• Nenhum resultado encontrado

I. Relatório de estágio – Casuística

2. Casuística por área clínica

2.2. Clínica Médica

2.2.17. Toxicologia

A toxicologia possui 11 casos, apenas um ocorreu num felídeo devido à intoxicação por permetrinas, conforme se verifica no quadro 18. A ingestão de dicumarínicos apresenta maior representatividade e, portanto, irá ser abordada numa pequena revisão bibliográfica.

Quadro 18 - Distribuição dos casos acompanhados na área da toxicologia (Frequência relativa à espécie (Fip), Frequência absoluta (Fi), Frequência relativa (Fr %), n=11)

Tóxico Fip canídeos Fip felídeos Fi Fr (%)

Dicumarínico 6 - 6 54,5 Estupefaciente 1 - 1 9,1 Metaldeído 1 - 1 9,1 Paracetamol 1 - 1 9,1 Permetrina - 1 1 9,1 Processionária 1 - 1 9,1 Total 10 1 11 100

Na clínica de animais de companhia a ingestão de dicumarínicos, vulgarmente designados rodenticidas ou veneno de ratos, apresenta maior prevalência nos jovens e canídeos. Após serem ingeridos, diretamente ou pelo consumo de um roedor envenenado, são absorvidos e ligam-se às proteínas plasmáticas permanecendo inativos até à sua chegada ao fígado onde ocorre a sua metabolização. Os metabolitos ligam-se à enzima epóxido reductase impedindo a redução da vitamina K, ou seja, a sua ativação. Deste modo, a vitamina K fica incapaz de permitir que os fatores de coagulação II, VII, IX e X se liguem ao cálcio (Goff, 2015d; Murphy, 2016; Norkus, 2019).

Os rodenticidas possuem duas gerações, diferenciando-se pelo tempo que permanecem no fígado antes da sua excreção. Desta forma, a primeira geração é constituída pela warfarina, cumarina, cumatetralilo, pindone, difacinona e clorofacinona que afetam a cascata de coagulação, em média, sete a dez dias, enquanto o brodifacume, a bromadiolona, a difetialona, o difenacume e o flocoumafeno, pertencentes à segunda geração, são mais tóxicos, visto que afectam-na por três a quatro semanas. Além da toxicidade variar com o agente, também pode ser exacerbada por outros fatores como a idade, doença renal ou hepática concomitantes e a espécie. A este respeito, os felinos são normalmente mais resistentes. A administração simultânea de fármacos como as sulfonamidas e fenilbutazona são responsáveis por toxicoses,

42

pois ligam-se fortemente às proteínas plasmáticas mantendo o rodenticida livre em circulação (Murphy, 2016; Norkus, 2019).

O animal apresenta primariamente dispneia, taquipneia, tosse e intolerância ao exercício, e dois a três dias após a ingestão do rodenticida desenvolvem-se as diáteses hemorrágicas. As hemorragias afetam os vários sistemas, desde o sistema gastrointestinal, respiratório com hemorragia pulmonar e hemotórax, urinário, músculo-esquelético, oftálmico e sistema nervoso central. A compressão do encéfalo ou medula espinhal pela hemorragia é responsável por ataxia, tetraparésia e convulsões. Caso o animal esteja gestante a hemorragia da placenta pode provocar aborto (Griggs et al., 2016; Murphy, 2016).

A associação da anamnese, sinais clínicos e aumento dos tempos de coagulação, nomeadamente do tempo de protrombina (PT) e o tempo parcial da tromboplastina ativada (aPTT) permitem o diagnóstico. O PT, pela semi-vida curta do fator VII, é um indicador mais precoce que a aPTT. Existem outros exames complementares alternativos utilizados em associação ou não com os parêmetros referidos anteriormente, como o hemograma, que demonstra inicialmente anemia não regenerativa e trombocitopénia, avaliação dos produtos resultantes da degradação da fibrina, as proteínas induzidas pela ausência da vitamina K (PIVKA) e o tempo de ativação da coagulação (ACT) - método semelhante à aPTT, porém menos sensível. A realização de uma radiografia torácica é essencial para detetar efusão pleural, pericárdica ou hemorragia pulmonar. No caso de se verificar alguma destas situações associada a dispneia e cianose é essencial realizar-se toracocentese (BSA; Murphy, 2016; Norkus, 2019). O tratamento varia consoante o tempo decorrido após a ingestão do rodenticida. Se foi recente deve-se induzir a emese ou proceder a lavagem gástrica quando o vómito não for possível, seguindo-se a administração de carvão ativado. Porém, na presença de sinais clínicos ou alteração dos tempos de coagulação a emese é inútil, mas o carvão ativado continua a ser recomendado por diminuir o risco de recirculação enterohepática dos dicumarínicos mais duradouros, ou seja, os de segunda geração. De seguida, administrar vitamina K1 em todos os pacientes com coagulopatias e aumento da PT. A via oral é a aconselhada, mas até estabilização do vómito utiliza-se a via subcutânea, uma vez que a intramuscular não é recomendável pelo risco de hemorragia muscular e a endovenosa devido à possibilidade de desenvolvimento de reações anafiláticas. No entanto, apesar deste inconveniente poder ser contornado pela diluição de 1:1 com solução salina e administração prolongada por aproximadamente 30 minutos, não é comumente utilizado por ser pouco prático. A duração da terapêutica é variável consoante a geração do rodenticida, nos da primeira geração varia entre cinco dias a seis semanas enquanto nos da segunda geração entre três a quatro semanas (Proulx & Otto, 2012; Murphy, 2016; Norkus, 2019).

Há fatores importantes a ter em conta, nomeadamente a restrição do exercício, devido ao aumento do risco de hemorragia, e dietas com elevado teor proteíco e lipídico, pois são

43

benéficas para a formação de fatores de coagulação e absorção da vitamina K, respetivamente. Os procedimentos cirúrgicos, a cistocentese, o stress e o trauma têm de ser evitados mesmo que os parâmetros de coagulação estejam dentro dos valores normais (Proulx & Otto, 2012; Murphy, 2016; Norkus, 2019). A vitamina K restaura de forma imediata a normalidade da cascata de coagulação, mas apenas 12 a 24 horas após a sua administração, pelo que as transfusões de plasma para reposição dos fatores de coagulação ou de eritrócitos para melhorar a oxigenação dos tecidos são benéficas (Norkus, 2019). Caso haja crias, a terapêutica terá de ser aplicada pelo mesmo tempo profilaticamente. Apesar de não estar comprovado em animais, a excreção de warfarin através do leite está confirmado nos humanos (Murphy, 2016).

Nas 48 a 72 horas subsequentes ao término do tratamento, deve reavaliar-se os tempos de coagulação, especialmente a PT. Se estes continuarem alterados, é necessário prolongar-se a administração de vitamina K por mais uma a duas semanas (Murphy, 2016).

O prognóstico normalmente é excelente com recurso a terapêutica adequada, tanto para animais cujo vómito foi induzido imediatamente como para os com sintomatologia clínica. Na presença de hemorragia pulmonar, cerebral, intracanial ou espinal o prognóstico é reservado (Proulx & Otto, 2012).

No documento Clínica e cirurgia de animais de companhia (páginas 56-58)

Documentos relacionados