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A suspensão de direitos daqueles realizados loucos bandidos e banidos em manicômios

judiciários é uma condição prevista pelo regime de controle biopolítico da loucura em nome

da segurança. Para Didier Fassin (2009), a biopolítica está ligada ao governo das populações,

compreendidas como uma comunidade de seres humanos. Nessa perspectiva, o estudo das

políticas da vida importa para entender a produção das desigualdades. Essas políticas atuam

na “vida como tal” (life as such), ou seja, “na vida que é vivida através de um corpo (não apenas

de células) e como uma sociedade (não apenas como espécie)” (Fassin, 2009, p. 48). A

“biopolítica não é apenas uma política da população, mas uma política da vida, que podemos

chamar de biodesigualdades”, disse Fassin (2009, p. 48). A biodesigualdade implica, portanto,

“não apenas a normalização das vidas, mas também a decisão sobre que tipos de pessoas

podem viver ou não” (Fassin, 2009, pp. 48-49).

O conceito de biolegitimidade diz respeito às políticas de sobrevivência — no sentido

de que todas as políticas da vida têm como horizonte uma política sobre a morte. Importa

para as políticas da vida saber quem é o indivíduo para conceder biolegitimidade a sua

sobrevivência. Em outras palavras, na biolegitimidade, não é do corpo biológico que se fala,

mas das desigualdades sobre a atribuição de legitimidade ao corpo sofredor — a qual não se

funda em direitos, mas em avaliações morais. O direito constitucional à sobrevivência em

liberdade após 30 anos de apartação, em teoria, valia também para Juvenal, mas, passados 45

anos, ele permanecia em clausura. O ofício enviado em 2002 pelo manicômio judiciário ao

juiz da Vara de Execuções Penais da capital justificou a clausura do louco bandido, mesmo

com a decisão judicial, treze anos antes, por sua liberdade:

embora tenha sido beneficiado com alvará de soltura, encontra-se recolhido nessa Unidade Psiquiátrica em razão de não possuir família que o receba.

Ofício do Manicômio Judiciário, 2002

É no enclausuramento da loucura perigosa que as políticas da vida atuam para, no

poder que movem a biopolítica para o governo da vida dos loucos bandidos. Através dessas

estratégias, os saberes decidem quem são os loucos perigosos, quais deverão permanecer no

manicômio e quais poderão sair. A atualização permanente da loucura e do perigo

deslegitima a vida desses sujeitos para o acesso ao direito fundamental de compartilhar a vida

fora dos muros com os não loucos. Nessa perspectiva, os manicômios judiciários se

transformam em espaços de exclusão e normalização. A história de apartação de Juvenal é um

acontecimento-limite: o louco autor do ato violento contra o irmão e banido na clausura do

manicômio foi metamorfoseado em louco sem capacidade para o cuidado de si, mas ainda

não normalizado.

As décadas de clausura transformaram o homem que cometeu um ato violento contra

o irmão, e que não se sabia se já era louco antes da apartação, em louco cronificado. Com a

decisão do poder psiquiátrico, a loucura realiza-se no interior do asilo; ao mesmo tempo, o

asilo, compreendido como instituição disciplinar e normalizadora, tem por efeito último a

supressão dos sintomas da loucura. O demente é o ideal do duplo funcionamento do poder

psiquiátrico que realiza a loucura e do asilo como instituição disciplinar que aplaina todas as

manifestações da loucura (Foucault, 2006b). Foucault conceitua o demente:

é aquele que não é nada mais do que a realidade da sua loucura; é aquele em quem a multiplicidade dos sintomas ou, ao contrário, seu nivelamento é tal que já não se pode assinalar especificação sintomática que lhe seria característica. O demente é, portanto, aquele que corresponde exatamente ao funcionamento da instituição asilar, já que por via da disciplina, todos os sintomas em sua especificação foram aplainados: não há mais manifestações, nem exteriorizações, nem crises. O demente corresponde ao que quer o poder psiquiátrico, já que realiza efetivamente a loucura como realidade individual no interior do asilo (2006b, p. 324).

Aproximo Juvenal da figura foucaultiana do demente. Na análise dos discursos de

saber e poder sobre Zefinha, Diniz e Brito (no prelo) mostraram que os peritos resistiam em

indisciplinas e sintomas da loucura que teimava em se acomodar. Juvenal foi feito demente

pela disciplina asilar (que deve suprimir ou controlar os sintomas da loucura) e pela marcação

do poder psiquiátrico-penal (que deve realizar o louco e sua loucura por meio do

internamento). A evolução demencial era apresentada pelos psiquiatras europeus do século 19

como um fenômeno natural da loucura, mas sobretudo um efeito do duplo entre o asilamento

e a realização da loucura pelo poder psiquiátrico (Foucault, 2006b). Em Juvenal, essa

evolução se assemelha à dos loucos em clausura na Europa do século 19: o louco bandido

torna-se apático, isolado, sem sintomas produtivos típicos dos manuais classificatórios de

doenças mentais para os transtornos psicóticos, como delírios ou alucinações. Mas a saída de

Juvenal do manicômio judiciário passa a ser condicionada pela transferência para outra

instância asilar, já que ele é avaliado, no último laudo psiquiátrico, como um louco que deve

ser submetido a tratamento psiquiátrico permanente e incapacitado para o cuidado de si.

A biopolítica não apenas trata da manutenção da vida, mas também tem “o poder de

promover a vida e proibi-la a ponto da morte”, disse Fassin numa releitura da famosa frase de

Foucault sobre a biopolítica fazer viver ou deixar morrer (2009, p. 53). Nesse sentido, compreendo

que os números do censo de indivíduos internados em manicômios judiciários, apresentados

por Debora Diniz (2013b), compreendem mais do que dados estatísticos: eles revelam a

precarização das existências gerada pela desigualdade do valor atribuído às vidas dos loucos

bandidos.19 O estudo da biopolítica pode revelar as políticas ligadas à produção de

desigualdades. No caso da população de indivíduos sequestrados em manicômios judiciários, a

biopolítica tem o poder de rejeitar ou excluir a vida por meio da clausura e da apartação a

ponto, se não da morte, da sobrevivência no abandono e desaparecimento.

19

Debora Diniz apresenta evidências seguras e desconcertantes sobre a “‘estrutura inercial’ do modelo psiquiátrico-penal no Brasil” (2013b, p. 19). Pelo menos um entre quatro indivíduos não deveria mais estar internado — porque tinha decisão judicial para desinternação, porque apresentava a periculosidade cessada, porque a medida de segurança estava extinta ou mesmo porque nem havia processo judicial que justificasse sua internação. Além disso, para um terço dos indivíduos (1.194 pessoas), não há como saber se a internação se justifica: a confecção dos laudos psiquiátricos e de cessação de periculosidade estava atrasada (Diniz, 2013b).