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Texto, tecido, textura: Uma leitura qualificada

CAPÍTULO 3- A DESCONSTRUÇÃO SEGUNDO DERRIDA

3.5 A Pharmácia de Platão

3.5.1 Texto, tecido, textura: Uma leitura qualificada

Sob uma análise etimológica, Derrida articula, em todo o diálogo Fedro, o significante texto com outros significantes, quais sejam, têxtil, tecido, textura. De modo que “texto, desde a sua etimologia, é um tecido, uma composição heterogênea feita de muitos fios, os quais uma vez entrelaçados implicam múltiplas camadas de leitura.” (NASCIMENTO, 2004, p. 15). Texto/tecido: esta é, portanto, a metáfora que nos guiará neste trabalho desconstrucionista de Platão.

Se um tecido ou um pano ganha consistência segundo a costura que o tece, no caso do texto, acontece o mesmo. Nos textos metafísicos, tais como os textos platônicos, a grande inquietação consiste na crença de tais textos constituírem-se como um tecido inviolável, cuja proposta fundamental seria “dominar o jogo” para assim “vigiar de uma só vez todos os fios.” (DERRIDA, 1972 b, p. 7). Isto implica, portanto, que, segundo a crença metafísica, o texto seria intocável, ou seja, permaneceria intacto diante do leitor, que teria como único dever, captar seu verdadeiro sentido, sentido este dado a partir da intencionalidade-viva do autor. Sob este ideal metafísico, a leitura de um texto torna-se, de um modo geral, uma atividade contemplativa, uma leitura que se consagrou no ocidente, na história da filosofia, cujo princípio está baseado na crença em alcançar o sentido primeiro do texto, sua verdade. Ler regido sob este princípio significaria, portanto, acreditar que, de uma forma ou de outra, seria possível acessar o autor em vida para então certificar se o texto confere ou não com o que ele conscientemente desejou escrever. Tal procedimento consiste naquilo que se denominou leitura exegética do texto: uma leitura imanentista, preocupada, em última análise, em contestar o autor face a face, posicionando-se contra ou a favor de suas declarações.

Esta não é, de maneira alguma, a proposta de uma leitura desconstrucionista. Não é assim que Derrida pretende ler Platão e, por conseguinte, a metafísica. Isso significa dizer que não está em causa na desconstrução promover uma leitura como comentário textual, ou ainda, como comentário neutro, a partir de um texto prévio. A leitura desconstrucionista não consiste em uma leitura exegética de textos.

Não é intenção de Derrida acessar o filósofo Platão a fim de avaliar seu sistema filosófico enquanto discurso efetivamente verdadeiro ou falso. Ao contrário, Derrida pretende mostrar que este tipo de leitura consiste em uma leitura demasiado fraca, já que ler, para o pensador, significa também, escrever, ou reescrever o texto. Quando Derrida, em sua célebre frase afirma que “é preciso ler a metafísica de outra forma”, isto significa que não é mais possível ler sem “acrescentar algum novo fio” ou seja , ler significa ao mesmo tempo, ler e escrever. Como ele afirma, “acrescentar, não é aqui senão dar a ler.” (DERRIDA, 1972 b, p. 7).

Deste modo, deve- se desfiar os fios que tecem o sistema a fim de “descosê-lo” e, desta maneira, desfazer seus “pontos de estofos”, e, a partir daí, enunciar as contradições do sistema metafísico, seus limites, ingenuidades e, sobretudo, a violência posta nas entrelinhas deste discurso.

Pretender “olhar o texto sem nele tocar, sem pôr as mãos no objeto, sem arriscar a lhe acrescentar algum novo fio” seria ilusório (DERRIDA, 1972 b, p. 7). Portanto, “a única maneira de entrar no jogo é tomando-o entre as mãos” (DERRIDA, 1972 b, p. 7).

Derrida sugere, portanto, outro procedimento de leitura de um texto, uma leitura ativa, em que “seria preciso, num só gesto, mas desdobrado, ler e escrever. ” (DERRIDA, 1972 b, p. 7). Contudo, uma leitura deste tipo, não deve cair num gesto leviano, gesto este cujo leitor sinta-se autorizado a acrescentar ao texto seja lá o que for, desrespeitando certa construção, ou estrutura textual, ou em um termo, o jogo que rege o texto. Se por um lado, Derrida rejeita a idéia de ser considerado um leitor exegético, ou seja, se para o pensador é pouco substancial ler o texto sem ousar tocar em seus fios, por outro, ele rejeita veementemente a atitude ingênua e leviana de tratar o texto sem estabelecer minimamente uma relação respeitosa com sua escrita. Portanto, não é porque o texto traz a possibilidade de releitura e, conseqüentemente, reescrita, que se pode acrescentar o que bem entender, sem qualquer compromisso.

Uma leitura que se pretende reescritura está comprometida, desde o inicio, com uma comunidade de leitores. A confecção de um novo tecido, um novo texto, requer pleno cuidado com o tecido que se pretende descoser, requer muita atenção para com o jogo do texto que se pretende desconstruir. Portanto, “aquele que não tivesse compreendido nada do jogo sentir-se-ia, de repente, autorizado a lhe acrescentar, ou seja, acrescentar não importa o quê, ele não acrescentaria nada.” (DERRIDA, 1972 b, p. 8). Em contrapartida, “aquele que a „prudência metodológica‟, as „normas de objetividade‟ e os „baluartes do saber‟ impedissem de pôr aí algo de si, também não o leria” (DERRIDA, 1972 b, p. 8). Isto equivale ao mesmo jogo metafísico do “sério” e “não sério”.

Em resumo, para não cair na armadilha dos pólos, o pensador procede a partir de um duplo movimento, em que, por um lado deve-se

[...] respeitar o mais rigorosamente possível o jogo interior e regrado desses filosofemas ou epistememas, ao fazê-los deslizar, sem os maltratar, até o ponto de sua não-pertinência, de seu esgotamento, de sua clausura. (DERRIDA, 1972 a, p. 12).

E, por outro lado, deve-se “inscrever violentamente no texto aquilo que buscava comandá-lo de fora.” (DERRIDA, 1972 a, p. 12). Isto significa que, a fim de cumprir uma costura consistente, ou seja, para ler reescrevendo, é importante que se sirva de “duas mãos”: enquanto com uma mão, comprometemo-nos com uma leitura respeitando as regras do jogo, sua sintaxe etc., com a outra ao mesmo tempo, mostramo-nos ousados em reeditar a originalidade do texto, de forma que o leitor mantenha-se, de certa forma, sempre no limite deste tecido.

Portanto, o intento de Derrida consiste, sob esta perspectiva, em desfiar os fios que compõe o tecido metafísico - no caso o diálogo de Platão - ao mesmo tempo em que tece sua própria costura, enxertando e suplementando o texto, sempre de maneira respeitosa.