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Sabemos que a legitimação de qualquer regime político pressupõe a elaboração de um imaginário e que sua manipulação é particularmente importante para a caracterização de mudanças sociais. Castoriadis (1985) diz que a sociedade não teria tido condições de sobreviver se o imaginário não houvesse entrecruzado com o simbólico. No decorrer deste tópico, veremos que o emprego do imaginário ultrapassou a tarefa política proposta pelos republicanos, em questão o investimento implementado na figura de Tiradentes.

De fato, o novo Governo se valeu do imaginário como forma de enfrentar dois grandes problemas: o primeiro era dar unidade à Nação; e o outro, impossível de ser solucionado, o abandono social21. Além disso, havia a necessidade de mostrar-se

21 O Brasil foi um dos últimos países a libertar os negros do trabalho escravo, mesmo sendo

pressionado pela Inglaterra que, com a medida, ampliava mercado para seus produtos. A abolição dos escravos ocorreu em 1888, um ano antes da Proclamação da República. Não havia qualquer política pública no sentido de dar algum encaminhamento, em termos de qualificação profissional para inserção da mão de obra nas cidades. Desde a vinda dos imigrantes, os negros foram entregues à própria sorte.

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contrário ao Governo precedente que se valia da intimidação como forma manipulatória, para se manter como autoridade máxima. Tiradentes emblematizaria um Governo condescendente com o povo, agasalhador, capaz de impor ordem e progresso, o dístico da Bandeira nacional. Assim, o novo Regime político, exibindo o herói tal qual um espelho convexo, também lutaria pelo País.

Silva (2003, p. 13) escreve que o imaginário social estrutura-se por contágio que passa pela aceitação do modelo, disseminação e imitação. Pontua que, no imaginário, há um desvio e é justamente nesse desvio que há potencialidade de canonização. Os republicanos investiam na canonização de seu herói. Tiradentes, ao ser canonizado por conta de sua “provação” manipulada, figura como síntese da carreira de todos os heróis que povoaram ou povoarão a mídia nacional: o exame dessa hipótese está no cerne desta pesquisa.

Armados de uma “verdade parcial”, os positivistas se valeram de elementos simbólicos para concepção e divulgação de uma espécie de “espectro”, envolvendo seus símbolos entrelaçados com o imaginário universal. À memória social de Tiradentes que o condicionava a mártir – pelo horror da morte e a derrama, causa que defendeu – foram imputados elementos simbólicos contidos no imaginário universal que remetia à religião católica, à morte e à redenção.

Em outras etapas a relação simbólica (cujo uso correto supõe a função imaginária e seu domínio pela função racional) retorna, ou melhor, permanece desde o início lá onde surgiu: no vínculo rígido (a maior parte do tempo, sob a forma de identificação, de participação ou de causação) entre o significante e o significado, o símbolo e a coisa, seja do imaginário efetivo (CASTORIADIS, 1985, p. 155).

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Castoriadis (1982, p. 147) lembra que: “todo o simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes”. Naturalmente, o edifício simbólico a que o autor se refere, reporta ao imaginário que, por sua vez, pode ser entendido como uma invenção (total ou parcial), como alavanca de desvio do raciocínio – pelo qual os símbolos são investidos de outras significações, também como fronteira do real, no lugar da mentira ou em uma projeção. Castoriadis (1982, p. 154) diz existirem relações profundas entre o imaginário e o simbólico, uma vez que: “o imaginário deve utilizar o simbólico não somente para exprimir-se, o que é óbvio, mas para “existir” para passar do virtual a qualquer coisa a mais”.

Embora houvesse racionalismo e clara intencionalidade na escolha dos elementos que constituiriam o herói republicano, na inserção do simbólico a serviço do Regime político como efetiva transferência da mensagem/contexto desejado, a realidade, segundo Castoriadis (1982, p. 142-143) seria capaz de destruir as pretensões interpretativas do funcionalismo. Ou seja, por mais direcionada ou fechada que fosse a mediação oficial, a realidade e o imaginário não permitiriam uma interpretação unificada.

A visão moderna da instituição que reduz sua significação ao funcional, só é parcialmente correta. Na medida em que se apresenta como a verdade sobre o problema da instituição, é só projeção. Ela projeta sobre o conjunto da história uma ideia tomada de empréstimo... aquilo que esse mundo gostaria que suas instituições fossem. Visões ainda mais recentes, que só querem ver na instituição o simbólico (e o identificam com o racional) representam também somente uma verdade parcial e sua generalização contem igualmente uma projeção (CASTORIADIS, 1982, p. 159).

Ferrara (1994, p.46) diz que o imaginário corresponde à prática social de atribuir significados a significados “[...] pela qual os significados passam a acumular

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imagens e significar ainda mais”. Para a autora, a condição de sobrevivência do imaginário está justamente em sua expansão coletiva e é vital para a legitimação ou definição de identidades sociais, culturais ou políticas. Em conseqüência o imaginário é uma característica da organização social: sua identidade ou sua máscara. Verdade ou mentira, real ou manipulada, o imaginário diz menos sobre si próprio do que sobre a sociedade que o constrói.

Nesse sentido, emergente de um caldeirão de interesses, Tiradentes, com sua biografia reconstruída, exponencialmente, com base em sua morte e em elementos que apontam para o imaginário “espírito de grupo” pode ser lido de forma oposta (MAFESOLI, 2001). A mediação oficial não se sustentou por conta do imaginário e da contra-mediação sempre emergente que, mesmo sem muita exponibilidade, deixa a República na mesma condição em que Tiradentes é apresentado por Pedro Américo em “Tiradentes Supliciado”, obra que comunica a fragilidade do Movimento republicano que analisaremos a seguir.

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