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2. Levantamento conceitual

2.4 Narrativa: características, definições e usos

2.4.1 Tipologia, gênero e estrutura universal

Praticamente tudo que é humano está envolto por uma ou mais camadas de narrativa. Esta afirmativa pode, inicialmente, parecer um tanto vaga ou exageradamente ampla. Fará mais sentido à medida que avançarmos para as dimensões cultural e cognitiva desta forma de significação. No livro The Storytelling Animal (2013), o pesquisador estadunidense Jonathan Gottschall fala sobre a dimensão narrativa da existência humana, aquilo que chama de nossa “Terra do Nunca”. É para lá que vamos quando ouvimos, lemos, assistimos ou jogamos uma narrativa. A Terra do Nunca nos recebe em nossos diálogos mentais, sonhos e devaneios, voluntários e/ou involuntários, e este contato molda as formas de significação da cultura ocidental, e aparentemente das outras culturas também. Exemplos práticos, narrados, facilitam a compreensão de muitos conceitos abstratos, e a reforma religiosa cristã deve boa parte do seu impacto ao uso de parábolas, que ainda hoje, 20 séculos depois de sua implementação,

permanecem úteis para exemplificar ensinamentos morais, sociais e políticos de outra forma perigosamente abstratos e abertos a interpretações e dúvidas. De acordo com o autor, a mente humana tenderia a operar no que ele classifica como modo de

devaneio (GOTTSCHALL, 2013, [29]) sempre que não está absorta em processos que demandam raciocínio lógico. Ele relata que, de acordo com algumas pesquisas, um americano médio passaria mais de 6 horas diárias perdido em pequenos devaneios baseados em enredo, os momentos em que criamos ou recriamos mentalmente diálogos passados ou eventos fictícios, todos enquadrados em moldes narrativos. Neste contexto, para o autor, grande parte do sistema educacional ocidental serviria para ensinar as crianças a controlar e suprimir o modo de devaneio, sendo este último a forma mentis por excelência de nossa espécie. Por este motivo, Gottschall utiliza o termo Homo fictus para se referir a nós, humanas e humanos.

Como um dos pilares deste trabalho é a narrativa, definir este conceito no corpo da presente pesquisa é o objetivo desta unidade. Definir algo tão comum, tão presente em nossas vidas – somos envolvidos na dimensão narrativa da cultura desde as primeiras histórias de ninar, e ela nos acompanha ao longo de nossa vida – e

terror – e em suportes diversos – narradas oralmente ou registradas em livros, histórias em quadrinhos, novelas e séries de tv/web, filmes, jogos de videogame e tabuleiro – é uma tarefa complexa. Neste trabalho, opto por utilizar uma definição fundamentada na reunião de indícios, evitando padrões mais rígidos e fechados, como o modelo de base estruturalista do monomito, proposto por Joseph Campbell (1995). Primeiramente, nos deteremos sobre a separação tradicional e um tanto analítica das tipologias textuais, estrutura com a qual muitos foram familiarizados em contexto escolar, que estabelece fronteiras imaginárias que raramente são obedecidas na construção de um discurso ou mensagem, seja ela escrita, falada, filmada, ou transmitida de qualquer outra forma possível.

Atendendo aos critérios analíticos de decomposição e classificação, é comum observar em materiais didáticos utilizados em nosso país uma tradicional classificação entre três tipologias textuais distintas: narração, dissertação e descrição. Contudo, nenhum dos três tipos é encontrado de maneira pura ou isolada em processos de construção de discursos ou de sentido, de modo que classificar um discurso completo numa única categoria se enquadra na categoria de exceção, não de regra. Não justifica, portanto, a criação de regras. Por exemplo, para que um texto argumentativo seja sólido, narrar eventos e descrever conceitos são estratégias importantes. Este mesmo princípio é facilmente observável no campo narrativo: criar ambientações a partir de elementos descritivos é parte fundamental de uma narrativa cativante, assim como conduzir quem escuta/lê/assiste/joga a se posicionar racionalmente frente a um conjunto de situações, ambos requisitos desejáveis para que se construa a ilusão imersiva da narrativa.

Alessandra Baldo (2004), linguista brasileira, se debruça sobre esta questão com maior profundidade no artigo “Gêneros discursivos ou tipologias textuais?”, publicada pela Revista Virtual de Estudos da linguagem. A pesquisadora é motivada pelo desejo de compreender porque a tipificação de gêneros discursivos, proposta por Mikhail Bakhtin (1992), é estudada nas licenciaturas e pós-graduações em Letras mas

desaparece da prática docente, quando é substituída pela noção de tipologia textual tradicional. Baldo procede com a análise de materiais didáticos, observando a

organização teórico-conceitual “em três livros dedicados ao ensino da língua

portuguesa” (BALDO, 2004, p. 1) e realiza um levantamento de dados junto a docentes de literatura para observar “se a noção de gênero bakhtiniana está refletida no

trabalho destes profissionais, e em que medida” (ibidem, p. 1), noção sobre a qual me deterei rapidamente.

Baldo (2004) compartilharia com Bakhtin (1992) da percepção de que toda atividade humana, por ser cultural, está diretamente ligada à língua e ao seu uso, apontamento que se alinha com a relação direta entre linguagem e cultura proposta por Edgar Morin (1998) e Marvin Harris (2001), conforme vimos anteriormente. Compartilhando deste pressuposto, Bakhtin proporia uma separação básica entre “gêneros primários, ou simples, e secundários, ou complexos” (BALDO, 2004, p. 01). De maneira sintética, a primeira categoria abarcaria os discursos menos marcados pela formalidade, como os utilizados numa conversação informal, nos diálogos de um filme comercial ou numa peça publicitária, enquanto a categoria dos gêneros secundários envolveria discursos marcados por uma maior formalidade: os discursos jurídico, científico, documental, artístico, sociopolítico, técnico etc (BAKHTIN, 1992). Assim, a separação tradicional em narração, descrição e dissertação serviria mais ao objetivo de indicar uma opção estilística do que um gênero discursivo. O estilo, aqui, é um elemento ou subsistema da categoria gênero, sendo portanto um dos elementos a serem analisados a partir dele, e não em sentido contrário (BALDO, 2004).

Encerrando esta questão inicial, Alessandra Baldo (2004) conclui que a noção de gênero textual proposta por Bakhtin, apesar de presente no currículo dos cursos de licenciatura, nem chega a ser levada para a sala de aula, muitas vezes não sendo nem compreendida em seu caráter utilitário durante os cursos de licenciatura. Isso pode ser visto como indicativo de alienação das esferas socioculturais docente e discente em relação à sua língua e, principalmente, à compreensão da mesma enquanto um processo sócio-histórico dinâmico, portanto embebido das dinâmicas culturais da sociedade de onde emerge, e necessariamente vinculado a elas. Esta postura crítica, voltada mais para a intencionalidade da organização de um discurso do que por suas opções estilísticas, é sobrepujada pela tipificação limitada e tradicional tríade

causadas pelo imprinting, uma vez que o conteúdo tradicional, aprendido no ensino fundamental e reforçado no ensino médio, estabelece uma espécie de barreira

perceptiva que impede que as/os docentes – e, possivelmente, aqueles que se formam em suas salas de aula – vejam para além de uma classificação de baixa utilidade

prática, mas consolidada culturalmente pela repetição. Este quadro de análise

reducionista apaga a dimensão cultural dos discursos, favorecendo a continuidade de uma noção formalista que afasta o conteúdo teórico de sua prática social.

2.4.2 Conexões narrativas e as dimensões narrativa e