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4.2 Processo analítico

5.1.3 Repertórios sobre contexto

5.1.3.1 Território

A necessidade de analisar os repertórios sobre território surgiu a partir da imersão no campo. Começamos a perceber que tais repertórios nos apresentavam elementos que contribuíam na produção das mulheres negras e pobres que usam drogas ilícitas. Em alguns momentos as nomeações relacionadas diretamente com as mulheres se assemelhavam com as nomeações do território.

O território onde essas mulheres estão é Santo Amaro. Segundo dados do IBGE, a população total de Santo Amaro, bairro do mangue Artur de Lima Cavalcante, é de 27.939 habitantes. Destes 54,62% são mulheres e 63,91% são pessoas não brancas. A densidade demográfica do bairro é de 73,52 habitantes por metro quadrado. O valor descrito de Rendimento Nominal Médio Mensal dos Domicílios é R$ 1.892,10. A proporção de mulheres responsáveis pelo domicílio é de 55,32%. Além disso, o bairro é considerado uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), ou seja, dentro desse território tem ações cujo objetivo é resguardar áreas

28 Segundo Sueli Carneiro (2005) “a miscigenação tem-se constituído num instrumento eficaz de

embranquecimento do país, por meio da instituição de uma hierarquia cromática e de fenótipos que têm na base o negro retinto e no topo o “branco da terra” oferecendo, aos intermediários, o benefício simbólico de estarem mais próximos do ideal humano, o branco” (P. 64).

ocupadas por populações de baixa renda. A proposta é proteger o direito a moradia frente à especulação imobiliária, criando mecanismos para facilitar a regularização fundiária e a urbanização (IBGE, 2010). Essa caracterização territorial demonstra que Santo Amaro é um bairro pobre, hegemonicamente habitado por mulheres não brancas responsáveis pelo domicílio e com especulação imobiliária.

O vídeo da TV Record aponta no início da reportagem que o território onde as mulheres negras estão é uma área perto dos centros de poder, como se desse uma conotação de que esses “centros de poder” não conseguem resolver um problema tão perto deles. Segue trecho do vídeo:

O mangue ocupa essa área às margens do rio Capibaribe, no Bairro de Santo Amaro. Uma região muito próxima aos principais centros do poder de Recife: a Câmara municipal, A assembleia Legislativa e o Palácio do Governo de Pernambuco estão a pouco mais de 1km de distância. A sede da Prefeitura fica ainda mais perto. Há apenas 500 metros do mangue (3’10’’)

As notícias e os vídeos querem anunciar um incômodo em relação à existência dessas “meninas e mulheres” em um território próximo aos “principais centros do poder” onde “um dos símbolos da paisagem recifense (N.01)”, mangue que representa um importante movimento cultural que agrega valor à cidade, o Manguebeat, é considerado “esgoto sexual (N.01)”. O incômodo se dá principalmente por aquele território estar cheio de mulheres negras e pobres se prostituindo e usando crack, mostrando como Recife é desigual e reproduz e atualiza a colonialidade. Inclusive pela maioria das pessoas que integram “os principais centros de poder”.

As notícias analisadas vão caracterizando esse território, criando um cenário descritivo que foca não só no mangue e sua vegetação, como no lixo, nas práticas que acontecem ali, utilizando sempre a relação com o uso de drogas ilícitas e a prostituição. Nos trechos abaixo podemos ver essa afirmação:

A área é conhecida como ponto de prostituição e uso de drogas (N.08)

No local, mulheres vendem o corpo e consomem drogas em condições degradantes (N.07)

O mangue da Artur de Lima Cavalcante cheira a violência (N. 04) Nos trechos acima, as notícias retratam que aquele território é violento e que nele há práticas de prostituição e consumo de drogas. Além disso, mas uma vez as notícias adjetivam e valoram essas práticas como degradantes, escolhendo o uso de

nomeações que inferiorizam as mulheres negras, e reforçam essa imagem racista. Outro aspecto que chama a nossa atenção é que ele traz o sentido do olfato para compor o território onde essa mulher negra está inserida, ao afirma que o mangue “cheira a violência” 29. Além de uma construção visual, a repórter escolhe ampliar nosso sentido agregando o cheiro, que aqui no caso, sendo de violência, é um fedor. Fedor associado à prostituição e uso de crack.

Fedor associado às mulheres negras e pobres que ali estão. A questão é que essa mídia “Urubu” não considera que a sujeira do mangue também vem da poluição das indústrias, portos e prédios dos “Urubus que tem casas” (Chico Science e Nação Zumbi, 1996) e que jogam suas sujeiras no ambiente e na natureza. Mas de fato esse é um projeto da colonialidade. Dentro do pacote está o total afastamento com a natureza, como apontado por Maria Lugones (2014) e Abdias do Nascimento (2017). Projeto urbanístico imundo, que suja, deixa fedentina e esconde as sujeiras da branca burguesia. Mas como bem avisa Chico Science e Nação

Zumbi “ninguém foge ao cheiro sujo

Da lama da Manguetown”.

As notícias também caracterizam o território como sujo através das fotos e trechos das matérias, como demonstrado a seguir:

29Ao ler esse trecho, veio a tona a memória de quando descobri que o racismo tinha cheiro. Em conversa com

uma amiga negra sobre as situações racistas vivenciadas por nós, ela conta que um homem branco com quem ela tinha transado havia dito para ela que ela “ tinha cheiro de nego” . E no momento que ela disse isso, me veio a memória que eu já havia escutado que eu ~nào tinha cheiro de nego”. E nesse dia descobri que racismo tem cheiro. Também é olfativo.

Figura 3 – Foto da notícia 02

Um dos símbolos da paisagem recifense é também esgoto sexual (N.01)

Preservativos masculinos tomam o chão do percurso (N. 01) Apesar de as camisinhas se espalharem pelo mangue (N.02) Embalagens de camisinha são deixadas pelo chão (N.02)

As descrições acima constroem uma imagem de um território cheio de lixo. Mas vale ressaltar que não é qualquer lixo como descrito, mas sim um lixo sexual, vindo de camisinhas espalhadas pelo chão. Esse mangue é caracterizado como “esgoto sexual”. O lixo que está ali é um lixo sexual.

A nomeação esgoto é mais uma adjetivação que reforça esse lugar racista de como a mídia descreve o território no qual essas mulheres negras e pobres estão inseridas. A palavra esgoto utilizado pela repórter faz o nosso olfato ser novamente. Esgoto também tem ratos, restos, cenário propício para essa constituição de não- humanidades. Lixo sexual que é associado a essa mulher negra, que se prostitui. Práticas sexuais das pessoas negras, que são caracterizadas por Maria Lugones (2014) ao descrever a primeira divisão colonial como “promíscuas, grotescamente sexual e pecaminosas” (p. 936).

E por falar em pecaminoso, esse território também é descrito como sujo religiosamente. Após descrever que as mulheres negras ficam corajosas ao usar o crack, a notícia traz a informação que elas só perdem essa coragem quando “se deparam com despachos”, como descrito no trecho a seguir

Tamanha coragem só cai por terra quando as meninas se deparam com despachos deixados por seguidores de religiões de matrizes africanas no meio do mangue. “Tenho medo de cruzar com um despacho desse”, confessa Juliana. (N.02)

O trecho acima deixa negritado o racismo operado pela mídia colonial ao destacar os chamados “despachos” de forma negativada, como causador de medo para essas mulheres. Essa construção reforça os preconceitos relacionados às religiões de matriz africana desde a época da colonização (LUGONES, 2014; NASCIMENTO, 2017).

A perspectiva decolonial denuncia que as práticas religiosas das pessoas negras se enquadravam como uma das características para afirma-las como sujas e

bestiais. Teve sua prática criminalizada, assim como as drogas utilizadas por essas pessoas. Opressões definidas na primeira divisão hierárquica dicotômica da colonialidade, que tem o cristianismo e o catolicismo como referências religiosas (MOTT, 1997; LUGONES, 2014).

Atualmente, mesmo não sendo uma prática criminalizada, as religiões de matriz africana sofrem com o racismo religioso. Os terreiros e as pessoas praticantes da religião são constantemente atacadas. Inclusive, enquanto esse texto era elaborado, aconteceu em Recife uma situação de racismo institucional muito séria por parte de uma vereadora da prefeitura de Recife30.

Ao destacar que a coragem advinda do crack acaba quando “meninas” encontram com as oferendas feitas nos rituais das religiões de matriz africana, reforça o racismo. Traz à cena um repertório relacionado aos chamados “despachos” e associa como mais negativo do que o efeito do crack. Inclusive afirma que o efeito passa quando essas meninas cruzam por eles. E a própria troca da nomeação mulher por menina é um fato a ser negritado. Ao utilizar a nomeação menina e associa-las aos “despachos”, é agravando o efeito descritivo da notícia.

Importante ressaltar que a jornalista produz esse trecho como se fosse uma opinião dada pela mulher, na intenção de se desresponsabilizar dessa informação. Porém ela escolhe essa intencionalidade ao fazer esse destaque. Ela traz para a cena das notícias que anunciam o caso, repertórios associados com o preconceito religioso. As notícias analisadas vêm descrevendo esse território como lixo, e localiza que aquele “esgoto sexual”, além de camisinhas tem um lixo religioso.

Não que essas “meninas” não tenham feito essa afirmação. O racismo é tão cruel e sofisticado, que as próprias pessoas negras produzem racismo entre si e direcionam-no para práticas ancestrais do povo negro. As notícias do jornal fazem a questão de ressaltar essas características. Chamam atenção aos despachos como compondo aquele território.