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Testemunho

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O narrador conforme entende Benjamin e, como já dito anteriormente, partilha de uma mesma coletividade. Nesse sentido, o narrador é protagonista e testemunha de um tempo de conflito, de uma experiência; é uma testemunha distanciada com um olhar posterior; é um espectador que testemunha.

Segundo Seligmann-Silva (2003, p. 63) “(...), o testemunho surge nos últimos anos com uma força e conquistou uma presença que nos obriga a rever todas as noções herdadas de séculos de teórica poética e dos gêneros”.

O testemunho em diversas situações configura a salvação, como diz Seligmann-Silva (2008, p. 66) “ele se apresenta como condição de sobrevivência”. Para os que voltam de uma situação de holocausto, de conflito, de violência e ou de guerra, o testemunho tem o objetivo de garantir que os sobreviventes dessas situações possam contar e narrar suas experiências.

Porém, é certo que as pessoas que passaram por uma situação de trauma, têm dificuldades de fazer um testemunho que traga na íntegra os fatos. A violência sofrida impede o sobrevivente de testemunhar e sem testemunho, não há testemunha. Essa dificuldade de testemunhar está ligada à dificuldade de narrar os fatos vividos, pois lembrar provoca dor. Devido a isso, o testemunho nunca é completo, nem totalizador. “O testemunho parece ser composto de pequenas partes de memória que foram oprimidas pelas ocorrências que não tinham se assentado como compreensão ou lembrança, (...).” (FELMAN, 2000, p. 18).

Segundo Seligmann-Silva (2008, p. 67) “Dori Laub (1995), em um ensaio importante sobre o tema do testemunho da Shoah, dedicou especial atenção para a questão da ‘impossibilidade de narração’ e formulou sua ideia de que o holocausto foi ‘um evento sem testemunha’”. Como Benjamin (1994) afirmou quando disse que os combatentes retornavam silenciosos da guerra, pois os traumas sofridos nos campos de batalha não permitiam a formulação da narração. E ainda para Laub de acordo com Seligmann-Silva (2008, p. 68) que concorda com sua tese, afirma que “a tarefa que coube aos sobreviventes foi a de construir a

posteriori este testemunho”.

De acordo com Seligmann-Silva (2008, p. 68)

Primo Levi também destacou em diversas oportunidades esta impossibilidade do testemunho. Ele afirmava que aqueles que testemunharam foram apenas os que justamente conseguiram se manter a uma certa distância do evento, não foram totalmente levados por ele como o que ocorreu antes de mais nada com a maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas também com aqueles que eram denominados

Musulmanner dentro do jargão do campo, ou seja, aqueles que haviam sido totalmente destruídos em sua capacidade de resistir.

Porém, é fato que existe uma barreira entre os sobreviventes e as pessoas que não passaram pela mesma experiência. Essa barreira provoca o silenciamento nesses sobreviventes, uma dificuldade de narrar ou até mesmo de se lembrarem dos fatos. A narrativa nesse contexto tem o poder de quebrar esse silêncio, de dar voz e resgatar os sobreviventes desse estado de dormência.

O grupo que sobreviveu ao pós-aldeamento e os remanescentes desse grupo, os Tapuio, tiveram essa responsabilidade, pós-silêncio, de narrar suas experiências, dar o seu testemunho, contar as atrocidades praticadas contra eles ao longo de décadas e, dessa forma, (re)construir sua identidade e sua história.

Seligmann-Silva (2008, p. 68 Ibidem LEVI, 1990, p. 105) no texto do livro “É isto um homem”, de 1947, na passagem: “Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido”, entende que:

há dois momentos exemplares do testemunho: em primeiro lugar ele se dá sempre no presente. Na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente (Mais um paralelo, aliás, com a cena psicanalítica e sabemos que Freud buscou várias metáforas ao longo de sua vida, como a câmara fotográfica, um campo geológico e o boco mágico, para exprimir este elemento paradoxal da temporalidade psíquica concentrada em um mesmo topos.). Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa.

Ou seja, para Seligmann-Silva, nesse fato, o trauma mostra-se como fato psicanalítico prototípico em sua estrutura temporal. Essa irrealidade se dá devido à percepção da memória do trauma.

Para Seligmann-Silva

A linearidade da narrativa, suas repetições, a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta nova dimensão aos fatos antes enterrados. Conquistar esta nova dimensão equivale a conseguir sair da posição do sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida.

A simbolização, porém, nunca é integral, ela sempre está revestida da cena traumática, que permanece no interior do sobrevivente. Segundo Seligmann-Silva (2008, p. 69), “para o sobrevivente sempre restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado como que ‘do outro lado’ do campo simbólico”.

Até chegar ao nível de poder narrar, o sobrevivente sofrerá com a crise do testemunho. Nesse sentido, é apresentada a imaginação. De acordo com Seligmann-Silva (2008), a crise tem diversas origens como a incapacidade de se testemunhar, a própria capacidade de se imaginar o Lager, o elemento inverossímil daquela realidade ao lado da imperativa e vital necessidade de testemunhar como meio de sobrevivência.

Nesse sentido, “a imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para a sua narração” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 70).

Para Seligmann-Silva (2008) todo testemunho é único e não pode ser substituído por outro. Assim como toda catástrofe é única aos olhos das vítimas. Como diz Felman (2000, p. 15)

uma vez que o testemunho não pode ser simplesmente substituído, repetido ou relatado por outro sem perder desta forma, sua função como testemunho, o fardo da testemunha – apesar de seu alinhamento a outras testemunhas – é radicalmente único, não intercambiável e um fardo solitário.

Sem o outro é praticamente impossível para quem narra sua história suportar o peso do trauma que ele traz. Dessa forma é necessário que a testemunha suporte a solidão da

responsabilidade e vice-versa. (FELMAN, 2000). Como diz Roure (2011, p. 8) a função de testemunha de acordo com Gagnebin (2001) é

ocupar a posição de testemunha não significa ter vivido ou visto com seus próprios olhos situações de crise, testemunha seria aquele que não vai embora e que consegue ouvir a narração insuportável da história do outro – de um sofrimento indizível do passado - fazendo disso uma experiência (Erfahrung) (...).

Para os Tapuio, até o ponto de poderem testemunhar, contar sua história foram muitas décadas de silêncio e solidão. E pelo que foi constatado na sua história, apresentada no segundo capítulo, boa parte do grupo resistiu a esse período, suportaram a solidão e puderam no momento oportuno sair desse estado de dormência e narrar, dar o seu testemunho. Nesse sentido, Rita Heloisa de Almeida Lazarin teve papel importante também como testemunha, pois conseguiu ouvir os Tapuios e dar voz a eles, registrando sua história e os auxiliando na (re)construção de sua identidade étnica. Ela suportou o peso da história dos Tapuio.

Mas os Tapuio, apesar disso, ou seja, mesmo depois de terem conseguido o (re)conhecimento étnico, a posse definitiva de suas terras, continuam sofrendo, não os maus tratos dos colonizadores e ou dos invasores de suas terras, mas com o preconceito e com a discriminação da população do entorno de suas terras e das cidades próximas e ou mesmo de funcionários das instituições que atuam junto ao grupo. Isso foi constatado nos relatos orais concedidos a pesquisadores que realizaram pesquisas com eles, utilizados neste trabalho, conforme apresentados no segundo e terceiro capítulo deste trabalho.

SEGUNDO CAPÍTULO

RETROSPECTIVA HISTÓRICA DO POVO TAPUIO

“Ser inimigo da diferença ainda implica querer aniquilar ‘o outro’”.

Marcio Seligmann-Silva.

2. A OCUPAÇÃO DA REGIÃO CENTRAL DO BRASIL, A CRIAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE GOIÁS, OS ALDEAMENTOS E OS TAPUIO

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