• Nenhum resultado encontrado

Territorialização do MST em Santa Maria da Boa Vista: da ocupação da Fazenda Safra à

CAPÍTULO III – TRAJETÓRIA DA EDUCAÇÃO NO MST EM SANTA MARIA DA BOA

3.1 Territorialização do MST em Santa Maria da Boa Vista: da ocupação da Fazenda Safra à

Para compreender o processo de territorialização do MST – cuja origem remonta à ocupação da Fazenda Safra, em Santa Maria da Boa Vista (SMBV), recorreremos às lutas e origem do MST na região de Pernambuco. Esse regresso é necessário para analisar o trabalho político e pedagógico do MST com as escolas da região.

O Estado de Pernambuco, baluarte das Ligas Camponesas36, teve a primeira bandeira do Movimento37cravada em agosto de 1989, quando da primeira ocupação ocorrida no Complexo Agroindustrial de Suape, no município do Cabo de Santo Agostinho, na Zona da Mata. Apesar de ela ter dado origem ao MST, em Pernambuco, só durou três dias, em razão de que as famílias foram violentamente despejadas por um forte esquema policial. Conforme descreve CASA GRANDE (2001),

[...] em seguida ao violento despejo deste local, houve um acampamento em frente ao Palácio do Governo, na cidade do Recife, em busca de acordos para negociação do assentamento daquelas famílias Sem-Terra. Tendo sido despejadas à meia noite do mesmo dia pelo então Governador Miguel Arraes, as famílias voltam para o Cabo de Santo Agostinho e montam um acampamento provisório à beira da BR 101. Após este despejo, as famílias foram assentadas na Fazenda Varginha, no município de Cabrobó, sertão do Estado (p. 95).

Apesar do Assentamento, em Cabrobó, significar a chegada do MST no submédio São Francisco, foi a ocupação da Fazenda Safra, em 1995, em Santa Maria da Boa Vista, que representou o motor de mobilização social na luta pela terra no sertão.

36 Um dos principais movimentos sociais de luta pela terra no Brasil, sua atuação se deu na década de 1950,

no Nordeste, com grande destaque nos Estados de Pernambuco e Paraíba. Para melhor compreensão do assunto, ver STÉDILE, João Pedro (org.). A Questão Agrária no Brasil v. 4 – História e Natureza das Ligas Camponesas 1954-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

37 De agora em diante, ao utilizar a palavra Movimento, com a letra inicial maiúscula, estaremos nos

O acampamento reuniu, então, mais de 2.200 famílias, com uma população estimada em 6 mil trabalhadoras e trabalhadores sem-terra, oriundos de diversos municípios dos Estados de Pernambuco e da Bahia.

Para que, efetivamente, esse acontecimento se tornasse realidade, foi imprescindível um trabalho de base38 que articulou famílias em toda região e sua organização em grupos, por bairro ou por comunidade. No percurso que antecede a ocupação da Fazenda Safra, naquele ano, um processo de formação foi decisivo na motivação das pessoas para participarem da ocupação. Esse processo de formação ocorreu durante a 3ª edição do Congresso Nacional do MST, ocorrido em 1995, em Brasília. Para João, a participação de representantes dos grupos de famílias nesse congresso foi um fator mobilizador e decisivo na ocupação:

O terceiro Congresso Nacional do Movimento Sem Terra tava acontecendo naquele período, um dia antes da ocupação. Então, nós articulamos um ônibus, aqui da região, enchemos o ônibus só de coordenadores de grupo. Então, só foi quem coordenava os grupos, né? Pessoas, enfim, que contribuía nos grupos de base, né, que estavam sendo organizados. Então, a gente levou 48 coordenadores de grupo, coordenadores e coordenadoras de grupo, aqui, principalmente de Santa Maria, Lagoa Grande, de Petrolina que era onde... e Mirandiba... onde era mais... tava mais forte, né? Enfim, o trabalho de base.

Então, essas pessoas quando voltaram do congresso, então voltaram assim, né, voltaram... Voltaram com pique, né. E um único coordenador que desistiu e o grupo dele se desmontou, né. (...) Época do congresso, imagina, foi falado de Cuba, de socialismo, contra o neoliberalismo, não sei o que, não sei o que, Che Guevara, e tal. (...)

Então, era uma visão diferente, né. E, mas os outros 47, não. Nós cheguemo de volta, aqui, dia 28 de julho, e a ocupação aconteceu dia 7 de agosto, né. Então foram oito dias, assim, decisivos, né. Que o povo caiu em campo, trabalhou, os grupos cresceram e a gente conseguiu então fazer a ocupação. No dia, a gente não tem uma, uma vamos dizer, uma certeza de quantas famílias foram, mas foi em torno de 3 mil

38Cf. PELOSO, Ranulfo et al. Como fazer trabalho de base. In: PELOSO, Ranulfo et al. Método de trabalho de base e organização popular. São Paulo: MST (Setor de Formação), outubro de 2009: o

Trabalho de Base diz respeito à organização das pessoas, sendo, portanto, o principal alicerce de qualquer organização social, sem a qual não é possível vislumbrar conquistas ou disputar a correlação de forças. Assim, na prática, o trabalho de base “pode se dar nas favelas e nas ocupações de terra, nas fábricas (...) Ela se sustenta quando mantém os pés no chão e a cabeça nos sonhos”. Para tanto, é indispensável conhecer a realidade, ou seja, “ter conhecimento da realidade, as informações vêm da observação, conversas, visitas, pesquisas e convivência. Conhecer e ser conhecido é não ser estranho – é um exercício que exige cumplicidade e aprendizado da linguagem para favorecer a integração, a troca e a confiança. Entre as informações algumas são indispensáveis: a) as que tratam do território: a geografia, o jeito, a cultura, os costumes, os saberes, a população (...) b) as que tratam da economia: o número de trabalhadores, o tipo de trabalho, o volume da produção, a renda (...) c) as que mostram o social e o político: suas lideranças, personalidades, entidades e organizações a favor e contra o povo (...) d) as que indicam carências e potenciais: a situação social, os valores culturais e artísticos (...) e) as que revelam fantasias, como os sentimentos e os desejos, ainda que pareçam ingênuos ou reproduzidos f) as que falam da resistência - individual, grupal, espontânea, organizada, pacífica, violenta (...) (p.48)

famílias no dia da ocupação, não é? (...) Dia 7 de agosto de 1995. Que foi a fazenda Safra, nessa época. (...) E nós cheguemo, então, de madrugada, 4 hora da manhã e tinha 40 policial dentro da área, fazendo guarnição e mais 18 capanga que era da Milano e das fazenda vizinha que eram empresa de segurança que trabalhavam aí nas fazenda, a jagunçada aí dos fazendeiro que tavam lá pra impedir. Então, quer dizer, tinha pelo menos uns 60 homem armado dentro da fazenda pra impedir a ocupação” (apud CASAGRANDE, 2001, p. 97).

O acampamento Safra nunca sofreu despejo, mesmo após decreto de reintegração de posse39 expedido pelo juiz local. Quando esse decreto foi emitido, o MST recorreu ao Tribunal Regional de Justiça, o qual reconheceu que os trabalhadores estavam numa reserva da Marinha (uma das três forças armadas do Brasil), suspendendo, assim, a reintegração de posse. O acampamento Safra trouxe conquistas em um curto período de tempo para os trabalhadores, que em oito meses de ocupação tiveram a fazenda vistoriada e decreto de desapropriação40 e, em dez meses, tiveram emissão de posse.41

A ocupação da Fazenda Safra se configurou como uma grande estratégia do Movimento, do ponto de vista territorial, uma vez que aquela se encontrava localizada em uma região que liga os municípios de Santa Maria da Boa Vista e Lagoa Grande, na qual estavam aglutinados uma série de latifúndios. Diante do grande número de famílias no acampamento Safra, o MST seguiu se expandindo, indo, gradualmente, ocupando outros latifúndios na mesma região. Deu, assim, origem à “Estrada da Reforma Agrária”.

Com a ida do MST para o sertão do São Francisco, ali apareceu um aglutinado muito grande de áreas. Um processo bem massivo que foi a Safra que se expandiu para diversas outras áreas e pela localização possibilitou fazer um trabalho mais orgânico, um coletivo que se formou ali, acompanhava as diversas áreas e estava em permanente processo de estudo, diálogo e acompanhamento a essas áreas (Luzia).42

As lutas contra a concentração de terras no sertão ocorreram em um contexto de crescimento do próprio Movimento no Estado. A luta pela terra se fortaleceu à medida que o movimento social que a empreita conseguiu, de forma organizada, se expandir. O MST, em seu processo de expansão, fincou bandeira nos latifúndios de Estados que, outrora, foram palcos de lutas pela terra. A ocupação foi assim uma ferramenta indispensável para a conquista de territórios e para o enfrentamento contra o latifúndio. De acordo com Fernandes (s/d), a ocupação é

39 Termo jurídico que designa a entrega de uma propriedade ao seu anterior proprietário. 40 Termo jurídico que designa a entrega de uma terra para fins de reforma agrária. 41 Termo jurídico que efetiva a criação de um assentamento.

a condição da territorialização. Conquistada a terra, uma fração do território, organizam um novo grupo de famílias para nova ocupação, nova conquista de outra fração do território. Dessa forma, os Sem-Terra migram por todo o território nacional, plantando raízes da luta e minando a concentrada estrutura fundiária (p.28).

Além dessa ação contundente de enfrentamento à propriedade privada, o Movimento construiu uma infraestrutura social, em que a educação consiste em um dos pilares dessa infraestrutura. Por isso, o MST sempre lutou junto às Secretarias de Educação das prefeituras e dos governos estaduais, exigindo a implementação de escolas nos acampamentos.

No acampamento da Fazenda Safra, num primeiro momento, as atividades educacionais foram organizadas por pessoas do próprio lugar. Conforme relata uma integrante do Coletivo de Educação da época:

A gente começou a dar aulas voluntariamente através do MST. Na prática, nós nem sabíamos que tínhamos que procurar o poder público, nós só sabíamos que queríamos dar aula, que era importante ter aula para aquelas crianças e começamos a fazer o trabalho. Inicialmente, tudo o que aconteceu lá foi com conhecimento empírico, ou parcialmente empírico. Não houve nenhum processo de formação; nós não tínhamos formação ainda em magistério, no entanto, já tínhamos uma noção de como dar aula. Começamos o processo de alfabetização: muitas crianças na sala de aula, nós mesmos fazíamos o planejamento, comprávamos o material. Então, tudo era muito sem formação; foi um período para adentrar aquela realidade e suprir uma necessidade que existia dentro da comunidade, porque, imagine, 2.204 famílias, quantos meninos não tinham dentro da comunidade? Era um processo muito penoso no ato de educar, mas o que nos fortalecia era saber que a gente estava contribuindo de alguma forma e as crianças aprendiam de alguma forma (Maria).43

Segue-se a luta por escola no acampamento em questão. Como narra, assim, Maria:44 Consequentemente, pressionamos o poder público e aí colocou uma professora para o acampamento. Ela vinha da Bahia, era concursada no Estado de Pernambuco, e aí nós fomos saindo do cenário para nova professora, porque o poder público estava assumindo sua função social, mas na prática nós estávamos por perto acompanhando. As aulas aconteciam na casa grande da fazenda, num quarto minúsculo (...) O município colocou apenas uma educadora sendo que nós tínhamos público para muitas turmas. E aí muitas famílias ficavam sem aula e tivemos que, aos poucos, ir garantindo isso. Eu lembro que quando essa professora começou, ela dava aula nos dois horários, mesmo assim era pouco para a necessidade do público que a gente tinha. Nós também

43Entrevista cedida em: 09/10/2014. 44 Idem.

exigimos que se colocasse transporte escolar para levar os estudantes para outras comunidades, outras escolas. O público do acampamento Safra foi redistribuído e, dentro das comunidades, ficaram apenas 220 famílias e a gente foi redistribuindo esse público. E o município, então, começa a perceber a seriedade das lutas, do processo de discussão. A gente fazia muitas mobilizações a fim de que a educação acontecesse dentro da comunidade.

Embora o poder executivo se manifestasse contrário à atuação dos trabalhadores - principalmente porque o governo representava naquele momento os interesses dos principais latifundiários e se articulava com as oligarquias que há dezenas de anos detinham o poder político no município - se viu pressionado por aqueles, o que teve como consequência a concessão de alguns direitos. Entre estes, se destaca o direito à educação, o que permitiu o funcionamento da primeira escola no acampamento para o atendimento dos anos iniciais do ensino fundamental. A demanda, contudo, era maior do que a oferta.

Ao reconhecer o direito das crianças à educação, ainda que discordasse da luta dos trabalhadores, o prefeito da época (José Gualberto – PMDB), acabou legitimando a ação dos trabalhadores. Em cada ocupação que se ia realizando, o MST exigia a construção de uma escola. Naquela época (1995),a demanda se circunscrevia apenas à existência de uma escola formal, sem grandes debates sobre que tipo de educação se pretendia. Como recorda Maria45, “nós precisávamos de escola e de professor. Depois que se discute a qualidade da educação. Nada ainda de que escola queremos, como vamos fazer essa escola”.

3.2 A criação do Coletivo de Educação do MST, a formação e a inserção dos