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Tomás e a condenação de 1270

No documento Tomás de Aquino e a nova filosofia natural (páginas 117-122)

Capítulo 2: Tomás e o estabelecimento de uma nova física: leitura de In Physica II,

3. Tomás e a condenação de 1270

No intuito de insistir sobre a importância do sentido da expressão mediante a qual Tomás compreende o peso e a leveza, o principium formale, menciono sucintamente a relação, mesmo que indireta, entre o sentido dessa expressão, para Tomás, e a condenação da quarta proposição de 1270. De antemão é importante notar que o contexto no qual os acadêmicos do século XIII do Ocidente latino elaboraram suas concepções de mundo contribui no direcionamento das questões formuladas e respondidas por eles. Porém, ele não determina o que cada acadêmico julga como essencial em sua concepção de mundo. Isso pode ser evidenciado, dentre outros, pelo próprio Tomás, sobretudo quando o autor, por razões filosóficas, se mantém conceitualmente contra a tentativa de imposição da concepção de mundo de outrem, o que ocorreu pela já mencionada condenação parisiense de 1270, nomeadamente quanto às noções de criação e natureza vinculadas à quarta proposição condenada. Embora esta tese não tenha por escopo relacionar diretamente a possível discussão entre Tomás e as condenações, nem mesmo entre ele e os autores que 301 Cf. TORRELL, 2004, p. 398. 302 Cf. TORRELL, 2004, p. 401. 303 Cf. TORRELL, 2004, p. 405. 304 Cf. TORRELL, 2004, p. 388. 305 Cf. TORRELL, 2004, p. 388. 306 Cf. TORRELL, 2004, p. 391. 307 Cf. TORRELL, 2004, p. 389.

de algum modo são visados nas condenações,308 a menção a este evento funciona como via para se perceber a ênfase conferida pelo próprio Tomás a uma tese central de sua concepção de mundo, que, a meu ver, está intimamente vinculada ao sentido de

principium formale, a saber: os entes da região sublunar necessitam, para existir e operar,

do conjunto dos astros, o céu. Nesse sentido, o céu é entendido por Tomás, conforme já mencionado, como o primeiro agente da natureza que, ao operar ininterruptamente sobre a região sublunar, conserva a existência dos entes desta região e viabiliza suas operações.

Na função de bispo de Paris, Étienne Tempier promulgou duas condenações em 1270 e 1277 respectivamente. Das treze proposições condenadas em 1270, a quarta diz: “Tudo o que ocorre aqui no mundo sublunar está submetido à necessidade dos corpos celestes”.309 Essa condenação é reforçada em 1277, pois, das duzentas e dezenove proposições condenadas, a de número 156 reza: “Se o céu parasse, o fogo não atuaria, pois seria removido, porque a natureza cessaria de operar”.310

Pelo que se nota, as condenações manifestam certa concepção de mundo e de natureza que diferem notavelmente daquela presente em Tomás. Com efeito, ao negar que os entes sublunares necessitam dos corpos celeste para operar, as proposições indicam, por um lado, a possível ausência do primeiro agente da natureza que coopera ou mesmo viabiliza a operação dos entes sublunares e, por outro, certa preocupação de que a necessidade apontada implicaria em negar a operação divina na região sublunar.311 Nessa medida, o sentido de necessidade presente nas duas condenações se refere, respectivamente, a duas discussões. A primeira, mais restrita, se atém à possibilidade do céu determinar a vontade e destino do homem. A segunda, mais geral, diz respeito à natureza entendida como princípio de movimento e de repouso e, ademais, de seu vínculo com a operação divina de criação. Nesse aspecto mais geral, a discussão centra-se na seguinte questão: se a locomoção do céu cessasse, cessariam imediatamente o movimento e a mudança na região sublunar? A referida condenação conclui pela negativa. Porém, a resposta de Tomás, conclui positivamente.

308 Sobre esta discussão, ver: TORRELL, 2004, p. 209-287; WEISHEIPL, 1975, p. 241-292. 309 WEISHEIPL, 1975, p. 276.

310 GRANT, 1987, p. 16.

311 Como bem apontou Grant: “[...] o bispo de Paris não deixou nenhuma dúvida sobre sua aversão à ideia

de que as ações terrestres dependem totalmente dos movimentos celestes, e, por implicação, independem das ações de Deus. Como consequência, era preciso admitir, ao menos na diocese de Paris, que se os movimentos celestes cessassem, o fogo poderia atuar por seu próprio poder queimando o linho”. (GRANT, 1987, p. 16).

Cumpre observar que Tomás tinha conhecimento da condenação mencionada de 1270, pois, ele lecionava na Universidade de Paris desde 1268, vindo a finalizar suas atividades aí em 1272.312 Ademais, embora tivesse a oportunidade de revisar sua posição, Tomás não o fez, razão pela qual, ao menos virtualmente, ele também fora atingido por algumas proposições condenadas.313 A tese central que fez Tomás manter sua posição refere-se à sua concepção de causalidade, sobretudo no que tange ao seu vínculo com as noções de criação e natureza.

A concepção de causalidade de Tomás, no contexto mencionado, pode ser apresentada pela referência ao próprio procedimento de análise empregado por Tomás na articulação das noções de criação e natureza:

Unumquodque agens sibi simile agit, quoquo modo. Agit autem unumquodque agens secundum quod actu est. Illius igitur agentis erit producere effectum causando aliquo modo formam materiae inhaerentem quod est actu per formam sibi inhaerentem, et non per totam substantiam suam. [...] res materiales, habentes formas in materiis, generantur a materialibus agentibus habentibus formas in materia, non a formis per se existentibus.314

As formas per se por serem imateriais, designadas como separadas, são as inteligências. Tomás entende que as formas per se não são geradoras, nem unívocas, nem universais, uma vez que é a matéria que garante o mínimo de semelhança entre os entes e, na geração, a forma engendrada na matéria de algum modo preexiste no gerador. Embora causem diretamente o movimento celeste, pela dessemelhança específica e genérica, as formas per se não causam diretamente a mudança substancial na natureza.315

.A negação de que as formas per se são causas da mudança substancial é sustentada porque a mudança substancial requer que a causa eficiente se envolva diretamente com a atualização de potências no efeito, isto é, que a causa possua semelhança específica ou

312 Cf. TORRELL, 2004, p. 288.

313 Notadamente pela quarta proposição apresentada acima e pela quinta proposição, qual seja, “Que o

mundo é eterno” (WEISHEIPL, 1975, p. 276). Sobre a discussão do envolvimento de Tomás com a quinta proposição, ver: Torrell 2004, p. 215-218. Sobre a discussão geral das noções de criação e eternidade em Tomás, inclusive com amplas referências bibliográficas, ver: Santos 2013c. Quanto à discussão geral da proposição 4, seu vínculo com a proposição 156 e, ademais, os vários filósofos atingidos ou comprometidos com essa proposição até o período dos Conimbricenses, ver: GRANT, 1987, p. 1-23.

314 “Todo agente produz de algum modo efeito semelhante a si. Todo agente age na medida em que está em

ato. Por isso, produzir o efeito por alguma introdução da forma na matéria pertence àquele agente que está em ato pela forma que lhe é inerente e não por toda a sua substância. [...] as coisas materiais, que tem formas inerentes à matéria, são geradas por agentes materiais com formas inerentes à matéria, não pelas formas existentes per se”. (SCG II, 16, n. 937. Trad. Odilão Moura. Aqui com modificações).

genérica com o efeito, o que é assegurado pela análise que de certo modo se baseia na observação, ou seja, no grau de semelhança entre as coisas. O mesmo procedimento é empreendido por Tomás em temas ainda mais complexos, como no caso da criação da matéria-prima. Os argumentos de Tomás que visam sustentar que a matéria-prima é efeito da operação divina de criação, sempre partem deste princípio: a causa do todo é a causa das partes.316 Tomás quando trata da matéria-prima como efeito divino, sempre tem como referência os entes naturais já constituídos. Se a divindade é a causa de todo o ente, ela será a causa de suas partes. Como a matéria-prima é constituinte do ente natural, então a divindade é a causa da matéria-prima.317 A análise, nesse contexto, ocorre em duas etapas, a saber, da técnica para a natureza, e da natureza para a divindade:

Quicumque enim facit aliquid ex aliquo, illud ex quo facit praesupponitur actioni eius, et non producitur per ipsam actionem actionem: sicut artifex operatur ex rebus naturalibus, ut ex ligno et aere, quae per artis actionem non causantur, sed causantur per actionem naturae. Sed et ipsa natura causat res naturales quantum ad formam, sed praesupponit materiam. Si ergo Deus non ageret nisi ex aliquo praesupposito, sequeretur quod illud praesuppositum non esset causatum ab ipso. Ostensum est autem supra quod nihil potest esse in entibus quod non sit a Deo, qui est causa universalis totius esse. Unde necesse est dicere quod Deus ex nihilo res in esse producit.318

A primeira etapa da análise parte da técnica em direção à natureza. Nela, o artífice é considerado como a causa extrínseca da produção de uma forma artificial na matéria. Para tanto, o artífice se utiliza dos meios naturais para a fabricação, a madeira e o ar, ambos produzidos pela operação da natureza. Nesse sentido, a natureza se configura como causa intrínseca da produção de formas na madeira e no ar. A operação da natureza é mais perfeita do que a operação do artífice porque este pressupõe a operação da natureza que dispõe a matéria para ele. Na segunda etapa da análise, alcança-se o discernimento de que

316 Cf. SGC II, 17, n. 954. 317 Cf. ST, Ia, q. 44, a. 2, resp.

318 “Pois, se alguém faz alguma coisa de outra, aquela da qual faz é pressuposta à ação de quem faz e não é

produzida por tal ação. Assim o artífice opera com as causas naturais, por exemplo, a madeira e o ar, que não são causados pela ação da arte, mas pela da natureza; por sua vez, a própria natureza causa os seres naturais quanto à forma, mas pressupõe a matéria. Se, pois, Deus não atuasse senão sobre algum pressuposto, seguir-se-ia que esse pressuposto não foi causado por ele. Pois já mostramos antes (q. 44. a. 1, 2) que nada pode existir nos seres que não provenha de Deus, causa universal de todo ser. Donde é necessário dizer que Deus traz, do nada, as coisas ao ser”. (ST, Ia, q. 45, a. 2, resp. Trad. Alexandre Correa).

na produção das formas, a natureza pressupõe a matéria-prima. A matéria-prima é pressuposta nessa produção porque a natureza é compreendida como causa das formas naturais e não de todo o ente. Nessa medida, chega-se, enfim, a afirmação segundo a qual a divindade cria a matéria-prima e a dispõe para a operação da natureza.

Pela referência ao modo pelo qual Tomás articula as noções de criação e natureza, percebe-se que, para ele, a divindade não anula a operação da natureza, tampouco a natureza é autossuficiente em sua operação, pois sempre pressupõe a criação. Portanto, Tomás estabelece a relação de causas subordinadas essencialmente de modo que a operação de uma não subtraia a operação de outra. Isso se dá por uma dupla dependência, uma referente à essência do ente e, outra dizendo respeito à operação deste. Assim, Tomás evidencia que um ente pode necessitar de outro quanto à essência, mas ser autônomo quanto à operação. Todos os entes necessitam, quanto à essência, da operação divina de criação. Porém, isso não os priva de operar de modo autônomo e, ademais, de uns necessitarem de outros, como ocorre no caso da locomoção elementar, pois o peso e a leveza estão em ato nos elementos pela contínua locomoção do céu. Aliás, negar essa necessidade é, para Tomás, um sério equívoco filosófico decorrente de uma compreensão equivocada das noções de criação e natureza, pois elimina duas teses muito importantes para a filosofia: “[...] divina providentia ordinem omnibus rebus imponit”;319 “[...] corpora caelestia sunt motiva et regitiva inferiorum corporum”.320 O movimento e a regência do céu sobre a região sublunar, conforme a primeira tese citada, decorre da imposição da ordem da providência divina, sendo a negação dessa imposição, portanto, um absurdo para a filosofia. Sendo assim, a quarta proposição condenada em 1270, na suposição de que ela subsume a proposição 156 condenada em 1277, mesmo que o promulgador tivesse a intenção de não enfraquecer o poder divino, afirma, aos olhos de Tomás, um absurdo, pois indica que haveria operação do fogo se o céu repousasse.

Se o promulgador das condenações de 1270 temia que a necessidade apontada enfraquecesse o poder divino, era porque em sua concepção de mundo e de natureza, talvez, faltasse uma concepção de causalidade que vinculasse criação e natureza de tal modo que, dentre os entes naturais, houvesse subordinação essencial no operar, como sustenta Tomás. É justamente porque possui uma concepção de mundo baseada numa causalidade que articula criação e natureza que Tomás se mantém conceitualmente contra a condenação, pois como nada há de supérfluo na natureza, sendo ela efeito divino, então

319 “[...] a providência divina impõe ordem a todas as coisas”. (SCG III, 81, n. 2571). 320 “[...] os corpos celestes movem e regem os corpos inferiores”. (SCG III, 82, n. 2576).

ela impõe necessidade sobre os entes naturais, mas não na divindade porque a causa é mais excelente do que o efeito.

A necessidade mencionada, conforme já apresentado, é marcante no caso da locomoção natural elementar, mesmo que Tomás a apresente de modo sucinto no In

Physica II, 1, n. 4. Por esse texto, pode-se inferir que a natureza completa dos elementos,

a despeito de possuir o princípio ativo para mover outros entes naturais, é potência passiva para a locomoção. Como todo outro movimento pressupõe a locomoção, os elementos necessitam da ininterrupta operação do céu. Sendo assim, natureza aplicada aos elementos, para Tomás, é princípio ativo de movimento em vista de outrem e principium

formale, isto é, a potência passiva para a própria locomoção natural.

No documento Tomás de Aquino e a nova filosofia natural (páginas 117-122)