• Nenhum resultado encontrado

A nova materialidade do texto no suporte eletrônico propiciou, na visão de Chartier (1999), duas questões fundamentais que se sobrepõem a qualquer posição contrária ou a favor desse novo suporte: o texto eletrônico continua a tarefa de preservação e conservação de toda a produção do conhecimento; ao mesmo tempo, não anula as condições anteriores de materialidade do escrito.

No suporte eletrônico, os textos se conectam por meio de links, elementos de associação entre as informações disponibilizadas na tela e, por meio deles, o leitor busca dar coerência ao que acessa. São novos meios de organização de informação com que nos deparamos. No dizer de Johnson (2001:88), os links constituem-se como trilhas, um meio de organizar informações que não segue os ditames estritos, inflexíveis, do sistema decimal de Dewey ou outras convenções hierárquicas. O acentrismo desse novo modo de disponibilizar desestabiliza, portanto, qualquer forma de organização hierárquica. A rede propicia uma nova forma de organização da informação, rompendo aquela tradicional, denominada por Bougnoux (1999:198) como forma enciclopédica.

A mudança com relação à materialidade do texto talvez seja a principal fonte de resistência por parte de muitos, que vêem a atual revolução como um momento de destruição dos livros. Mas, ao contrário, como aponta Ong (1998:154), ao invés de abolir livros, os dispositivos eletrônicos abrem caminho para um novo tipo de impressão. De fato, conforme reforça Eco (1996), os computadores encorajam a produção do material impresso, e o que muda são os modos de produção e distribuição daquilo que se produz.

De forma inédita, hoje, no mesmo suporte, há diferentes linguagens que confluem: sonoras, verbais e imagéticas. Chartier (1999:135) assinala que, no presente contexto, pode-se encontrar uma tradução que caracterizou os grandes projetos enciclopédicos: a disponibilidade universal das palavras enunciadas e das coisas representadas.

Para se conhecer, do ponto de vista histórico, o que vem a ser o texto eletrônico, ou hipertexto, é lícito retomar Vannevar Bush (1945) e seu famoso artigo “As We May Think”, publicado em 1945. Nesse trabalho, Bush apresentou a ideia da mente enquanto rede de associações e propôs um dispositivo de indexação

Capítulo 1 – Da Cultura Oral à Eletrônica 24

para a organização de informações, denominado por ele como Memex. Esse artigo tornou-se fundamental para a concepção de hipertexto.

Bush (1945) já antevia a explosão de informações a que todos seriam submetidos e considerava, já naquela época, que era excessivo o número de artigos e publicações que seus alunos deveriam ler, pois julgava a quantidade de informações superior à capacidade humana de seleção e armazenamento. Assim, tomando por base a forma humana de pensar por associações, ele propôs Memex como suporte à memória humana. Segundo Landow (1997:33), esse dispositivo permitiria ao leitor acrescentar notas às margens e comentários, além de possibilitar um rearranjo das informações em forma de esquema.

Em seu artigo, Bush, de acordo com Laufer e Scavetta (s/d), apresentava Memex como tendo dois componentes: a memória, em que se armazenaria a informação, e um mecanismo para acessá-la. Em suas concepções, de fato, Bush já antecipava a ideia de o leitor ser também um co-autor do texto. Porém, para Landow, Laufer e Scavetta, a essencialidade nas formulações de Bush consiste justamente no fato de que ele propunha uma indexação de informação de forma associativa, já introduzindo a ideia de link. Assim, ele propôs textos ligados por links e introduziu, no dizer de Landow (p.10), além dos próprios links, outros termos, como trilhas e rede, para descrever o seu conceito de textualidade. Para Joyce (2001:213), Memex representou o primeiro combate contra a memória humana.

Havia já em Memex, portanto, a questão da virtualidade, da flexibilidade, de um texto reconstruído pelo leitor, que estivesse de acordo com suas necessidades e exigências. Ele via a importância de, durante o processo de leitura, o indivíduo ser capaz de interagir com o texto de forma eficaz, a fim de poder reconstruir em sua memória a informação lida. Nesse sentido, estava implícita, nas concepções de Bush, a ideia de um leitor ativo, ao mesmo tempo em que já prenunciava a necessidade de se ter um texto em suporte virtual.

Bush (1945) não foi o primeiro a conceber um sistema organizacional de informação, visto que, Paul Otlet (1934), preocupado com o fato de que a informação disponibilizada não se apresentava organizada para o usuário, junto a seus colaboradores, como La Fontaine, entre outros, propôs a Classificação Decimal Universal (CDU). Muitos vislumbram a CDU como embrião de uma escrita

universal, que apresentaria, de fato, uma visão hipertextual de organização de informação.

Porém, esse jurista belga é sempre citado apenas como um dos criadores da CDU. Até o presente momento, pouco se resgatam, na bibliografia a respeito desse teórico, algumas das ideias embrionárias que hoje se virtualizam em realidade na World Wide Web (WWW). De fato, somente em trabalhos restritos à área de Ciência da Informação é que se podem encontrar estudos que evidenciam a grande contribuição de Otlet quanto a esse novo sistema organizacional de informação.

Rayward (1994) aponta que foi com trabalho documentário realizado dentro do International Institute of Bibliography, por volta de 1908, que Otlet e seus colegas desenvolveram algo que mais se aproximasse do hipertexto. Segundo o autor, buscou-se desenvolver um repertório bibliográfico, o mais completo possível, em cada área específica. Cada um desses repertórios continha livros, além de fotografias, desenhos, figuras que já prenunciavam o aspecto hipermediático característico do hipertexto.

Além disso, continua Rayward (1994), todo esse material era organizado em módulos que, no dizer do autor, seriam nós registrados de acordo com as exigências do princípio monográfico. Ele denominava Princípio Monográfico5 o modo de identificar e registrar blocos de informação armazenados em fichas separadas.

Assim, haveria entre esses registros, links implícitos, e a consulta a esse material seria mais flexível, auxiliada por mecanismos de navegação que a própria Classificação Decimal Universal forneceria. Até 1912, cerca de seis mil itens documentários tinham sido registrados no formato de um pequeno cartão, ainda que muito desse material estivesse ligado à área da legislação, enquanto que mais de trinta mil itens foram registrados em formatos maiores, como uma folha de papel.

A grande contribuição do trabalho de Otlet e colegas foi reestruturar de forma acessível todo o sistema de processamento e disseminação da informação. Assim como muitos apontam, na revolução tecnológica atual, que o

5 A palavra monografia era etimologicamente recuperada por ele a partir do grego monós (um) e

Capítulo 1 – Da Cultura Oral à Eletrônica 26

novo sistema provoca uma integração, uma outra lógica comunicacional, um novo modo de organização de conhecimentos, cuja metáfora é a rede que se virtualiza sob a forma de hipertextos, da mesma forma, em seu tempo, Otlet e colegas suscitaram uma maneira nova de organizar e reorganizar o conhecimento.

Na sua obra fundamental ‘Traité’ of Documentation, também, Otlet já prenuncia a visão de que não só o livro é portador de informação, pois, conforme assinala Rayward, ele já especulava a possibilidade de algo multimidiático que, no seu entender, seria um conjunto de máquinas “intelectuais” que tornariam os documentos mais fáceis de serem acessados. De fato, o caráter hipermediático do hipertexto já estaria sendo vislumbrado na visão de Otlet.

Essas máquinas intelectuais poderiam, na visão de Otlet, ser utilizadas para que se tornasse possível ao usuário localizar textos em diferentes locais. Haveria, desse modo, máquinas que fariam uma “leitura” do conteúdo informacional colocado à disposição do usuário. Outra função seria a de permitir que o leitor acrescentasse comentários ao que lhe estaria sendo disponibilizado.

No entanto, Rayward (1994) assinala que Otlet restringia o papel do leitor ao de simples comentarista dos textos lidos, enquanto que o hipertexto permite ao seu leitor recriar o que lhe é apresentado. Ainda assim, para muitos, Otlet é considerado um visionário e Rayward reforça o fato de que, sem dúvida, esse teórico prenunciou alguns dos recentes desenvolvimentos tecnológicos que hoje utilizamos.

Outro momento na história da configuração do hipertexto enquanto tal está ligada a Douglas Engelbart (1962) que, junto a outros pesquisadores na Universidade de Stanford, foi capaz de, segundo Joyce (2001:22), transformar em realidade o que Bush (1945) concebeu idealmente em seu artigo. Ele criou um sistema dentro do computador que levava em conta os recursos sensoriais-motores e cognitivos do indivíduo e a necessidade de comunicação de grupos. (Laufer e Scavetta, p.49)

A partir de um artigo publicado em 1963, intitulado “A Conceptual Framework for the Augment of Man Intellect”, Engelbart acabou por criar um protótipo de hipertexto chamado Augment, propondo o que cunhou de NLS (oNLineSystem), que seria uma espécie de revista científica, um sistema de

pesquisa que possibilitaria não só a leitura mas também, afirmam Laufer e Scavetta (idem), acrescentar referências cruzadas entre os elementos. Ainda que não fosse um hipertexto como hoje o concebemos, continha em si a ideia de associação e links, e acabou por suscitar outros recursos comunicacionais que temos hoje, como o correio eletrônico e as teleconferências.

O termo hipertexto foi cunhado, pela primeira vez, na década de 60 por Theodore Nelson (1981) para designar um texto eletrônico que disponibiliza a informação de um modo totalmente novo. Em Literary Machines (apud Landow, 1997: 3), o autor explica que:

Por hipertexto, eu me refiro a uma escrita não sequencial que se ramifica e permite escolhas ao leitor, melhor leitura em uma tela interativa. Como popularmente é concebido, ele é uma série de blocos de textos, conectados por links os quais oferecem ao leitor diferentes caminhos.

Nelson trabalhava com computadores de grande porte e constatava a capacidade que eles possuíam de inter-relacionar diferentes tópicos textuais. Bolter (2001:35) ressalta o fato de que tanto Bush (1945) quanto Nelson conseguiram, muito antes de o hipertexto se tornar realidade, identificar as características essenciais presentes nos textos eletrônicos.

Documentos relacionados