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2. LINGUAGEM PLÁSTICA NA OBRA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

2.1. TEXTOS DE 1ª VERSÃO: EKPHRÁSIS POÉTICA

Paul Delvaux (1897-1994), Jan Van Eyck (1390-1441), Johannes Vermeer (1632- 1675), Cimabue (1240-1302), Edgar Degas (1834-1917), Alberto Giacometti (1901-1966), Diego Velázquez (1559-1660), Rembrandt (1606-1669), Henri Matisse (1869-1954), Chaïm Soutine (1893-1943), Vincent Van Gogh (1853-1890). Esses são alguns dos pintores que António Lobo Antunes menciona ao longo da primeira fase de sua escrita e especialmente em seu primeiro romance: Memória de elefante. Por dar início à carreira literária do autor português, esse é, sem dúvidas, o livro mais fundamental dessa primeira fase, em que se agrupam os que denominamos Textos de 1ª Versão.

Os escritos foram assim nomeados porque nessa fase, que segue aproximadamente até Auto dos danados (1989),155 o autor está literalmente iniciando a prática de escrita e, metaforicamente falando, rascunhando uma primeira versão de textos para encontrar seu próprio estilo. No livro de entrevistas, Uma longa viagem com António Lobo Antunes (2009), organizado por João Céu e Silva, Lobo Antunes afirma: “Tudo o que tenho é meu e deu-me muito trabalho a encontrar a minha voz. Foram anos, anos e anos e os primeiros livros ainda têm vozes alheias, que é uma coisa que me desagrada”.156 Logo em seguida, Céu e Silva faz outra pergunta: “Não conseguir encontrar a sua voz assustava-o?”,157 para a qual o escritor dá a seguinte resposta: “Claro que assustava! Mais do que isso, era uma luta constante e estava sempre a sentir outras vozes em cima e a meterem-se na minha”.158

Em Memória de elefante, como o próprio autor afirma, sua escrita está repleta de referências e vozes e ainda se manifesta em um formato aparentemente mais tradicional, estruturalmente mais linear e gramaticalmente mais próximo da norma culta. Porém, Segundo Maria Alziro Seixo, esse livro, bem como os demais romances da primeira fase, na verdade, já

[...] integram uma proposta expressiva de um novo modo de entender e praticar a escrita de ficção, que mobilizou o leitor comum e alertou as reações críticas nos periódicos e nas instituições: numa escrita sacudida, onde a frase longa faz repercutir os ecos de um conhecimento amplo e

155 ANTUNES, António Lobo. Auto dos danados. São Paulo: Best Seller, 1985. 156 SILVA, op. cit., p. 31.

157 Loc. cit. 158 Loc. cit.

intenso de literatura e da arte (constantemente convocadas e integradas na experiência manifestada pelo narrador), ao mesmo tempo que anexa impressivamente pormenores avulsos do quotidiano de diferenciados níveis culturais, com recurso constante à metáfora insólita e disfemística e a várias outras formas retóricas de analogia. 159

Apenas alguns desvios formais, realizados com intuito estilístico, acontecem ainda em pequena escala, causando uma espécie de pequeno ruído visual no texto, como podemos notar no seguinte excerto:

O corcunda, instalado à esquerda, chupava ruidosamente pastilhas para a garganta disseminando no ar um aroma de inalações de asmáticos: se eu fechasse com força as pálpebras por um segundo poderia supor-me sem esforço no quarto de Marcel Proust, escondido atrás da pilha de cadernos manuscritos da Recherche du Temps Perdu: c’est trop bete, assim costumava ele definir o que escrevia, je peuux pas continuer, c’est trop bete. Querido tio Proust: o papel de parede, a lareira, a cama de ferro, a tua difícil e corajosa morte: mas achava-me na realidade instalado a uma mesa de jogo do Casino, e a solidão roía-me por dentro como um ácido doloroso: a ideia da casa vazia apavorava-me, a solução de tornar a dormir na varanda fazia-me gemer de antecipados lumbagos. De alma em pânico enxotei a derradeira ficha para o Grande: se ganhar vou direito ao Monte, enfio-me nos lençóis e masturbo-me a pensar em ti até o sono vir (receita de sucesso relativo); se perder convido esta jiboia idosa para uma orgia modesta de acordo com o casaco de plásticos dela e os meus jeans no fio, e à medida de um fim de mês penoso: ignorava qual destas duas catástrofes escolher, dividido com horror idêntico entre o isolamento e o ofídio [...]

— A mãe sempre disse que nunca teria juízo.

E provavelmente não só não teria juízo como (mais grave ainda) não alcançaria a espécie de felicidade que a ausência desse esquisito atributo traz consigo [...]

— A mãe sempre disse.

A mãe sempre disse tudo. E parecia-me que o fiscal adquiria pouco a pouco o jeito profético dela, as pálpebras magoadas, a testa enrugada, o cigarro aceso espiralando na ponta do braço elipses de desistência: — O que é que se pode esperar deste rapaz?160

O texto mostra-se impregnado de algumas marcações: os dois pontos, os parênteses, os travessões, as repetições e alguns cortes produzidos pela intervenção intertextual, a qual nos leva a adentrar um outro universo literário e até um outro idioma.

159 SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de

leitura. Lisboa: Dom Quixote, 2002. p. 15.

A passagem ajuda-nos a perceber que, desde o início, Lobo Antunes já ensaiava uma narrativa visual, que nesse primeiro momento, porém, é estruturalmente diferente do que virá a produzir no que chamamos aqui de segunda fase de sua carreira. Note-se que as imagens produzidas são, no geral, de caráter semântico e metafórico. O narrador descreve os sentimentos do protagonista, realizando um processo de tradução sui generis, pois capta elementos bastante subjetivos. As imagens simples são transformadas pelo olhar criativo e detalhista do narrador. Um homem comum transforma-se em um corcunda; o Casino, no quarto de Marcel Proust; a mulher idosa, numa jiboia; e o cigarro produz não uma simples fumaça, mas “espirais de desistência”. O mecanismo de produção imagética, como podemos observar, já se constrói de maneira inusitada, pois o narrador capta aquilo que não pode ser representado objetivamente. Ele nos induz a tentar visualizar uma espécie de invisível que, ao mesmo tempo, modifica e potencializa semanticamente os elementos indicados.

O trecho também foi escolhido por nos oferecer um indício muito importante. É sabido que Lobo Antunes é um escritor bastante culto, no sentido de amalgamar um conhecimento muito amplo e igualmente variado sobre os mais diversos assuntos. Já foi dito, no início deste capítulo, que sua escrita manifesta um intenso diálogo com outros sistemas de signos, tais como o cinema, a arquitetura, a fotografia, a dança, enfim, as artes de maneira geral. Em sua primeira fase de escrita, o autor produz uma textualidade visual a partir, basicamente, do procedimento narrativo e descritivo. Descreve objetos, pessoas e mesmo os sentimentos num fluxo intensamente metafórico. Além disso, fato que mais nos interessa, ele, mais do que apenas descrever, menciona objetivamente variados nomes artísticos, dando ao exercício descritivo um resultado semântico-visual singular. Um único parágrafo ou uma única palavra são capazes de dar ao texto uma enorme carga de visualidade. É o que acontece por exemplo na seguinte passagem:

Na noite de Lisboa tem-se a impressão de se morar num romance de Eugene Süe com página para o Tejo, em que a rua Barão de Sabrosa é a fitinha desbotada de marcar o lugar de leitura, apesar dos telhados onde florescem plantações de antenas de televisão idênticas a arbustos de Miró.161

161 Ibid., p. 157.

Para descrever a noite de Lisboa, Lobo Antunes recorre a pelo menos três processos: o metafórico, o intertextual e o intersemiótico. Graças a isso, um simples parágrafo produz uma abertura mental-ótica vertiginosa naquele que o lê. Para alcançar o que o olho do narrador é capaz de ver na noite de Lisboa e o que ele consegue sentir e captar dessa noite, precisamos realizar uma espécie de tradução verbo-imagética. Somos levados a acionar uma memória visual para construir, colorir, completar ou, pelo menos, esboçar o quadro textual que se nos apresenta.

Ainda assim, estranhamos a imagem que se forma em nossa visão mental, pois os elementos que nos são dados pelo narrador: um substantivo incomum – a noite de Lisboa; e seus inusitados adjetivos – morar num romance de Eugene Süe com página para o Tejo; telhados onde florescem plantações de antenas idênticas a arbustos de Miró –, não são suficientes para construir com clareza um quadro mental. Como imaginar tal noite? Acessar a atmosfera do romance de Eugene Süe é tarefa difícil, afinal, trata-se da tentativa de compilação de um efeito geral de leitura que nunca será o mesmo para todos.

A pintura de Joan Miró (1893-1983), por outro lado, um pouco mais acessível, ajuda- nos a compor o quadro criado na passagem acima. A dificuldade, nesse caso, está no fato de que Lobo Antunes geralmente cita o nome do artista e não o nome dos quadros. Dessa maneira, o leitor é levado a atravessar, a cada nova referência, um novo universo de signos sempre muito amplo. No caso de Miró, poderíamos imaginar qualquer pintura que tematicamente nos lembrasse uma “plantação de antenas” ou que fizesse alguma referência à noite. Escolhemos, com base nesses pequenos detalhes, a seguinte tela:

Figura 16: The nightingale’s song at midnight and the morning rain. Joan Miró, 1940.

O quadro selecionado pode servir como reflexo da passagem retirada de Memória de elefante, pois nele podemos visualizar elementos que guardam um formato muito próximo ao de um conjunto de antenas. Note-se, porém, que, mais uma vez, mesmo ao fazermos essa aproximação formal entre o elemento citado no texto – plantação de antenas – e a referência intertextual-semiótica – quadros de Miró – a cena não pode ser completamente preenchida. A paisagem mental continua a existir como uma mancha de impressão.

Quando Lobo Antunes convoca um elemento pertencente a outro sistema de significação162 para potencializar o caráter descritivo de sua escrita, mesclando texto e imagem, produz uma espécie de ecfrase. Segundo Peter Wagner, a ecfrase consiste na

162 Segundo Julio Plaza, “cada sistema de sinais constitui-se segundo a especialidade que lhe é característica e

que pode ser articulada com os órgãos emissores-receptores, isto é, com os sentidos humanos. Estes produzem as mensagens que reproduzem os sentidos”. (PLAZA, op. cit. p. 45.)

“representação verbal de uma representação visual”.163 A palavra ainda hoje é conhecida tanto como dispositivo retórico, quanto como gênero literário. Peter Wagner afirma que, etimologicamente, a ecfrase,

Consistindo o prefixo “ek” (ou “ec” e mesmo “ex”) em “de” (de um lugar) ou “fora” (para/por/de fora), e o termo raiz “phrasis”, em um sinônimo, no Grego, de lexis ou hermeneia, assim como no Latim, dictio e elocutio (o verbo phrazein denota “dizer, declarar, pronunciar), ekphrasis originalmente significava “repleta ou vívida descrição”.164

Enquanto dispositivo retórico, a ecfrase pode ser entendida como evocação de um elemento, com o objetivo de intensificar, tornar mais vívida, uma declaração ou, no caso da literatura, uma descrição. Esse dispositivo ilumina, ilustra o espaço original ao introduzir em seu meio um elemento de outro universo artístico. Temos então uma intensa manifestação sinestésica sempre que a ecfrase acontece.

A ecfrase é o encontro mais estreito entre o texto e a imagem, porém, ela pode também não ser real, isto é, pode fazer alusão a elementos inexistentes ou fictícios, deixando a obra que a evoca ainda mais labiríntica, pois o espectador é levado a criar por sua conta o elemento evocado. Peter Wagner diz, concordando com W. J. T. Mitchell, que, apesar de nem sempre evocar elementos verdadeiros, toda ecfrase é nocional, pois procura criar uma imagem específica, a qual pode ser encontrada apenas no espaço que dela faz uso e que passa a funcionar como uma espécie de residência estrangeira.165

Ainda de acordo com Wagner, a primeira entrada da palavra no Dicionário Oxford da língua Inglesa se deu em 1715, quando esta foi definida como uma declaração plana ou uma interpretação sobre algo. Uma segunda entrada ocorreu em 1814 e trouxe uma nova definição: “Feminilização florida do estilo”.166 Não obstante tais tentativas de formulação, Wagner afirma que a palavra ainda não foi bem definida e sugere que ampliemos seu uso, já que para ser caracterizada como ecfrase, a representação verbal de uma imagem não

163 WAGNER, Peter. “Introduction: Ekphrasis, Iconotexts, and Intermediality – the state(s) of the Art(s)”. In: Icons – Texts – Iconotexts: Essays on Ekphrasis and Intermediality.Berlim/New York: Walter de Gruyter,

1996, p. 10.

164 “Consisting of the prefix ‘ek’ (or ‘ec’ and even ‘ex’) meaning ‘from’ or ‘out of’, and the root term

‘phrasis,’ a synonym for the Greek, lexis or hermeneia, as well as for Latin diction and elocution (the verb

phrazein denotes ‘to tell, declare, pronounce’), ekphrasis originally meant ‘a full or vivid description’”.

(WAGNER, Peter, op. cit., p. 12.)

165 Loc. cit.

precisa ser literária. O teórico afirma ainda que é cada vez mais difícil distinguir um texto literário de um texto crítico, pois se a ecfrase é “a representação verbal de uma representação visual”, isso quer dizer que todo comentário verbal sobre imagens é uma ecfrase.

Para Gisbert Kranz, estudioso alemão retomado por Claus Clüver no livro Poéticas do visível, os poemas ecfrásticos podem sem classificados segundo seu objetivo – que pode ser descritivo, panegírico, pejorativo, didático-moralista, político, etc. –; e podem ser classificados segundo sua realização – quando produzem um efeito de transposição, de suplementação, de associação, de interpretação, de provocação, de jogo ou de concretização.167 Com base na colocação de Krans, Claus Clüver faz referência à afirmação de Roman Jakobson sobre a possibilidade de tradução de imagens. Para Jakobson existem três maneiras diferentes de interpretar um signo verbal:

[...] “Tradução intralingual”, ou “paráfrase” de um texto dentro da mesma língua; “tradução interlingual”, ou a recriação de um texto verbal em uma língua diferente; e “tradução intersemiótica ou transmutação”, que é a “interpretação de signos verbais por meio de signos de sistemas de signos não-verbais”.168

Considerando a divisão feita por Jakobson, podemos dizer que, em sua fase inicial de escrita, Lobo Antunes utiliza as três formas de interpretação dos signos verbais, mas inova ao produzir transposições intersemióticas que extrapolam a tentativa de dar voz a uma imagem supostamente silenciosa. Claus Clüver argumenta que

[...] decidir que um poema ekprástico pode ser lido como uma transposição não significa aumentar ou diminuir a sua importância. Simplesmente significa que os leitores realizarão operações que não realizariam caso decidissem que tal leitura não fosse possível.169

Lobo Antunes mostra-nos que é completamente possível realizar novas modalidades de leitura. Mostra-nos que sua arte é uma ferramenta que auxilia no processo interpretativo de outras obras, como um modo especial de (des)familiarização.

167 CLÜVER, Claus. “Da transposição intersemiótica”. In: ARBEX, op. cit., p. 111. 168 Ibid., p. 112.

Ao perceber tais distorções, o leitor pode questionar de que forma se dá a construção ecfrástica, afinal, “transposições intersemióticas lidas como tal são sempre lidas também como textos sobre o fazer textual que nos mostram as possibilidades e limitações inerentes aos dois sistemas de signos”.170

Se levarmos em conta que Lobo Antunes convida para o seu texto não apenas imagens ou pinturas propriamente ditas, mas filmes, marcas comerciais, localidades, nomes de artistas de toda espécie e muitas referências literárias – as quais podem figurar numa mesma página – uma impressão ainda mais aguda de distorção, dinamismo, ambiguidade e desdobramento pode ser sentida pelo leitor. Para visualizarmos um pouco mais do espaço narrativo construído pelo escritor português, precisamos acessar todos esses outros universos artísticos, os quais nem sempre são de antemão conhecidos por nós leitores.

Ao vagarmos pelas páginas de seu livro, deparamo-nos com passagens muito curiosas, que fogem do procedimento meramente descritivo. E para nos atermos apenas ao aspecto mais propriamente plástico do sistema de significação pictórico, faremos um pequeno passeio pelos momentos em que o autor cita pintores ou obras.

Logo na segunda página de Memória de elefante, encontramos duas referências artísticas completamente diferentes dividindo o mesmo parágrafo:

O olhar intensamente azul do porteiro-cobrador, que assistia sem entender a uma maré-baixa de revolta que o transcendia, embrulhava-o num halo de anjo medieval apaziguante: um dos projectos secretos do médico consistia em saltar a pés juntos para dentro dos quadros de Cimabue e dissolver-se nos ocres desbotados de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica e pelas pagelas de Sãozinha: lançar mergulhos rasantes de perdiz, mascarado de serafim nédio, pelos joelhos de virgens estranhamente idênticas às mulheres de Delvaux, manequins de espanto nu em gares que ninguém habita.171

Ao fazermos uma rápida busca por pinturas de Cimabue e de Paul Delvaux novamente deparamo-nos com um enorme conjunto de obras, que em muitos aspectos nos lembram a passagem do texto português. As gravuras de Cimabue são, todas elas, pintadas

170 Ibid., p. 130.

em “ocres desbotados de uma época ainda não inquinada pelas mesas de fórmica”,172 em que figuram personagens dotados de “halo de anjo medieval”.173 Vejamos:

Figura 17: The madonna in majesty. Cimabue, 1285. (detalhe)

172 Loc. cit.

Figura 18: La Vierge et l’Enfant em majesté entrouré de six anges. Cimabue, 1270.

Eis a virgem pintada em cores ocres e os halos dos anjos medievais que juntos dão à cena um aspecto ainda mais envelhecido, o que ajuda a compor a atmosfera memorialística que inclusive dá nome ao primeiro romance de Lobo Antunes.

É interessante notar que o narrador realiza um desdobramento intersemiótico intrasígnico ao comparar a posição física da virgem do quadro de Cimabue com as

personagens do quadro de Delvaux. Saltamos de uma tela para outra e de um espaço temporal para outro, conectando pelo menos três contextos históricos distintos: a contemporaneidade portuguesa, o medieval e o surrealista. O olhar do narrador conecta duas atmosferas artísticas a partir de um elemento bastante incomum: “joelhos de virgens”.174

Um segundo elemento da descrição feita no texto facilitou a escolha por uma tela de Paul Delvaux: os “manequins de espanto nu em gares que ninguém habita”.175 Duas telas foram selecionadas:

Figura 19: The village of Mermaids. Paul Delvaux, 1942.

174 Loc. cit.

Figura 20: The Great Sirens. Paul Delvaux, 1979.

Ao aproximarmos as telas medievais das surrealistas conseguimos compreender um pouco mais do estranhamento captado pelo olhar do narrador. Os joelhos, que apontam para uma postura estática pouco natural, estão presentes tanto no quadro de Cimabue, quanto nos de Delvaux, apesar do longo período de tempo que os mantém afastados.

A nova percepção, possibilitada pelo exercício visual de leitura das telas, traz para o interior do texto de Memória de elefante uma significativa ampliação descritiva e, consequentemente, interpretativa. Percebemos que pelo menos dois tipos de leitura são possíveis: o primeiro, mais superficial e mais vago, já que não extrapola o texto do romance em si; e o segundo, muito mais detalhista porque se realiza em conjunto com uma leitura paralela intersemiótica, que por sua vez funciona como uma lente de aumento semântico-visual.

Dando sequência ao texto, encontramos uma referência um pouco mais inusitada: “O médico tentava em vão decifrar nas espirais das suas rugas, que lhe lembravam as

misteriosas redes de fendas dos quadros de Johannes Vermeer, juventudes de bigodes encerados, coretos e procissões”.176

Apesar de mencionar o nome do pintor, o narrador evoca um aspecto que não diz respeito diretamente à temática geral de uma obra específica, mas ao elemento surgido do processo de envelhecimento dos quadros. O narrador menciona as fissuras e os vincos surgidos sob a tinta seca, os quais podem ser vistos, por exemplo, nesta famosa tela:

Figura 21: The Girl With a Pearl Earring. Johannes Vermeer, 1665. (detalhe)

É curioso observar que ao mencionar as rachaduras da tela de Johannes Vermeer,o narrador desloca o próprio elemento “envelhecimento”. Isto é, o envelhecimento da tinta,

176 Ibid., p. 15.

responsável por causar “as redes de fendas”177 na tela, ganha um novo sentido, pois no rosto da personagem do romance, passam a significar o envelhecimento do próprio sujeito. Faz-se necessário, pois, deslocar aquilo que o quadro não tematiza, traduzindo o efeito temporal técnico para um efeito temporal metafórico e semântico no romance.

Outra belíssima descrição, bem diferente da anterior, evoca um aspecto também bastante específico de outro artista plástico, Alberto Giacometti. O elemento mencionado passa a funcionar no texto do romance como um adjetivo. Eis o trecho:

O corpo dela permanecia jovem e leve apesar dos partos, e o rosto mantinha intactos a pureza dos malares e o nariz perfeito de uma adolescência triunfal: junto dessa beleza esguia de Giacometti