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Totalidades paralelas

No documento Ossian e o crepúsculo da epopeia (páginas 137-161)

A Dissertação de Hugh Blair e os paratextos assinados por Macpherson, cujos métodos expositivos buscamos recriar no capítulo anterior, encenam um persuasivo exercício de hermenêutica seletiva.1 Chancelam-se como épicas as longas narrativas ossiânicas por meio da conversão da antítese entre poema heroico primitivo e epopeia neoclássica em listagens imiscíveis de referenciais genéricos. Com efeito, estes se repartem em segmentos incomunicáveis, cada qual segundo uma lógica peculiar. Conforme demonstramos páginas atrás, secciona-se a discussão do “gênio e do espírito” de Ossian da análise “de acordo com as regras de Aristóteles”.2 Na

Dissertação, a transição é muito bem sinalizada, a barrar contaminação teórica:

“Depois dessas observações gerais sobre o gênio e o espírito de nosso autor, passo a um olhar mais detido e um exame mais preciso de suas obras”.3 Explicitamente, propõem-se alternativas interpretativas que estariam em pé de igualdade: a chave primitivista não impediria a chave neoclássica, nem vice-versa.4 A sugestão de que o

1 Dafydd Moore nos alerta para a tendência da crítica ossiânica em compartimentalizar as

referências mobilizadas nas traduções de Macpherson. Embora esse alerta seja formulado noutro contexto, ele orienta meu argumento neste item. Ver MOORE, Dafydd. “Heroic incoherence in James Macpherson’s The Poems of Ossian”. Eighteenth-century studies, v. 34, n. 1 (outono, 2000), p. 43-59, especialmente p. 51.

2

“[...] according to Aristotle’s rules” (BLAIR, Hugh. “A critical dissertation on the Poems of Ossian, the son of Fingal”. In: MACPHERSON, James. The poems of Ossian and related works. Ed. Howard Gaskill. Edimburgo: Edinburgh University, 1996, p. 358).

3 “After these general observations on the genius and spirit of our author, I now proceed to a nearer

view, and more accurate examination of his works” (idem, ibidem).

4

Macpherson, em suas anotações a Temora (cf. nossa discussão supra, p. 129-130), e Blair, na

Dissertação, chegariam a alegar que a poesia primitiva e o receituário aristotélico derivavam da mesma

fonte. Blair afirmaria que Aristóteles, “com grande sagacidade e perspicácia”, teria formulado suas regras a partir de Homero. E “[t]anto Homero quanto Ossian escreveram a partir da natureza” (“Homer and Ossian both wrote from nature”) (idem, ibidem). Esse mesmo argumento também se encontra em sua aula não publicada sobre os Poemas de Ossian (ver SUDO, Yoshiaki. “An unpublished lecture of

estético é uma função do histórico não se confunde com a postulação de um tipo universal. Igualmente, afirmações peremptórias sobre a veracidade das narrativas ignoram especulações sobre a sua dimensão alegórica. Coordenam-se, assim, séries sintáticas em paralelo. Por exemplo: com a representação de uma ação una obteríamos a inteligibilidade, requisito para a transmissão de um ensinamento moral. Ou, reversamente, o domínio da contingência se traduziria numa elocução imediata, que, por sua vez, levaria à eclosão da performance do eu. Idealmente, essas séries existiriam em planos diversos, cada qual a entabular um diálogo em particular com um nicho do debate setecentista sobre a poesia épica.

Talvez essa fosse a única maneira de se assegurar a Fingal e Temora o prestígio inerente à designação épica, que tanto orgulho patriótico suscitou entre os escoceses.5 Trata-se de uma estratégia que tem o mérito inegável de conferir ressonância a um experimento literário tão inovador quanto ambicioso. Possibilitava-se o estabelecimento de uma relação em que as traduções de Macpherson simultaneamente se identificavam com e diferenciavam das obras mais prestigiosas de então. No entanto, o resultado dessa operação é uma inequívoca simplificação das narrativas ossiânicas.

À distância, a desconstrução de Fingal e Temora nas convenções críticas e criativas manifestamente mobilizadas por Macpherson pode até denunciar a complexidade de seu arranjo formal. Se fossem lidas em conjunto, essas convenções inevitavelmente ressignificariam sua designação, “um poema épico antigo”. Dadas as múltiplas acepções evocadas para “poema”, “épico” e “antigo”, prenunciar-se-ia uma colcha de referências incompatíveis – e, o que é mais importante, haveria um hiato entre, de um lado, a uniformidade que tal designação genérica dá a entender e, de outro lado, a pluralidade de sentidos que ela efetivamente encerra. Contudo, dilui-se de maneira considerável essa tensão por meio do agenciamento alternado dos

Hugh Blair on the Poems of Ossian”. The Hiyoshi review of English studies, v. 25 (março, 1995), p. 160-94, especialmente p. 174).

5 Sobre como Blair e sua Dissertação silenciam o debate sobre a autenticidade de Ossian ao longo

da década de 1760, ver MOORE, Dafydd. “The reception of The Poems of Ossian in England and Scotland”. In: GASKILL, Howard (ed.). The reception of Ossian in Europe. Londres: Continuum, 2004, p. 21-39, especialmente p. 27-28. Sobre a maneira como a conciliação empreendida nos épicos ossiânicos balizou a sua recepção, ver PITTOCK, Murray. Scottish and Irish romanticism. Oxford: Oxford University, 2008, p. 73.

protocolos à recepção dos ditos épicos ossiânicos.6 De modo sutil, evade-se a contradição fundamental entre o que o tradutor chama de uma “narrativa histórica”, governada pelas leis da Fortuna, e uma “narrativa poética”, organizada sob a premissa da unidade da ação.7 A título ilustrativo, detenhamo-nos numa passagem de Temora. Com seu propósito declarado de reescrever a história da Irlanda e de “sua antiga conexão com o norte e o sul da Grã-Bretanha”,8 Temora revolve em torno de rememorações das campanhas militares dos escoceses em Erin, seja para fins de colonização, seja para subjugar movimentos insurgentes das tribos do sul, os Fir-bolg. Algumas vezes, essas rememorações parecem diretamente ligadas à sensibilidade primitiva. No “Livro Segundo”, Fillan e o Ossian-personagem conversam enquanto o exército de Cathmor se aproxima. O irmão mais moço reclama seu direito à glória. Dentre os jovens, só Oscar lhe seria superior. Ante a menção ao filho que acabara de morrer, Ossian pergunta em tom plangente: “Por quê, Fillan, falaste de Oscar, para fazer surgir o meu suspiro?”9 Caberia aos pais esquecerem dos mortos enquanto persiste o combate. Como exemplo, relata como Conar, “o filho da flumínea Morven” que unificara Erin sob seu cetro,10 só fora chorar a morte de seu filho, Colgar, depois de vencer os Fir-bolg:

Seu túmulo foi erguido sem uma lágrima sequer. O rei vingaria seu filho. — Relampeou na batalha, até que Bolga se rendesse em seus riachos.

Quando a paz voltou à terra, e suas ondas azuis levaram o rei a Morven: então ele se lembrou de seu filho e verteu a lágrima silenciosa.11

Em sua profusão, o discurso emocional contrabandeia a sugestão de que os irlandeses descendem dos caledônios. O derramamento primitivo é, todavia, requalificado por uma nota assinada pelo editor. Nessa nota, classifica-se o excurso como um “episódio”, o qual fluiria naturalmente do diálogo dos irmãos e para o qual, em

6

Essas observações são informadas a partir da discussão em BENNETT, Tony. “The sociology of genres: a critique”. Outside literature. Londres – Nova Iorque: Routledge, 1990, p. 78-114, especialmente p. 81 e 108-109.

7 Ver MACPHERSON, James. “Temora: an epic poem”. The poems of Ossian and related works

cit., p. 519, nota 31.

8 “[...] its connection of old with the south and north of Britain [...]” (MACPHERSON, James. “A

dissertation”. The poems of Ossian and related works cit., p. 215). Ver também supra, p. 87 e 132.

9

“Why, Fillan, didst thou speak of Oscar, to call forth my sigh?” (MACPHERSON, James. “Temora: an epic poem”. The poems of Ossian and related works cit., p. 207).

10

“[...] the son of streamy Morven” (idem, p. 238). Tal passagem foi citada supra, p. 132.

11 “His tomb was raised, without a tear. The king was to revenge his son.—He lightened forward in

battle, till Bolga yielded at her streams. When peace returned to the land, and his blue waves bore the king to Morven: then he remembered his son, and poured the silent tear” (idem, ibidem).

insinuação alegórica, “o poeta tinha um desígnio maior em mente”.12 A disjunção entre o comentário e o entrecho ficcional desvanece-se num sistema de totalidades paralelas.

Previsivelmente, observa-se a reprodução desse sistema na fortuna crítica imediata a Fingal e Temora.13 Num extremo, encontra-se o arremate da resenha de Tobias Smollett sobre o primeiro épico ossiânico, 14 apresentado como a corporificação de um tipo ideal. A maneira abstrata como se concebe o gênero literário permite até mesmo uma argumentação silogística:

[...] se a epopeia foi uma espécie de poesia instituída para celebrar as ações dos heróis, para que o ouvinte seja animado pelo exemplo de seus ancestrais; ou, se foi planejada para aperfeiçoar o coração, além de confortar a imaginação, ao comunicar as melhores lições de moralidade, no deleitoso veículo da expressão poética; e se se toma a obra como perfeita quando essas intenções são eficazmente preenchidas e satisfeitas, ousaremos declarar Fingal um poema épico perfeito – e, como tal, recomendá-lo à atenção do público.15

A epopeia seria uma instituição cujo plano (ou planejamento) é usado como medida da perfeição de uma obra. Só se lhe atribui “eficazmente” o qualificativo de épico caso se preencham ou satisfaçam os diversos requisitos do gênero. E mais: conforme indica o vocabulário empregado, conjuga-se a ação heroica ao ensinamento moral, sob a roupagem do preceito horaciano de deleitar para instruir. A poesia é “veículo” para “comunicar as melhores lições de moralidade”. No polo oposto à resenha de Smollett, estão as Critical observations on the writings of the most celebrated original

geniuses in poetry, de William Duff. Publicadas em 1770, contêm talvez uma das

últimas análises, na Grã-Bretanha, dos escritos ossiânicos que ignoram

12 “[...] the poet had a farther design in view” (idem, p. 488, nota 13).

13 Para Dafydd Moore, virtualmente toda a crítica aos Poemas de Ossian reproduz a tensão entre as

noções neoclássica e primitivista da epopeia (ver MOORE, Dafydd. Enlightenment and romance in

James Macpherson’s The Poems of Ossian: myth, genre and cultural change. Aldershot: Ashgate,

2003, p. 5).

14 Ver a discussão sobre a recepção de Smollett a Ossian supra, p. 24-25.

15 “[...] if the Epopœa was a species of poetry, instituted to celebrate the actions of heroes, that the

hearer might be animated by the example of his ancestors; or if it was intended to improve the heart as well as to soothe the imagination, by conveying the best lessons of morality, in the delightful vehicle of poetical expression; and if the work is allowed to be perfect, when this intentions are effectually answered or fulfilled, we will venture to pronounce Fingal a perfect Epic poem, and as such recommend it to the attention of the public” ([SMOLLETT, Tobias]. “Article VII”. “The critical review for the month of January, 1762”. The critical review: or, Annals of literature. Londres, 1762, v. 13, p. 45-53, especialmente p. 53). Sobre a argumentação silogística de Smollett, ver MOORE, Dafydd. “The reception of The Poems of Ossian in England and Scotland” cit., p. 26. Moore argumenta, no entanto, que a resenha de Smollett é orientada precipuamente por simpatias patrióticas. Sem discordar dessa observação, parece-me claro que o entusiasmo de Smollett também deriva da maneira como Fingal satisfaz as noções tradicionais (i. e., neoclássicas) sobre a condução de uma epopeia.

questionamentos quanto à sua autenticidade.16 Promove-se, como sinaliza o título, uma discussão orientada pelo conceito de gênio natural; e, como não poderia deixar de ser, os juízos literários se confundem com a apreciação do contexto histórico em que teriam surgido as composições a que se referem tais juízos. A abordagem proposta se justifica porque “os incidentes que encontramos nos poemas de Ossian são reais” e “os caracteres humanos neles exibidos são copiados da vida, ao invés de [serem] inventados”.17 Os elementos que fazem heroica uma obra são dados pelo ambiente e, por isso, precederiam o momento de composição propriamente dito. Tivesse Ossian “escrito vinte poemas épicos, eles decerto seriam dignificados com os mesmos caracteres e preenchidos com os mesmos incidentes”.18 As atenções se voltam, portanto, para a figura do gênio “detentor de uma sensibilidade extraordinária”, canal por que se comunicam as condicionantes históricas. Ossian é autor, personagem e narrador, e Duff lida com sua representação – que toma como apresentação – como se estivesse diante de um ser de carne e osso, devotando-lhe admiração, piedade e simpatia:

O retrato que Ossian traça de si mesmo é, de fato, uma obra-prima. Ele não aparece apenas na condição de um guerreiro condecorado, tão generoso quanto bravo, e detentor de uma sensibilidade extraordinária, mas [também] na de um velho bardo venerável, sujeitado às mais melancólicas vicissitudes da fortuna, fraco e cego: o único sobrevivente de sua família, o último da raça de Fingal. Reunidas, todas essas circunstâncias tornam sua situação profundamente comovente. É impossível para alguém dotado do mais ínfimo sentimento ler a história que conta de suas desventuras sem se condoer ternamente e, em certa medida, delas participar.19

A voz do gênio natural, tão sujeita “às mais melancólicas vicissitudes da fortuna”, prescinde dos requisitos elencados por Smollett, ante os quais se toma “a obra como perfeita”. Seu efeito estético, com que se alcança a condição de “obra-prima”, é

16 Idem, p. 28-29. 17

Trecho integral: “[...] the incidents we meet in the poems of Ossian are real, not fictitious, and [...] the human characters exibited in these are copied from life, rather than created” (DUFF, William.

Critical observations on the writings of the most celebrated original geniuses in poetry. Being a sequel

to the Essay on original genius. Londres, 1770, p. 78).

18

“Had he written twenty epic poems, they must have been dignified with the same characters, and filled up with similar incidents” (idem, p. 72).

19

“The portrait which Ossian has drawn of himself, is indeed a master-piece. He not only appears in the light of a distinguished warriour, generous as well as brave, and possessed of exquisite sensibility, but of an aged venerable bard, subjected to the most melancholy vicissitudes of fortune, weak, and blind; the sole survivor of his family, the last of the race of Fingal. All these circumstances united, render his situation deeply affecting; and it is impossible for one who has the least feeling, to read the history which he gives of his misfortunes, without tenderly commiserating, and in some measure participating them” (idem, p. 82).

obtido pelo “retrato que Ossian faz de si mesmo”, nele enfeixando “circunstâncias” que, “reunidas”, “tornam sua situação profundamente comovente” para os leitores dotados até “do mais ínfimo sentimento”.

Concorrentes, cada uma das leituras estanca a épica ossiânica numa soma coesa de categorias estáticas, em que a postulação ou do neoclássico ou do primitivo precede o próprio texto.20 Eliminam-se dissonâncias construtivas por meio da renúncia de qualquer tentativa de formular essas categorias a partir do texto – e entender como se sedimentam, também no texto, num processo de determinação recíproca: indissociáveis entre si e do que se chama de estrutura da obra. 21 Uma passagem como a seguinte, de Fingal –

Muitas foram as mortes sob meu braço; e funesto era o fulgor de minha espada. Minhas madeixas ainda não eram tão cinzentas. Meus olhos ainda não se haviam cerrado na escuridão, nem meus pés falhado na corrida.22

–, é frequentemente identificada com o discurso primitivista, em que um narrador subjetivado não consegue refrear suas emoções: o eixo temporal de Ossian, presentificado, sobrepor-se-ia àquele do campo de experiência das personagens, que ordena os eventos vivenciados pelos heróis.23 Há que se notar, entretanto, que essa

20 Até o final deste item, nossa tentativa de capturar a unidade dialética dos ditos épicos ossiânicos

se orienta pela discussão marxista da economia política, em que se desenvolve um método para que, ao longo da análise, identidade e diferença sejam mantidas simultaneamente diante de nossos olhos (Ver MARX, Karl. “Introdução”. Grundrisse. Trad. Mario Duayer; Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo – Rio de Janeiro: UFRJ, 2011, p. 39-64, especialmente p. 54 e ss.). Para um estudo sobre o método de Marx, ver: MUSTO, Marcello. “History, production and method in the 1857 ‘Introduction’”. In: MUSTO, Marcello (ed.) Karl Marx’s Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150 years later. Londres – Nova Iorque, 2008, p. 3-32 e, principalmente, HALL, Stuart. “Marx’s notes on method: a ‘reading’ of the ‘1857 Introduction’”. Cultural Studies, v. 17, n. 2 (2003), p. 113-149. Acompanhamos também as aplicações desse método à literatura feitas por: WILLIAMS, Raymond.

Marxism and literature. Oxford – Nova Iorque: Oxford University, 1977 (reimpr. 2009), p. 88-89 e,

sobretudo, McKEON, Michael. The origins of the English novel, 1600-1740. Baltimore: Johns Hopkins University, 1987, p. 1-22, especialmente p. 15 e ss.

21 Ainda hoje, muitos dos estudos ossiânicos mais importantes parecem incorrer nesse tipo de

armadilha (ver, por exemplo, BYSVEEN, Josef. Epic tradition and innovation in James Macpherson’s Fingal. Uppsala: Acta Universitatis Upsaliensis, 1982, passim). Talvez esse seja um reflexo das intermináveis discussões sobre a autenticidade das traduções de Macpherson.

22 “Many were the deaths of my arm; and dismal was the gleam of my sword. My locks were not

then so gray; nor trembled my hands of age. My eyes were not closed in darkness; nor failed my feet in the race” (MACPHERSON, James. “Fingal: an epic poem”. The Poems of Ossian and related works cit., p. 77).

23 Nossa análise do tempo ficcional se vale de algumas categorias delineadas por HAMBURGER,

Käte. A lógica da criação literária. Trad. Margot P. Malnic. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 44- 57. Sobre o esvaziamento da temporalidade do epos em Ossian, ver DUNCAN, Ian. “The pathos of abstraction: Adam Smith, Ossian, and Samuel Johnson”. In: DAVIS, Leith; DUNCAN, Ian; SORENSEN, Janet (ed.). Scotland and the borders of romanticism. Cambridge: Cambridge University, 2004, p. 38-56, especialmente p. 47.

inflexão subjetiva encontra-se atada à lógica do enredo, que, lembremo-nos, é organizado segundo o modelo virgiliano. O trecho citado pertence ao “Livro III” do primeiro épico ossiânico, ponto em que os escoceses desembarcam em Erin, para irmanarem-se às tropas de Cuchullin contra os invasores vindos de Lochlin. Antes da entrada em cena dos guerreiros de Morven, mantinham-se onisciência e objetividade,24 a despeito da introdução de alguns episódios amorosos. No momento de retorsão e saneamento épico da narrativa,25 com que Swaran será vencido e restabelecer-se-á a paz na Irlanda, o narrador assume a persona de Ossian, que expressa as saudades de seus dias de glória. O mesmo movimento que nos permite vislumbrar Fingal como uma epopeia neoclássica prefigura uma irrupção discursiva,26 atribuída à poética selvagem, com que se descontinua a intelecção do arranjo genérico herdado da tradição. A voz do narrador se subjetiva quando o universo evocado se torna plenamente inteligível e codificado. Ossian se torna “ossiânico” à proporção que se evidencia a distância entre seu presente de velhice e solidão e o ideal do herói épico (sublinhado por citações ao cânone), que testemunhara em sua juventude. A objetividade associada à epopeia é modulada pelo lamento de alguém que se vê e sente perpetuamente aquém de um parâmetro inatingível: “Muitas vezes lutei e muitas vezes venci na batalha da lança. Mas, cego, choroso e esquecido, agora caminho entre homens inferiores”.27 Por outro lado, nem todas as intromissões da persona ossiânica obstam a cristalização de um arranjo genérico convencional. Pelo contrário: o narrador em primeira pessoa desponta como engrenagem imprescindível para a consecução de uma ação unitária. A liberdade tida como ínsita a seu modo presentacional naturaliza ou suaviza o manejo de analepses e prolepses, das quais tanto depende a dita “ordem artificial”.28 No “Livro IV” de Fingal, pouco antes do confronto derradeiro, suspende-se a narrativa e muda-se do passado do “som da batalha” para o presente da “donzela de braços nevados”. Ossian (narrador ou autor?) apostrofa sua nora, Malvina, para perguntar-lhe por que chora. Adianta-lhe que os escoceses triunfarão e que Oscar voltará para casa:

24 Ver MADELÉNAT, Daniel. L’épopée. Paris: PUF, 1986, p. 24. 25 Cf. a discussão supra, p. 115-116.

26

Da oposição entre récit e discours (cf. BENVENISTE, Émile. “Les relations de temps dans le verbe français”. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966, t. I, p. 237-250).

27 “Often have I fought, and often won in battles of the spear. But blind, and tearful, and forlorn I

now walk with little men” (MACPHERSON, James. “Fingal: an epic poem”. The Poems of Ossian and

related works cit., p. 79) 28 Cf. supra, p. 49 e 110.

Esse era o som da batalha, donzela de braços nevados. Por que essa lágrima, criança das colinas? As donzelas de Lochlin têm por que chorar. A gente de sua terra tombou, pois sanguinário era o aço azul da raça de meus heróis.29

Analogamente, o diálogo de Fingal e Carril, nas últimas páginas do primeiro épico ossiânico, parece fechar sua ação ou enredo. Emissário de Cuchullin, Carril avisa o rei de Morven que seu chefe se retirara para “a lúgubre caverna de Tura”,

No documento Ossian e o crepúsculo da epopeia (páginas 137-161)

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