• Nenhum resultado encontrado

PARTE II: ADMIRATIO

2.3 Territórios da poesia

Se a poesia possui tamanha gradação entres as artes, se a tradição movida pelas forças centrípetas da língua estabelece um gênero centralizador como o mais favorecido, por que isso não é notado nos tempos modernos? Não é só na aparência. A poesia vem perdendo seu território e seu status quo na sociedade em favor da linguagem prosaica: “A civilização moderna, impermeável à poesia, aparece para Quintana como um mundo em decomposição, que se desmorona inelutavelmente.” (BECKER, 1996, p. 35).

Embora a vida social moderna tome como seu principal guia a materialidade, os valores de troca, já que tudo na modernidade tem que apontar para a idéia de lucro com a sua consequente forma progressiva do tempo, do sempre ir à frente, é preciso reconhecer e ter a poesia como sendo uma necessidade importante para o engrandecimento do espírito humano, ao mesmo tempo em que pode humanizar o homem. T. S. Eliot (S.d.) relembra que a poesia é aquela que não se baseia somente no prazer; todo bom poeta tem algo valioso a oferecer, além do prazer estético.

Mario Quintana é consciente dos custos trazidos pela modernidade ao homem. A sociedade capitalista se desvencilha de tudo aquilo que é considerado “anexo” ou “acessório”. Coisas que antes possuíam fins estéticos, hoje em dia, não possuem mais valor. Em Mario Quintana, percebe-se a perda do território da imaginação através da abolição das heráldicas; dos chapéus, que fez o homem perder elegância; das saias longas, que fez a mulher perder simetria; do sabor neutro do iogurte, substituído por outros com diferente sabor predefinido,

dos cafés, que já não possuem cadeiras, evitando que as pessoas se relacionem e, obviamente, do hábito de ler poesia.

“O poema reconhece plenamente, sim, que faz parte de uma família, que é herdeiro de uma cultura […]” (TEZZA, 2006, p. 214). Mario Quintana é consciente da tradição que o formou, tem conhecimento do que pensa o mundo intelectual e das artes acerca da poesia, mas é como qualquer outro poeta que se pergunta qual o seu papel como poeta na sociedade moderna. Por que produzir poesia quando essa já não possui tanta significância quanto no passado e, o mais difícil, por que cantar quando aparentemente já não há o que cantar? Abaixo, observa Tezza as dificuldades da poesia nos tempos modernos:

A radical economia de vocabulário, no chão comezinho das repetições, em que as rimas, mais ainda que pobres, se fazem pela simples duplicação de três palavras, concentra e centraliza a angustiante unilateralidade poética. A voz do poeta canta, mas sabe, em cada passo, que, munida ‘só de pão e água’ não há propriamente o que cantar, exceto a negação, uma negação que inclui uma dura consciência do próprio tempo, como atitude […]. O poeta se reconhece — e esse é o desespero de sua linguagem — órfão de qualquer cosmogonia. (TEZZA, 2006, p. 215).

Na leitura da poética de Mario Quintana, percebe-se esse impacto. Cada verso quintaniano parece escrito para desligar “o plugue” do homem moderno da sua “tomada capitalista”. Becker observa que, na poética quintaniana, há uma preocupação acerca desse quadro e lança esta questão tão oportuna: “Por que a civilização moderna se tornou tão impermeável à poesia, e à arte em geral?” (BECKER, 1996, p. 33).

Mario Quintana se engaja numa luta pela sensibilidade nos tempos modernos, entretanto, para lutar, é preciso saber o que causaria essa atual impermeabilidade social à poesia. Becker procura respostas para tal condição atual e as encontra em Herbert Read (1883-1968). O professor Becker chama a atenção para o fato de que a tese de Read satisfaz como resposta à pergunta sobre as causas da impermeabilidade. Para Read, o mundo moderno se vê influenciado por três coisas que tomaram o lugar das artes. A primeira delas é a alienação, causada pelo divórcio entre as faculdades humanas e os processos naturais, ocasionando a perda da sensibilidade. A manipulação da natureza já não é necessária, fazendo com que o homem não distinga mais os tons das cores e as variações sonoras. Essas habilidades já não são treinadas nem estimuladas fazendo com que o homem torne a amar “apenas a violência, mesmo na arte, pois apenas a cores e os sons violentos conseguirão excitar seus nervos amortecidos” (BECKER, 1996, p. 34). E continua explicando que, conforme Read, o segundo fato que leva o homem a se distanciar das artes é o extremo

racionalismo dos tempos modernos. Essa linha de pensamento traz consigo o declínio das religiões, a perda na credulidade no mistério. O homem, nessa espécie de racionalismo incompleto, chega até a esquecer-se que o cosmo ainda é indecifrável. A última causa do afastamento do homem moderno em relação às artes é que a sociedade atual quer se mostrar democrática. Com isso, associa os princípios da arte aos da aristocracia “que não são (ou não deveriam ser)” (BECKER, 1996, p. 34) os determinantes da Estética.

Pois bem: em que outro lugar pode se refugiar o discurso poético para quem vive a consciência multifacetada das linguagens do nosso tempo? No mundo leigo, não há mais espaço para uma voz ‘centralizadora’, ‘autoritária’, ‘dogmática’, nos termos em que Bakhtin definia o limite poético […] mais do que uma guerra de escolas é uma tensão do tempo. (TEZZA, 2006, p. 207).

Nesse contexto social e artístico, encontra-se o poeta. A tarefa de Mario Quintana na modernidade é de muita responsabilidade. Ele traz consigo a ciência da complexidade poética e do legado do verso aliado à ciência da repulsa do homem moderno às artes em geral e mais especificamente ao verso: “Num mundo fragmentado e prosaico como o nosso, não é tarefa fácil sustentar o poder dessa linguagem sem se entregar aos lugares comuns da cultura de massa ou aos universais poético-religiosos, que, parece, são a hegemonia que nos restou.” (TEZZA, 2006, p. 215). É um trabalho árduo que, sem dúvida, Mario Quintana executará com maestria, como será analisado mais adiante.

Documentos relacionados