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1.2 Tráfico de Drogas, Cidade e Nova História

1.2.2 Tráfico de Drogas: o que diz a Lei?

Desde que a sociedade instituiu-se inseparável democracia e Estado de direito, a lei intensificou-se ainda mais. Para Agamben (2007, p. 37), a lei, “a soberania da lei se situa, de fato, em uma dimensão tão obscura e ambígua, que justamente a propósito disto se pôde falar com razão de um “enigma””. Consoante o autor, ‘enigma’ no sentido de uma excelência antitética entre violência e justiça, do grego, respectivamente, o significado de Bia e Dike. Para Aristóteles, segundo Agamben (2007, p. 37), enigma expressa a “conjunção de opostos”33.

Desse modo, a ‘lei’ será vista como problemática moderna no campo das ciências jurídicas. Traremos para o trabalho partes da lei sobre o tráfico e comentários de juristas com o intuito de verificar o instituído no cenário penal. Passaremos a considerar a legislação penal brasileira, reguladora e normativa ao crime de tráfico de drogas, em caráter de penalidade, levando em consideração a data do fato delituoso do crime e a datação do trâmite do processo

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“O “realismo” exprime a disponibilidade de uma população de palavras relativas a fatos particulares [...]” (DE CERTEAU, 2008, p. 52).

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“O vocabulário do “real” integra o material verbal suscetível de ser organizado no enunciado de um pensável ou de um pensado [...]” (DE CERTEAU, 2008, p. 52).

“Deste ponto de vista, é possível dizer que “o signo da História é de agora em diante menos o real do que o intelígivel (BARTHES apud DE CERTEAU, 2008, p. 53)”. Mas não qualquer inteligível. “A supressão da

narrativa na ciência histórica atual” atesta a prioridade concedida, por esta ciência, às condições nas quais elabora o “pensável” (este é o sentido de todo o movimento “estruturalista”). E esta análise, que versa sobre os métodos, quer dizer, sobre a produção do sentido, é indissociável, em história, do seu lugar e de um objeto: o lugar é, através dos procedimentos, o ato presente desta produção e a situação que hoje o torna possível,

determinando-o; o objeto, são as condições nas quais tal ou qual sociedade deu a si mesma um sentido através de

um trabalho que é também ele, determinado. A história não é uma crítica epistemológica. Ela permanece um relato. Conta seu prórpio trabalho e, simultaneamente, o trabalho legível num passado. Não o compreende, no entanto, a não ser elucidando sua própria atividade produtiva e, reciprocamente, compreende-se a si mesma no conjunto e na sucessão de produções das quais ela própria é um efeito” (DE CERTEAU, 2008, p. 53).

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penal aqui selecionado como corpus desta pesquisa. Segundo o processo penal, o crime ocorreu em 18 de novembro de 2003 data em que se iniciou a tramitação judicial, dada a prisão em flagrante dos acusados (consoante a Homologação do Auto), e o julgamento em 12 de maio de 2005.

Em razão do modelo democrático representativo da atual situação da República Brasileira, trataremos de Direito Penal condicionado à sua realidade e à singularidade processual. Logo, esse condicionamento é constatação importante ao Direito e ao Poder Judiciário hoje. Marcão34 (2003, p.1) afirma que “não nos parece, todavia, que a legislação recente tem pautado pela vontade geral, que partindo do conhecimento empírico reclama, não é de agora, punições mais severas ao crime de tráfico de entorpecentes”. Para ele, “passadas quase três décadas, a realidade de hoje não é a mesma que se constatava quando do advento da Lei 6.368/76”.

Em “discussão sobre a constitucionalidade do regime integral fechado”, é vigente o artigo 12 da Lei 6.368/76, em que o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é punido com reclusão, de 03 (três) a 15 (quinze) anos, e multa. É vedada, em certos casos, a progressão de regime prisional. Essa questão, polemizada no cenário jurídico e legislativo, teve vozes e corpos em defesa da necessidade de progressão de regime em se tratando de crimes hediondos e assemelhados, pretendendo a modificação da Lei e dado abrandamento nela. Mas a tese não foi liberalizadora (MARCÃO, 2003, p. 2).

O tráfico de drogas sendo crime punido com 03 (três) anos, no mínimo, de reclusão, “foi o que bastou para se instalar nova confusão”:

Quando se imaginava aquietada a questão e ultrapassadas as investidas benevolentes com o crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins, surge a Lei 9.714/98, a denominada "Lei de Penas Alternativas", que ampliou a possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos em substituição às privativas de liberdade não superiores a 04 (quatro) anos, atendidos os demais requisitos estabelecidos (MARCÃO, 2003, p. 2).

Assim, diversos acórdãos afirmaram

a simples alegação de ser o crime hediondo não obsta a substituição da pena. Se o legislador não fez qualquer restrição nesse sentido, não cabe ao intérprete fazê-la. Preenchidos os requisitos legais objetivos e subjetivos, previstos no art. 44 do CP [Código Penal], com as alterações da Lei n.º 9.714/98, nenhum impedimento existe para que a pena privativa de liberdade, no caso de crime de tráfico, seja substituída por restritiva de direitos (MARCÃO, 2001, apud MARCÃO, 2003, p. 3).

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O autor considera certa tendência de flexibilização jurídica ao apontar em uma rápida análise em algumas leis e projetos ligados ao tema, elaboradas e propostas no passado recente.

Não obstante, outra vez prevaleceu a tese “de origem”, sendo a mais rígida e a mais adequada para com a especificidade dessa criminologia. Logo, fortificara-se o tráfico de entorpecentes como crime hediondo, cuja pena deve ser cumprida de forma integral no regime fechado, sem vir a beneficiar traficantes. Tudo relacionado com produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica é prática de crime.

Na opinião do autor supracitado, no Brasil, nos processos penais tráfico de drogas e/ou do Direito Penal

têm sido constantes as investidas e mudanças legislativas benevolentes com o crime de tráfico de entorpecentes, a permitir, juridicamente, interpretações contrárias aos interesses de toda a sociedade ordeira, quando o necessário seria enrijecer o tratamento penal dispensado ao comércio espúrio de substâncias entorpecentes e drogas afins (MARCÃO, 2003, p. 7).

A questão acima, apontada por Marcão, revela muito a interpretação e a prática de jurisprudência. A fidelidade à norma jurídica depende da leitura-interpretação daqueles que se envolvem em cada processo ou prática jurídica penal. Dessa perspectiva:

Nem a hermenêutica nem tampouco a teoria do discurso devem suportar essa dicotomia de espécies normativas e, sim, alardear uma mudança no paradigma da interpretação como um todo, pois fora de uma visão em torno da ponderação de valores, qual a utilidade de separar regras e princípios nos parâmetros atuais de nossa racionalidade? Negar uma distinção ontológica entre as espécies normativas implicaria a quadra atual do pensamento jurídico um retrocesso ao positivismo? Cremos sinceramente que não, eis que o essencial é construir uma ‘argumentação de princípios’, ou seja, calcada na filosofia da linguagem, concretista e aberta, livre, pois, dos padrões formalistas e subsuntivos do positivismo e da filosofia da consciência (SOUZA CRUZ, 2007, p.70-1).

A mudança no paradigma interpretativo, em que o autor alerta, é para dois aspectos centrais, a da norma e a da razão. Dois pontos principais para argumentos, defesas, acusações e sentenças. Ainda que se admita, por muitos profissionais do direito, não haver diferenças entre as espécies normativas, alguns, porém, afirmam a necessidade de envidar esforços para a aplicabilidade e a efetividade das normas, sem conflitá-las, razão relevante à delimitação dos critérios estabelecidos já em Códigos, Constituição, etc., e a não contradição em práticas processuais.

Finaliza Marcão (2003, p.8):

do conjunto, resulta evidente a necessidade de se rever tais práticas legislativas, para que, em homenagem à democracia representativa e ao verdadeiro espírito e fundamento da Lei seja possível, um dia, impor penas mais severas aos traficantes.

Para ele, no direito penal brasileiro,

além da desproporção punitiva existente entre o mal social produzido direta e indiretamente pelo tráfico de entorpecentes e drogas afins, não se cogitou no passado recente, em termos legislativos, o necessário aumento quantitativo das penas. Não se acenou, com firmeza, para o recrudescimento penal (MARCÃO, 2003, p.8).

A fim de entendermos a posição recentemente vista sobre a necessidade de agravar penas, considerando a prática-crime de uso e tráfico de drogas no nosso país, diferentemente de benevoleá-las, a seguir veremos alguns relatos de pessoas e famílias envolvidas na lamentável realidade que aumentara consideravelmente nas últimas décadas do século XX e tem se agravado nesse início de novo milênio.