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6.2 Análise dos desfechos

6.2.2 Testes de permeabilidade intestinal

Análise das medidas de permeabilidade, especialmente da excreção da lactulose e relação lactulose/manitol, mostram, assim como outros estudos, que essas medidas encontravam-se alteradas antes do condicionamento na maior parte dos pacientes. Como a maior parte dos valores de manitol era normal à admissão, se as propriedades dos marcadores utilizados forem consideradas, é possível que a integridade funcional, avaliada pela lactulose, se encontrasse alterada antes do condicionamento. Parte desse efeito poderia ser atribuído à quimioterapia prévia, mas alguns autores sugerem a existência de efeito relacionado à própria leucemia196,197. Conforme tabela 12, não foi demonstrada relação entre quimioterapia recente e alteração de permeabilidade intestinal. Tais alterações foram observadas em pacientes não submetidos a QT recente, assim como não foram observadas sistematicamente naqueles submetidos ao tratamento. Dessa forma, em relação às alterações de permeabilidade em pacientes leucêmicos antecedendo à quimioterapia, é possível relacioná-las a como decorrentes da ação da leucemia sobre a barreira mucosa intestinal. O mecanismo desse efeito pode estar associado a

uma disfunção das células imunes, infiltração leucêmica do intestino ou à produção de citocinas inflamatórias196,197. Ademais, o efeito da quimioterapia sobre a mucosa poderia afetar a estrutura anatômica, com lesão vilositária, que seria traduzida por redução da excreção do manitol e não, predominantemente, da lactulose.

A permeação das moléculas maiores, como a lactulose, parece ocorrer através de vias paracelulares, relacionando-se ao estado funcional das junções firmes, não envolvendo, necessariamente, ruptura da mucosa caracterizada por lesão da mesma e observável morfologicamente. As junções firmes são capazes de responder a diferentes estímulos, tais como endotoxinas, citocinas e alterações do estado oxidativo, por meio de seu relaxamento e abertura, permitindo o aumento da passagem de substâncias através delas190.

O papel deste intestino “permeável” como efeito da própria leucemia, na patogênese da DECH deve ser avaliado, considerando-se sua possível contribuição para a permeação de endotoxinas mesmo antes do condicionamento.

No estudo houve maior incidência de DECH grave em pacientes com alterações de permeabilidade intestinal à admissão (D-6), observação ainda não encontrada na literatura e, se confirmada, pode contribuir para associar alterações da barreira intestinal induzidas pela leucemia e o desenvolvimento da DECH.

Por outro lado, possível explicação para a relação entre piores medidas de permeabilidade em D+14 e morte em D+100 não é dedutível a partir da análise dos dados. Duas hipóteses poderiam ser aventadas. A primeira decorre do fato de que os pacientes mais graves, de maior risco, com acentuados

efeitos colaterais do condicionamente e portadores de infecções, seriam aqueles que apresentam as alterações mais importantes de permeabilidade, inclusive levando-se em conta o papel das citocinas no aumento da permeabilidade intestinal190. A segunda seria de que os pacientes com maiores alterações de permeabilidade e, conseqüentemente, maior lesão da barreira mucosa secundárias ao condicionamento, seriam os principais candidatos às formas graves de DECH e, portanto ao óbito. Tal possibilidade tem menor suporte em face da ausência de significância estatística na correlação entre óbitos no D+100 e permeabilidade também em D+6, mais próximo à quimioterapia, bem como entre alterações de permeabilidade nas medidas em D+6 e D+14 e DECH. Vale assinalar que o grupo de pacientes que faleceu em D+100 e apresentava maiores valores de permeabilidade em D+14 apresentaram também aumento significativo das diferenças das médias das permeabilidades entre D+6 e D+14 (diferença = 0,085 + 0,082, p = 0,022), ao passo que no grupo dos sobreviventes em D+100, houve redução da permeabilidade, ainda que não significativa, entre D+6 e D+14 (diferença = - 0,028 + 0,122, p = 0,287). Essa piora poderia refletir maior gravidade clínica neste grupo de pacientes, o que pode se associar a alterações da permeabilidade intestinal.

As medidas de permeabilidade intestinal se agravaram de forma significativa ao longo do estudo e permaneceram elevadas em D+14 (tabela 11, figuras 2, 3 e 4). Esse tipo de comportamento já foi demonstrado anteriormente e nos mostra que alterações importantes da barreira da mucosa intestinal permanecem, mesmo quando ocorreu melhora significativa dos sintomas da mucosite 197. A deterioração das medidas de permeabilidade

ocorreu, principalmente, em função da redução sistemática da excreção do manitol ao longo do estudo, sugerindo lesão estrutural da barreira mucosa. Tal fato não é surpreendente, em especial pelo uso do metotrexate na profilaxia da DECH que, ministrado próximo à infusão das células hematopoiéticas, acrescenta danos importantes ao trato digestivo. Os níveis de lactulose, que já se encontravam elevados antes do condicionamento, embora apresentem aumento significativo entre a admissão e D+14 (p = 0,044), não demonstram diferenças tão expressivas como as alterações do manitol (p < 0,001).

Contrariamente à nossa hipótese inicial, a glutamina não exerceu efeito sobre a integridade do trato digestivo avaliada pelos testes de permeabilidade, fato também já assinalado por outros autores174. Papel específico da glutamina sobre o epitélio do trato digestivo, conforme já assinalado, ainda é objeto de discussão. Se tal efeito de fato existe, explicação possível para sua ausência nesse estudo é que o dano à mucosa é tão intenso nas primeiras semanas após o condicionamento, conforme sugerido pelas importantes alterações das medidas de permeabilidade, que não seria possível demonstrar sua atenuação por essas mesmas medidas.

Os valores de permeabilidade obtidos mostram diferenças em relação aos observados na literatura, em especial os valores da fração de excreção da lactulose e, como conseqüência, da relação lactulose/manitol206. Os valores da fração de excreção do manitol, por outro lado, são semelhantes aos encontrados na literatura. A dificuldade de obtenção de validade externa tem sido assinalada como problema dos estudos de permeabilidade. Sabe-se que as condições de teste influenciam de forma significativa a permeação das moléculas solúveis em água e variações entre laboratórios são observadas

freqüentemente182. Ademais, diferenças geográficas nas medidas de permeabilidade têm sido descritas, com países em regiões tropicais mostrando valores de permeabilidade superiores aos observados em países temperados206. De qualquer maneira, mesmo que as diferenças das medidas de permeabilidade devam ser assinaladas, seu comportamento foi semelhante ao observado por outros autores, a saber, alterações antecedendo o condicionamento, piora progressiva ao longo do tempo, manutenção, mesmo em fases tardias do transplante, de alterações importantes e ausência efeito da glutamina sobre estas medidas.