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O sinal tocou e aos poucos todos vão saindo, passando pelos portões, despedindo-se, carregando em si a certeza, talvez tediosa ou animada, de que na manhã seguinte todos estarão de volta aos mesmos corredores, salas de aulas, refeitórios, passando, novamente, pelos portões. Este é ciclo de ir à escola, aprender, socializar, experienciar novas narrativas sobre si e sobre os outros.

Finalizo esta dissertação com a lucidez de que não consegui narrar e nem descrever a imensidão, complexidade e diversidade do espaço escolar, em específico durante o recreio da escola analisada. As multiplicidades de corporalidades escolarizadas e as implicações do “estar na escola”, atravessam os sujeitos que compõem a cultura escolar de múltiplas formas,

sendo assim, capturar e tornar narrável esta vastidão de percepções, com certeza não era possível e nem constituia-se enquanto um objetivo desta escrita.

As perguntas lançadas nesta pesquisa, creio eu, afunilam-se na ideia de perceber como corporalidades desviantes e desobedientes de raça, gênero, sexualidade, religiosidade e outros marcadores da diferença, costuram - intercecionalemnte - práticas, alianças, negociações, saberes para existir e resistir no espaço escolar, compreendendo as particularidades da escola analisada e o espaço-tempo das observações, o recreio.

Para me auxiliarem na longa tricotagem deste manto chamado dissertação, convidei a comporem junto comigo os feminismos decoloniais, alargando minhas percepção sobre práticas e saberes não-hegemônicos; complexidades que atravessam a subjetivação dos sujeitos frisando a colonialidade/modernidade como um elemento estruturante; e a possibilidade, a partir da quebra de linguagem e redirecionamento do que vemos, produzir epistemologias mais democratizantes e menos universais, evidenciando que exercícios de descolonização são possíveis.

Em conjunção aos filtros decoloniais, trilharam comigo teóricos que produziram conceitos potentes para pensar a complexidade do espaço escolar, como: as culturas escolares, culturas juvenis, pedagogias da sexualidade e heteronormatividade, sexualidades e juventudes ciborgues e tecnologias digitais. Estas formulações expandiram meu olhar sobre como as relações operam dentro do território escolar, evidenciando que as tecnologias e dispositivos, em aliança com as culturas juvenis e seus pertencimentos, transformam constantemente a cultura escolar. Compreendendo, que tanto a(s) cultura(s) escola(res) quando as culturas juvenis se atravessam e reatualizam-se a partir de componentes trazidos pelas corporalidades escolarizadas, assim, possibilitando encontros, disputas, conflitualidades que ampliam a diversidade e a potencialidade do espaço escolar, como por exemplo, as sexualidades, racializações, religiosidades, entre outros aspectos aqui trabalhados.

Para costurar metodologicamente as complexidades descritas no diário de campo e observações participantes, utilizei das formulações etnográficas decoloniais e aspectos das produções antropológicas que se comprometam em escrever contra a cultura das universalizações, imperialismos e outrficações sobre os sujeitos. Desta parte pude compreender que a etnografia é um processo duplo de ver o outro e ver a si, dilatando as barreiras da premissa sujeito x objeto. Assim, a partir das minhas vivências escolarizadas, formulei aproximações entre ficção e escrita etnográfica, fazendo emergir como potencialidade conceitual a ser utilizada, a concepção de Escrevivências de Conceição Evaristo.

A partir de todas essas contribuições teóricas e metodológicas - do diário de campo, das minhas Escrevivências escolarizadas e de sexualidade e relatos de pessoas próximas sobre aspectos outros de viver sexualidades - construí cinco contos ficcionais, os quais narram as histórias de Tiago, Larissa e Raquel, Clara e Cleiton, além do conto em que apareço como personagem principal.

As narrativas, produzidas a partir de um olhar feminista decolonial, são tentativas de fazer emergir relações e encontros que possibilitam colocar em diálogo aspetos das corporalidades desviantes e desobedientes. Desta forma, evidenciando táticas, saberes, negociações que no espaço escolar ganham outras dimensões, pois são atravessadas pelas culturas escolares e culturas juvenis, como nas histórias de Larissa e Raquel sobre religiosidade e na de Cleiton durante o diálogo tenso entre os sabres da instituição e o pertencimento racial do aluno. Aqui também podemos destacar o saber-conhecimento de Tiago, ao caçar salgados na hora de recreio negociando com a condição de ser uma “bixa” simpática, e as táticas de experienciar a lesbianidade no banheiro, na história de Clara. Conjuntamente operando a esta lógica surgem outros aspectos como pedagogias da sexualidade e heteronormatividade, transparentes no caso de Tiago e Clara, onde para o primeiro o banheiro torna-se um lugar de medo e negação, já para Clara, um espaço seguro onde pode reconfigurar estáticas sobre si. Outro fator que atravessa todas as histórias, são as produções de juventudes e sexualidades ciborgues através dos dispositivos digitais e aplicativos online. Redes como Facebook, Whatsapp, Instagram e Tinder aparecem nas narrativas como possibilidades de produção de desejos e relações seguras, como no caso de Tiago e Clara.

Assim, concluo que através de todo este arcabouço teórico e metodológico, redigi pequenos contos que pudessem compilar a complexidade e diversidade do espaço escolar, levando em consideração os processos de obrigatoriedade escolar e a recente ocupação das escolas em 2016 enquanto tempo-espaço-acontecimento fundamental para a emergência dos sujeitos com os que me propus dialogar. Entendendo que estes processos ampliaram o acesso e a circulação de outros sujeitos ao ambiente escolarizado, possibilitando a reconfiguração de novas corporalidades e subjetividades atravessadas por gênero, sexualidade, raça, religiosidade, entre outros. Ou seja, a obrigatoriedade escolar possibilitou maior acessibilidade ao espaço escolar, encabeçando processo de pluralização e diversificação, assim, encadeando nas ocupações das escolas, momento onde alunos e alunas, a partir de suas culturas juvenis e múltiplos pertencimentos, trouxeram para a escola seus interesses e experiências. Esta gama de complexidades contribui para a construção constante de uma escola cada dia mais diversa,

plural e crítica, que trabalhe com o intuito público de uma instituição cidadã e democrática, onde os sujeitos possam construir em coletividade, culturas escolares que dialoguem com as culturas juvenis.

Acredito que o caminho trilhado nesta dissertação ainda é pequeno comparado a potencialidade de caminhos que efervescem no espaço escolar, em especial, no espaço-tempo recreio. As histórias de Tiago, Clara, Larissa, Raquel, Cleiton e Hariagi, são algumas dentre as milhares de vivências e trajetórias de vida que emergem na complexidade do ambiente coletivo, de socialização e conflituosidade que é a escola, em especial, a escola pública.

Penso que esta escrita pode contribuir para pensarmos alguns aspectos sobre feminismos decoloniais e educação, evidenciando que práticas, saberes e conhecimentos emergem das mais corriqueiras relações, neste caso, apresentadas nos corredores, banheiros, recreio. Além de vislumbrar que outras formas de escrita e narrativa são possíveis para pensar o mundo escolar e suas subjetividades, destacando gírias, gestos, sons, olhares, afetos como saberes produzidos por sujeitos que experienciam as juventudes desde lugares e pertencimentos diferentes, mas que compartilham um mesmo lugar de circulação: o pátio da escola. Para essas contribuições e exercícios de práticas descolonizadoras, penso ser possível o retorno da produção aos sujeitos escolarizados co-autores desta escrita, confeccionado, em um dia de atividades na escola, a produção de zines que compilem as cinco narrativas aqui contadas. Talvez este seja um descolonizar acessível além de escrever 180 páginas sobre exercícios de descolonização. Possível porque os alunos talvez possam reconhecer-se, admirar-se e também reinventar-se a partir das trajetórias vividas ali, naquele pátio escolar.

No meu coração a felicidade de poder contar e inventar trajetórias, que assim como a minha, são escritas de resistência sobre mim e sobre os outros a partir de mim. Na minha mente ainda borbulham algumas provocações inalcançáveis deste dissertar: Afinal, que escola as juventudes escolarizadas desejam construir? De que maneiras a instituição escola ouve os saberes das culturas juvenis? Ou melhor, que tipo de sonoridade as vozes juvenis estão produzindo que os ouvidos institucionais não dão conta de escutar? São algumas inquietações que deixei do lado de cá do portão …