Os mitos que acabamos de examinar são transmitidos e perpetuados em nossa sociedade, cada um deles em grau maior ou menor; por um mecanismo que podemos chamar de círculo vicioso do preconceito lingüístico. Esse circulo vicioso se forma pela união de três elementos que, sem desrespeitar meus amigos teólogos, costumo denominar “santíssima Trindade” do preconceito lingüístico. Esses três elementos são a gramática tradicional, os métodos tradicionais de ensino e os livros didáticos.
Como é que se forma esse círculo? Assim: a gramática tradicional inspira a prática de ensino, que por sua vez provoca o surgimento da indústria do livro didático, cujos autores — fechando o círculo — recorrem à gramática tradicional como fonte de concepções e teorias sobre a língua.
A gramática tradicional, em sua vertente normativoprescritivista, continua firme e forte, como é fácil verificar nos compêndios gramaticais mais recentes. As práticas de ensino variam muito de região para região, de escola para escola, e até de professor para professor; de acordo com as concepções pedagógicas adotadas. A tendência atual, mencionada no início deste livro, à crítica dos preconceitos e ao exercício da tolerância tem tornado o ambiente escolar bastante mais respirável e democrático do que, por exemplo, na época em que estudei, em plena ditadura militar. Como já vimos, a mais alta instância educacional do país, o Ministério da Educação, tem feito esforços louváveis para provocar uma reflexão sobre os temas relativos à ética e à
cidadania plena do indivíduo, para estimular uma postura menos dogmática e mais flexível, por parte, pelo menos, das escolas públicas. Os já citados Parâmetros curriculares nacionais10 reconhecem que existe muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associado às variedades nãopadrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. Essas diferenças não são imediatamente reconhecidas e, quando são, são objeto de avaliação negativa. Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrarse de vários mitos: o de que existe uma forma “correta” de falar, o de que a fala de uma região é melhor do que a de outras, o de que a fala “correta” é a que se aproxima da língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua difícil, o de que é preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.
Essas crenças insustentáveis produziram uma prática de mutilação cultural.
Temos ainda de esperar para ver em que medida esses esforços se refletirão na prática quotidiana, efetiva, dos professores em sala de aula. Acompanhando esse movimento, muitas editoras vêm tentando produzir um material didático mais compatível com as novas concepções pedagógicas, e o sistema oficial de avaliação dos livros didáticos, apesar de muito criticado, tem contribuído para uma revisão das formas tradicionais de elaboração desse tipo de livro. Mas os preconceitos, como bem sabemos, impregnamse de tal maneira na mentalidade das pessoas que as atitudes preconceituosas se tornam parte integrante do nosso próprio modo de ser e de estar no mundo. É necessário um
10 Ministério da Educação e do Desporto (1998): Parâmetros curriculares nacionais, Língua Portuguesa, 5 a 8 séries, p. 31
trabalho lento, contínuo e profundo de conscientização para que se comece a desmascarar os mecanismos perversos que compõem a mitologia do preconceito. E o tipo mais trágico de preconceito não é aquele que é exercido por uma pessoa em relação a outra, mas o preconceito que uma pessoa exerce contra si mesma. Infelizmente, ainda existem muitas mulheres que se consideram “inferiores” aos homens; existem negros que acreditam que seu lugar é mesmo de subserviência em relação aos brancos; existem homossexuais convictos de que sofrem de uma “doença” que pode, inclusive, ser curada...
Do mesmo modo, muitos brasileiros acreditam que “não sabem português”, que “português é muito difícil” ou que a língua falada aqui é “toda errada”. E ao contrário dos demais preconceitos, que vêm sendo atacados com algum sucesso com diversos métodos de combate, o preconceito lingüístico prossegue sua marcha. Se já existe uma mudança de atitude nos livros didáticos e na pedagogia oficial, por que o círculo vicioso do preconceito lingüístico continua girando? Intrigado com isso, comecei a prestar atenção à minha volta e cheguei à conclusão de que o círculo vicioso não estava completo. Descobri que, assim como os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas são quatro, também existe um quarto elemento oculto dentro daquele círculo. Como este quarto elemento não é tão compactamente institucionalizado quanto os demais, a gente deixa de percebêlo. Mas, afinal, que quarto elemento é esse? É aquilo que resolvi chamar de comandos paragramaticais. É todo esse arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programas de rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, CDROMS, “consultórios gramaticais” por telefone e por aí afora... É a “saudável epidemia” a que se refere Arnaldo Niskier no artigo que citei ao falar do Mito n° 2, “epidemia” que, para mim, nada tem de “saudável”, e vou
explicar por quê. O que os comandos para gramaticais poderiam representar de utilidade para quem tem dúvidas na hora de falar ou de escrever acaba se perdendo por trás da espessa neblina de preconceito que envolve essas manifestações da (multi)mídia. Assim, tudo o que elas fazem de concreto é perpetuar as velhas noções de que “brasileiro não sabe português” e de que “português é muito difícil”.
É uma pena que seja assim. Todo esse formidável poder de influência dos meios de comunicação e dos recursos da informática poderia ser de grande utilidade se fosse usado precisamente na direção oposta: na destruição dos velhos mitos, na elevação da autoestima lingüística dos brasileiros, na divulgação do que há de realmente fascinante no estudo da língua. Mas não é assim. Toda vez que alguém se põe a falar da situação lingüística do Brasil, é para repetir as mesmas queixas e lamúrias de cem anos atrás ou mais.
Um exemplo. Na entrevista de Pasquale Cipro Neto à revista Veja, que citamos na primeira parte deste livro, o texto que antecede a entrevista propriamente dita repisa aqueles mesmos chavões bolorentos: “professor de português — um idioma que, de tão maltratado no diasdia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm como língua materna.” E a primeira pergunta, como era de prever diante de uma abertura tão pessimista, só podia ser: ‘Por que o português é tão mal falado e tão mal escrito no Brasil?” E o entrevistado parte logo para a explicação das “causas visíveis” dessa situação, sem contestar em momento algum a afirmação, fácil de negar; contida na pergunta. E da mesma forma como Cândido de Figueiredo, em 1903, e Arnaldo Niskier, em 1998, ele investe contra os estrangeirismos declarando
que “o sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota”. Ora, se ele mesmo reconhece que o uso de estrangeirismos é “a face mais irritante de um país colonizado culturalmente como o nosso”, é injusto chamar de “idiota” a pessoa que é, de fato, uma vítima dessa colonização cultural. Se nosso comércio está repleto de nomes em inglês é porque os comerciantes e os industriais sabem que isso atrai mais o público, que qualquer produto com aparência de estrangeiro tem maior aceitação por parte do consumidor.
Quanto aos comandos paragramaticais, não faltam exemplos do preconceito lingüístico que os orienta. Como o espaço de que disponho neste livro é muito pequeno, não será possível fazer um exame pormenorizado de muitas dessas manifestações preconceituosas, por isso me limitarei a algumas mais gritantes, que merecem ser denunciadas.