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2.2 Atividades de leitura elaboradas à luz da ANL

2.2.2 Roteiro para trabalhar com a leitura de textos

2.2.2.1 Texto 1: Uma história de Dom Quixote, de Moacyr Scliar

Uma história de Dom Quixote Moacyr Scliar Quando se fala num quixote, as pessoas logo pensam num desastrado, num sujeito que não consegue fazer nada direito; que tem boas ideias, mas sempre quebra a cara. E até repetem aquela história que o escritor espanhol Cervantes contou sobre o Dom Quixote.

Ele era um daqueles cavaleiros andantes que usavam armadura, lança e escudo; percorria as planícies da Espanha num cavalo muito magro e muito feio, chamado Rocinante, procurando inimigos a quem pudesse desafiar em nome da moça que amava, e que ele chamava de Dulcineia. Pois um dia este Dom Quixote avistou ao longe uns moinhos de vento. Naquela época, vocês sabem, o trigo era moído desta maneira: havia um enorme cata-vento que fazia girar a máquina de moer. Pois o Dom Quixote viu, nesses moinhos, gigantes que agitavam braços, desafiando-o para a luta.

Sancho Pança, seu ajudante, tentou convencê-lo de que não havia gigante nenhum; mas foi inútil.

Dom Quixote estava certo de que aquele era o grande combate de sua vida. Empunhando a lança, partiu a galope contra os gigantes...

O resultado, diz Cervantes, foi desastroso. A lança do cavaleiro ficou presa nas asas do moinho, ele foi levantado no ar e depois jogado para longe. Para Sancho, e para todas as pessoas que ali viviam, uma clara prova de que o homem era mesmo maluco.

Essa era a história que Cervantes contava. Já meu tatara-tatara-tataravô, que também conheceu Dom Quixote, narrava o episódio de uma maneira inteiramente diferente. Ele dizia que, de fato, Dom Quixote viu os moinhos e que ficou fascinado com eles, mas não por confundi-los com gigantes. “Se eu conseguir enfiar minha lança naquelas asas que giram”,

pensou, “e se puder aguentar firme, terei descoberto uma coisa sensacional”.

E foi o que ele tentou. Não deu completamente certo, porque nada do que a gente faz dá completamente certo; mas, no momento em que a asa do moinho levantava o Dom Quixote, ele viveu seu momento de glória. Estava subindo, como os astronautas hoje sobem; estava avistando uma paisagem maravilhosa, os campos cultivados, as casas, talvez o mar, lá longe, talvez as terras de além-mar, com as quais todo o mundo sonhava. Mais que isso, ele tinha descoberto uma maneira sensacional de se divertir.

É verdade que levou um tombo, um tombo feio. Mas isso, naquele momento, não tinha importância. Não para Dom Quixote, o inventor da roda-gigante (PRIETO, 2001).

Uma leitura atenta do texto, considerando a Teoria de Argumentação na Língua, levará o leitor à construção de sentidos diferentes para Dom Quixote a partir dos encadeamentos da narrativa do texto Uma história de Dom Quixote que abre a unidade estudada no livro didático.

Assim, construímos os seguintes encadeamentos: Dom Quixote DC desastrado

Dom Quixote DC cavaleiro andante Dom Quixote DC maluco

Dom Quixote DC inventor da roda-gigante

Esperamos que esse conhecimento teórico possibilite ao professor um olhar diferenciado e mais apurado no seu planejamento quanto às atividades de leitura. Ao trabalhar nessa perspectiva, as questões propostas explicitam as relações linguísticas do texto. A seguir apresentamos algumas sugestões de leitura que poderiam ser propostas a alunos do 6º ano da Educação Básica.

Em relação ao primeiro encadeamento, baseado na argumentação interna de quixote, poderíamos solicitar a análise do primeiro período do texto:

1) Como definir “um quixote” a partir da colocação abaixo?

“Quando se fala num quixote, as pessoas logo pensam num desastrado, num sujeito que não consegue fazer nada direito; que tem boas ideias, mas sempre quebra a cara.”

2) Observe os segmentos destacados no período e responda:

Qual a possível relação de sentido entre eles? Procure demonstrá-la a partir de um esquema.

3) Em um segundo momento, Quixote é apresentado como aquele “que tem boas ideias, mas sempre quebra a cara”. “Ter boas ideias” nos leva a pensar em “quebrar a cara”? Como foi

possível estabelecer essa relação pelo uso da língua?

Todas as atividades encaminham para a presença de orientação argumentativa na língua. Quixote traz como possibilidade de argumentação interna “desastrado”, por isso a colocação as pessoas logo pensam num desastrado presente no discurso. Já a questão (2)

remete à formação dos seguintes encadeamentos: “desastrado (DC) não faz nada direito; não

faz direito (PT) tem boas ideias, tem boas ideias (PT) quebra a cara”. Por fim, na questão (3) a

conjunção “mas” revela o sentido dos dois encadeamentos; articula a expressão “boas ideias” com “quebrar a cara” com a presença de (PT). Isso é necessário no momento em que há uma

quebra de expectativa, pois se espera que aquele que tem boas ideias não quebre a cara.

Os demais encadeamentos sobre os possíveis sentidos para “quixote” poderiam sugerir

4) Podemos dizer que o “cavaleiro andante” é apresentado no texto sob dois aspectos. Qual a

alternativa que explicita esses sentidos? ( ) usar armadura- maluco

( ) usar armadura- inventor ( ) maluco- lutar com moinhos ( ) inventor- momento de glória ( ) maluco- inventor

Na sugestão acima, trabalha-se com orientações diferentes de sentido, ou seja, o

locutor faz, diante da mesma ação de “jogar-se contra os moinhos de vento”, duas escolhas:

uma pessoa maluca e um inventor. Mais uma vez, trabalhamos com o princípio de interdependência semântica, em que o sentido do enunciado será a partir da relação de dependência estabelecida entre os segmentos, que só estarão completos de sentido na relação.