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2 O STATUS COMPLEXO DOS ANIMAIS NOS SISTEMAS

2.2 Estatuto moral dos animais (ou os seres moralmente consideráveis)

2.2.2 Tom Regan: o reconhecimento do valor inerente aos animais e o

Em 1983, o filósofo deontologista norte-americano Tom Regan publicou a obra The Case for Animal Rights, seu mais importante trabalho (REGAN, 2006, p. 88) em que desenvolve e sistematiza, ao longo de 425 páginas, sua teoria moral dos Direitos Animais. Autor prolífico (com mais de dez livros publicados), Regan escrevera, em 1976, a obra coletânea Animal Rights and Human Obligations, em coautoria com Peter Singer. Em 2004, Regan publicou Empty Cages: Facing the Challenge of Animal Rights, livro autobiográfico44 lançado

44 Tom Regan narrou, em sua obra autobiográfica Jaulas Vazias, que despertou para a Causa Animal após ler o livro de Mahatma Gandhi intitulado

Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade (REGAN,

no Brasil em 2006, com o título Jaulas Vazias: Encarando o desafio dos Direitos Animais45.

Tom Regan é considerado, ao lado de Peter Singer, um dos teóricos morais mais influentes na defesa animal. Seus fundamentos éticos normativos, contudo, apresentam diferenças. Enquanto Singer fundamenta-se em uma teoria teleológica (ou consequencialista), a qual compreende o Utilitarismo, que avalia as ações como corretas ou incorretas em razão de suas possíveis consequências/resultados, Regan embasa-se em uma teoria deontológica que se opõe ao consequencialismo por considerar que existem ações que serão corretas ou incorretas em si mesmas, independentemente de suas consequências. Um exemplo de ética deontológica (deón, dever, em grego) consiste na ética do dever cultivada pelo filósofo prussiano Immanuel Kant.

Não obstante a perspectiva de Regan ser kantiana, este propõe a ampliação do rol de indivíduos detentores de valor inerente (valor em si mesmo), visando a expandir os limites da comunidade moral humana para englobar seres de outras espécies.

Vale lembrar que, segundo Kant, somente seres humanos teriam valor inerente ou dignidade que os tornariam valiosos acima de todo preço (KANT, 1974, p. 234). Os outros animais, assim pensava Kant, somente possuiriam valor na medida em que servissem aos propósitos humanos (RACHELS, 2013, p. 146).

Regan irá ampliar noções essenciais da filosofia moral kantiana visando a romper a barreira da espécie humana, dizendo que os animais não humanos também são seres dotados de valor inerente e não mero valor instrumental, senão vejamos:

Se olharmos a questão com olhos imparciais, veremos um mundo transbordante de animais que são não apenas nossos parentes biológicos, como também nossos semelhantes psicológicos. Como nós, esses animais estão no mundo, conscientes do mundo e conscientes do que acontece com eles. E, como ocorre conosco, o que acontece com esses animais é importante para eles, quer alguém mais se preocupe com isto ou não. A despeito de nossas muitas diferenças, os seres humanos e os outros

45 Acerca do título da obra Jaulas Vazias, saliente-se que Regan é considerado um filósofo animalista de vertente abolicionista, e utiliza metaforicamente a frase: Temos de esvaziar as jaulas, não deixá-las maiores (REGAN, 2006, p. 75).

mamíferos são idênticos neste aspecto fundamental, crucial: nós e eles somos sujeitos- de-uma-vida (REGAN, 2006, p. 72).

Atribui-se a Regan a introdução do termo Direitos Animais no âmbito da Filosofia. Os animais podem ter direitos? Para Regan, os animais têm direitos morais básicos, incluindo o direito à liberdade, à integridade física e à vida. Em que consistiriam esses direitos morais? Regan fornece uma pista quando aproxima tal conceito à ideia dos Direitos Humanos – os direitos básicos reconhecidos a todos os seres humanos (REGAN, 2006, p. 45). Para ele:

A mesma teoria que fundamenta racionalmente os direitos dos animais também fundamenta os direitos humanos. Aqueles que estão envolvidos nos direitos dos animais são parceiros na luta para assegurar o respeito aos direitos humanos – os direitos das mulheres, por exemplo, das minoras ou dos trabalhadores. O movimento dos direitos dos animais é cortado no mesmo tecido moral dos direitos humanos (REGAN, 2013, p. 35).

Segundo Regan, o que tornam os seres humanos iguais, de modo relevante para possuírem direitos (humanos) básicos é o fato de eles serem sujeitos-de-uma-vida. A tais sujeitos, o reconhecimento de direitos morais conferiria, a um só tempo: a) uma proteção moral (mostrando a outros indivíduos que estes não são moralmente livres para tirar-lhe a vida ou ferir seu corpo como quisessem); b) um status moral (status este, que titulares de direitos morais possuiriam igualitariamente), c) um peso moral (conferiria um trunfo contra arbitrariedades, garantindo o respeito pelos direitos dos indivíduos); d) reivindicações morais (possibilitando-se exigir o tratamento justo devido); e) reparação a danos morais (por meio da assistência àqueles indivíduos cujos direitos foram violados); f) unidade moral (a ideia do respeito mútuo como um princípio que unificaria todas as características supracitadas) (REGAN, 2006, p. 47-51).

Conforme esclarece Felipe (2004), Regan julga a defesa dos direitos como a melhor saída/estratégia para se resolver a questão dos deveres diretos que humanos precisam ter em relação aos animais. Segundo Regan, a técnica da declaração de direitos tem aprimorado as relações entre humanos em condições desfavorecidas do ponto de vista

factual, mas semelhantes do ponto de vista de seu valor moral, e isso indica que se pode fazer o mesmo para garantir respeito aos animais.

Utilizando-se do conceito de direitos morais, criado pela cultura anglo-saxônica46, algo próximo de nossa teoria dos direitos personalíssimos, Regan reivindica o reconhecimento de direitos inatos a todo sujeito-de-uma-vida, direitos esses que não podem ser submetidos a cálculos utilitários ou a razões de oportunidade ou eficácia. Tais direitos morais seriam dotados das seguintes características: a) Universalidade (as pessoas de todas as nações possuem o mesmo direito à vida, que é válido para todos os indivíduos, independentemente de nacionalidade, raça, sexo, religião etc.); b) Igualdade (direitos morais são igualitários, pertencem a todos em igualdade de condições, independentemente das características particulares de cada indivíduo e, se uma pessoa tem direito à vida, todas as demais o têm em igualdade de condições); c) Inalienabilidade (os direitos morais como a vida, a liberdade e a integridade física não podem ser exercidos por outrem); d) Naturalidade (o valor e a dignidade das pessoas independem de atos ou decisões do direito positivo). Na verdade, direitos morais são determinadas liberdades básicas que constituem o núcleo duro dos direitos fundamentais, as denominadas liberdades básicas, como o direito à vida, à liberdade de locomoção e à integridade corporal, de modo que qualquer violação a esses direitos deve ser vista como uma afronta aos valores democráticos (GORDILHO, 2008, p. 73-74).

Para Regan, o que determina se os animais possuem direitos ou não, é o fato deles serem ou não, sujeitos-de-uma-vida (REGAN, 2006, p. 65) – neoconceito esse, fulcral para sua teoria moral dos Direitos Animais. Vê-se a inspiração de Regan nas ideias do teólogo, músico, filósofo e médico alemão Albert Schweitzer47, propositor da Ethic of

Reverence for Life (mais conhecida no Brasil como Ética do Respeito pela Vida).

46 Na cultura jurídica anglo-saxônica (por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra), adota-se o sistema da Common Law, diferentemente do Direito brasileiro, que adota o sistema da Civil Law. Enquanto naquele (Common Law), a principal fonte do Direito consiste em precedentes judiciais que vinculam as decisões judiciais futuras, neste (Civil Law), a principal fonte adotada é a lei escrita. Tendo-se essa diferenciação, vê-se que a noção de direitos morais (moral rights) trazida pelo filósofo americano Tom Regan, referir-se-ia a direitos reconhecidos independentemente da lei escrita (legal rights).

47 Na obra The Case for Animal Rights, Regan aborda tópico intitulado Valor

inerente e a reverência pela vida de Schweitzer (REGAN, 1983, p. 241-242,

O argumento principal da teoria de Regan para garantir direitos aos animais está no fato de que direitos humanos, os quais ele denomina de rights of the individual (direitos dos indivíduos, expressos basicamente como direito à vida, à liberdade e à integridade física) favoreceriam todos aqueles que são sujeitos-de-uma-vida. Nesse rol, explica Regan, estariam os seres não-humanos, que ostentam um valor inerente e são capazes de sofrer, como os humanos (MIGLIORE, 2012, p. 241-242).

Na obra The Case for Animal Rights, Regan define o conceito- chave de sujeito-de-uma-vida (subject-of-a-life), cujo sentido envolveria mais do que meramente ser/estar vivo e mais que meramente ser/estar consciente. Ser um sujeito-de-uma-vida, para Regan, é ser um indivíduo cuja vida apresentaria tais características:

[...] os indivíduos são sujeitos-de-uma-vida se tiverem vontades e desejos; percepção, memória e uma noção de futuro, incluindo seu próprio futuro; uma vida emocional por meio de sentimentos de prazer e dor; preferências e interesses relacionados ao próprio bem-estar; a capacidade de iniciar uma ação em busca de seus desejos e metas; uma identidade psicofísica ao longo do tempo; e um bem-estar individual no sentido de experimentar o que lhes faz bem ou mal, independentemente da sua utilidade para os outros e, logicamente, independentemente de serem objetos de interesses alheios. Aqueles que satisfizerem os critérios para serem considerados sujeito-de-uma-vida têm um valor distintivo – um valor inerente – e não podem ser vistos ou tratados como meros receptáculos (REGAN, 1983, p. 243, tradução nossa).

Bem se vê que o critério de Regan acabaria por excluir da consideração moral direta alguns animais que não preencham tais requisitos. A esse respeito, Regan afirma estar disposto a limitar suas conclusões aos casos menos controversos, quer dizer, aos mamíferos e pássaros. Segundo ele, são os direitos dos mamíferos e dos pássaros que defenderá, ao responder às objeções aos direitos animais (REGAN, 2006, p. 74).

Por outro lado, quanto aos outros animais que podem sentir dor, mas que não têm uma identidade psicológica a ponto de terem o direito

de serem tratados com respeito, Regan recorrerá à abordagem utilitarista, qual seja, de que não haveria justificativa moral para causar sofrimento a qualquer criatura se isso for desnecessário (NACONECY, 2014, p. 179).

O uso do termo abolicionismo, no âmbito da indústria de exploração animal, é um dos conceitos mais importantes da teoria reganeana. Felipe (2016) exalta a coragem de Tom Regan de ter utilizado tal termo há quase 40 anos, quando era extrema ousadia comparar humanos escravizados a animais escravizados:

O termo “abolição” não foi criado por Tom Regan, obviamente, mas foi usado por ele por primeiro e o fez por mais de vinte anos até aparecerem outros que o seguissem, incluindo a mim. Ele o tomou do movimento antiescravista, justamente por considerar que a escravização de humanos e a escravização dos animais têm o mesmo padrão de dominação, sem qualquer outra distinção a não ser quanto à natureza dos sujeitos vilipendiados: negros e animais não humanos (FELIPE, 2016).

Conforme esclarece Naconecy (2014, p. 179), Regan defende a eliminação total e categórica do uso de animais por parte da humanidade. Ele se afasta da posição utilitarista ao considerar que o que está essencialmente errado não é o sofrimento que infligimos aos animais. O sofrimento seria apenas um componente do erro moral (não obstante o torne ainda maior). O que está fundamentalmente errado é o sistema inteiro, e não seus detalhes. Pela mesma razão que mulheres não existem para servir aos homens, os pobres aos ricos, e os fracos aos fortes, os animais também não existem para nos servir.

Desde a década de 1970, Regan encorajou a luta pelos Direitos Animais e pela abolição do sistema moral que sustenta o sistema econômico de criação, escravização e abate de animais para propósitos humanos (FELIPE, 2016).

Na obra Jaulas Vazias, Regan sinalizou a resposta à crueldade institucionalizada presente nas granjas industriais e nos abatedouros:

Temos a obrigação [moral] de parar de comer corpos de animais (“carne”), assim como temos a obrigação de parar de comer “produtos animais”, como leite, queijo e ovos. A produção animal

comercial não é possível sem a violação do seu direito à vida. Mais fundamentalmente, a produção animal comercial viola o direito dos animais a serem tratados com respeito. Nunca há justificação para os nossos atos de ferir os corpos, limitar a liberdade ou tirar a vida dos animais por causa do benefício que nós, seres humanos, teremos com isso, mesmo na hipótese de que tenhamos mesmo (REGAN, 2006, p. 126). Ao denunciar a retórica do tratamento humanitário, do respeito ao bem-estar animal e do manejo sustentável (REGAN, 2006, p. 5), da qual se valem os porta-vozes da indústria de exploração animal (de carne, de pele, de entretenimento animal e pesquisa biomédica, por exemplo), Regan propôs o termo dito desconexo (disconnected dictum) sempre que se deparar com a frequente falta de conexão (incoerência) entre o que as grandes indústrias de exploração animal dizem fazer e o que elas fazem realmente (REGAN, 2006, p. 96).

Regan, um filósofo abolicionista animalista, utiliza metaforicamente (e didaticamente) a máxima: Temos de esvaziar as jaulas, não deixá-las maiores (REGAN, 2006, p. 75). Ao invés de simplesmente melhorar as condições de vida dos animais na agroindústria ou nos laboratórios, tornando as gaiolas maiores e mais limpas, Regan clama por gaiolas vazias – considerando impossível modificar um instituto injusto por meio de sua flexibilização (GORDILHO, 2008, p. 72).

Naconecy (2014, p. 182) ressalta que um foco estratégico voltado a resultados mais pragmáticos, entretanto, poderia tentar conciliar a ideia da abolição total do uso de animais (da concepção de direitos) com a do incremento de bem-estar dos animais (da concepção utilitarista). O mote seria: Gaiolas melhores a curto prazo acabarão por conduzir a gaiolas vazias a longo prazo. Tal estratégia [de defesa do bem-estar animal não como um fim em si mesmo] é a adotada por certos ativistas e ONGs de defesa animal.

Gary Francione, outro teórico abolicionista pelos Direitos Animais, o qual será apresentado a seguir, sustenta que inexiste evidência empírica de que a regulação da exploração animal conduza à abolição da sua exploração (FRANCIONE, 2013, p. 35).

A seguir, passa-se a abordar o tema do status jurídico dos animais não humanos.

2.3 Estatuto jurídico dos animais (coisa, sujeito ou nada disso)