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A tessitura dos discursos das personagens femininas: o desvendar de jogos de interesse

3. A ESFERA DISCURSIVA EM NUMA E A NINFA

3.2 A tessitura dos discursos das personagens femininas: o desvendar de jogos de interesse

Os textos de Barreto trazem a marca de um escritor a favor dos humilhados e explorados pela sociedade. Nesse âmbito, encontra-se o interesse do autor em retratar a condição da mulher. A situação do casamento, viuvez, oportunidades educacionais e profissionais, a posição social e sexual que lhe é imposta, o julgamento face ao adultério, o mundo da prostituição e o início do movimento feminista no Brasil, são temas ligados à mulher e tratados pelo autor que, segundo Vasconcellos (1999), sempre esteve atento às condições envolvidas por tais assuntos.

No período referente à obra, a situação de submissão da mulher aos desígnios do homem fazia parte da cultura brasileira com predominância da postura masculina. À mulher cabiam os afazeres domésticos e a maternidade. O poder econômico era exercido pelo marido, considerado o soberano da família. A manutenção da ordem e o zelo pelo bem-estar dos familiares era papel feminino. Para Vasconcellos (1999), o Código Civil brasileiro corroborou e ainda corrobora esta posição masculina, declarando no artigo 233: “o marido é o chefe da sociedade conjugal”, e no artigo 246: “é atribuído à mulher o dever da obediência ao marido”. Segundo Karen Sacks, em Engels Revisitado: a Mulher, a Organização da Produção e a Propriedade Privada (1979), “no socialismo alemão, de acordo com a teoria de Engels, ambos os sexos eram membros iguais no grupo, porque contribuíam decisivamente para a vida econômica deste grupo. Para Engels, esse fato acontecia porque a ausência de propriedade privada tornava de igual o valor social o trabalho produtivo dos homens e as atividades domés- ticas da mulher” (SACKS, 1979, p. 187).

O roteiro de vida da mulher brasileira, até a virada do século, sempre foi bem traçado, sendo poucas as que conseguiram fugir do destino direcionado para elas. Desde cedo, o seu objetivo principal era o matrimônio, e a relação de dependência fazia parte do seu modo de conceber a vida. Submissa ao homem, ora subordinava-se ao pai, ora ao marido. Para a mulher era muito importante a sua integração na sociedade, e isso acontecia por intermédio da aquisição do título de Senhora, que fazia com que ela se realizasse biologicamente, como mãe e, socialmente, como esposa. O fato é que a mulher casada, de acordo com Vasconcellos (1999), tinha mais liberdade e podia circular sozinha pelas ruas e inteirar-se de assuntos, antes não acessíveis a ela.

Buscando analisar a relação entre homens e mulheres e posicionar-se sobre os papéis desempenhados socialmente e dentro do casamento, Barreto, em Numa e a Ninfa (1915), expõe personagens marcadas por posições fortes e, ao mesmo tempo, evidencia o cinismo da sociedade, que aprova ou condena determinados comportamentos, dependendo da posição social em que os envolvidos se encontrem.

Retratando as vozes sociais de algumas mulheres ambiciosas, que fazem parte de um ambiente desprovido de valores, o autor chama a atenção para uma postura diferente, menos subserviente da mulher, mas ainda impregnada por regras pertencentes ao discurso conservador e machista. Nesse sentido, as abordagens propostas, neste tópico, não têm a intenção de analisar o discurso feminista, mas discutir a conduta social das personagens barretianas, tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais em muitos aspectos.

Entre as personagens femininas descritas pelo autor, destacam-se Edgarda, protagonista, filha de Neves Cogominho e esposa de Numa, analisada em conjunto com Numa e Benevenuto no quarto capítulo, D. Ana Forfaible, D. Celeste, Arlete, a mulher de Lussigny e a viúva de Lopo Xavier.

A primeira, entre elas, D. Ana Forfaible, tratada na obra como Mme Forfaible, é esposa do General Manuel Forfaible, que presidia a comissão de inventário do material bélico. Seu esposo era um homem velho, sem grande vivacidade e ambições. Sua jovem esposa, ao contrário, era uma mulher ambiciosa e vivia de atividades sociais. A sua relação com o marido sintetiza o tipo de casamento por conveniência e aparência, existente na classe política e que o autor deseja criticar:

Sua jovem mulher empregava o ócio matrimonial fazendo visitas, correndo casas de modas, assistindo sessões cinematográficas. Havia entre ambos uma efusiva simpatia. Não era bem marido e mulher; eram pai e filha. Mais do que a diferença de idade, cerca do dobro entre os dous, determinava esse aspecto de suas relações a diferença de temperamento. O general era bonachão, simplório, lento de espírito, já um tanto desmilitarizado; a mulher, porém, era viva, convencida dos bordados do marido e das prerrogativas, que os dourados lhe davam. (LIMA BARRETO, 1915, p. 53)

Mme Forfaible era uma articulista, estava sempre entre os ministérios intercedendo por um e outro, e reclamando da posição dos militares, diante do governo dos civis. No decorrer da narrativa, ela é chamada de ‘a general’, devido aos seus envolvimentos políticos que tinham como intenção levar o marido ao cargo de governador de Sepotuba.

D. Celeste e Arlete são as mulheres do governador Macieira, sendo elas, respectivamente, a esposa oficial e a amante. D. Celeste é uma senhora reservada e prepotente, que tinha horror ao contato com o povo. Quando recebe a visita de Edgarda, por ocasião da mudança da família, a esposa do governador não esconde o sentimento que nutre pelos pobres:

A política monopoliza tudo. É um coronel que quer isso, é um deputado que quer aquilo... Há as brigas. Demais, a renda é pequena, não dá...

- É saudável?

- Lá isso é; mas não é a cidade que me aborrece. É aquela gente. Que gente! E fechou a fisionomia cheia de desprezo e desgosto.

[...]

- Os deputados e governadores não deviam estar em dependência tão estreita desse povinho – não acha você, Edgarda? (LIMA BARRETO, 1915, p.81)

Vinda da aristocracia rural, Dona Celeste representa a típica mulher submissa, que nascera para ser dona do lar. Vivia um casamento de aparências, aceitando o relacionamento extraconjugal do marido sem questionamento ou rusgas. Diferente dela era Arlete, ‘francesa’, que nas palavras do narrador, “tinha um grande ascendente sobre o ânimo de Macieira e influía decisivamente no curso dos vastos negócios encaminhados nas repartições públicas” (BARRETO, 1915, p. 125). Dona de uma bela casa usada para jogatinas e considerada o refúgio de muitos políticos, ela usava a sua experiência para conseguir informações que ajudassem Macieira e, consequentemente, a si própria. Arlete tinha muitos contatos no meio político e contava com prestígios que abriam portas para grandes negociações:

Arlete ficou na vida do senador como um amuleto de felicidade; e a família a teve do mesmo modo, conformando-se a mulher com a existência da francesa nos hábitos do marido. (LIMA BARRETO, 1915, p. 126)

Segundo Vasconcellos (1999), a personagem é vista pelo narrador como nociva à sociedade, à medida que não nutre nenhum sentimento pelo país, e suas pretensões são apenas de tirar proveito das situações. Assim como ela, é a mulher de Lussigny, que tinha o mesmo poder sobre o general Bentes:

- Diga-me uma cousa, Lucrécio: isso que se diz aí da mulher de Lussigny é verdade?

- Que é, minha senhora? - Ah! É uma de Paris?

- É essa mesma.

- Dizem que sim, Dona Anita. Dizem que ela é quem faz tudo, que o general

só faz o que ela quer. (LIMA BARRETO, 1915, p. 211)

Elas são o protótipo da mulher bem sucedida, que apesar da condição de cortesãs, não sofrem preconceitos por parte de membros de uma sociedade hipócrita, que as vê como suportes para as suas ambições. Tão ambiciosa como as demais é a viúva do Lopo Xavier, que tenta a todo custo receber os benefícios após a morte do marido. Para isso, ela não mede esforços, vive em uma jornada desesperada buscando apoio em qualquer um dos políticos e de suas amantes, a fim de alcançar o seu objetivo, apesar de não ter necessidade financeira de tal benefício:

- Quem era essa senhora? - É a viúva do Lopo Xavier. - Que queria ela?

- O meu voto para que lhe fosse concebida uma pensão que requereu. - Prometeste?

- Prometi. [...]

- Pois saibas tu de uma coisa: ela é rica, não muito, mas tem com o que viver.

- Quem te disse?

- Todos sabem. O pai deixou-lhe dinheiro e o marido alguma cousa. O que ela quer é luxar... Não precisa... O que tem dá de sobra. (LIMA BARRETO,

1915, p. 51)

As personagens femininas mais expressivas de Numa e a Ninfa (1915) perten- cem ao contexto político, sejam elas esposas, amantes ou viúvas dos representantes do povo. Elas são os tipos de mulheres completamente desvinculadas do estereótipo romântico e, conforme as palavras de Simone de Beauvoir em, O segundo sexo (1980), empregam os esposos e amantes como meios para atingir objetivos políticos, econômi- cos e sociais. Barreto denuncia a ambição dessas mulheres que, assim como os seus companheiros, querem ascensão e reconhecimento social através de formas fáceis e desonestas. Nesse contexto, elas não correspondem, exatamente, ao modelo da mulher vítima, dominada pela situação, mas são frutos da corrupção humana, que atinge, indistintamente, homens e mulheres.