara e no senado.

Nesse sentido, as agressões sobre as comunidades indígenas são variadas, optando aqui por tratar da: pressão sobre a legislação vigente e direitos garantidos pela Constituição, expansão da malha viária, da construção de grandes e pequenas centrais hidrelétricas, ameaça à zona de amortecimento93, especialmente pela implantação de fazendas que limitam com as terras indígenas, e a extração de minério. A definição desses temas ocorreu mediante discussões94 com os professores indígenas que frequentam o intercultural, que relataram que tais atividades são impactantes e ameaçam a sobrevivência cultural e física desse povo. O esforço pela caracterização das pressões ocorreu mediante a hipótese de que a percepção e representações dos professores indígenas através dos mapas mentais em Rondônia refletirão os conflitos que enfrentam, sobretudo com a demarcação de suas terras e aos direitos adquiridos, ou seja, um período de crise que contribui para aflorar as representações. Como foi apresentado, a hipótese se confirmou e inúmeros mapas mentais trazem a questão dos impactos claramente definidos.

93 Não existe zona de amortecimento definida em lei para as terras indígenas, assim adotou nessa tese a

mesma distância recomendada para as UC de Proteção Integral, que é de 10 km para UC sem plano de manejo.

161 Assim, o que se estudou foram os principais focos de tensão no presente, mas também um cenário futuro em que se identificou possibilidade de agravamento das pressões sobre as terras indígenas em Rondônia. O estado é, ainda no século XXI, uma das frentes pioneiras do processo de ocupação no país. Segundo Soares (2009) Rondônia é uma fronteira para ampliação da produção agrícola nacional em conflito com o acirramento de políticas preservacionistas e já apresentando áreas inseridas no mercado global de commodities.

A figura de abertura do capítulo é uma pequena “amostra grátis” do processo de ignorar os povos indígenas e do “atropelamento” e desrespeito em suas terras demarcadas. O marco geodésico é protegido por Lei, mas o respeito ao seu significado está longe de ser realidade, especialmente por que a fiscalização é ineficiente.

Outros problemas são identificados, pressionam os povos indígenas e os induzem a procurar a cidade. Nesse sentido, destaca-se a precária atenção à saúde. Segundo o CIMI (2013, p. 86) no “estado de Rondônia, onde houve o maior número de ocorrências, foram verificados casos de falta de medicamentos, de médicos, de transporte e desassistência”. Além disso, lideranças indígenas do município de Costa Marques relataram falta de atendimento odontológico na região. A desassistência foi informada ao Ministério Público Federal de Ji-Paraná.

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