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PRINCÍPIO DA LIBERDADE REPUBLICANA: O REGIME DA I REPÚBLICA RESPEITOU-O?

3. Três interpretações académicas: conclusões

Feita a análise da historiografia sobre a natureza política do regime da I República, concluiremos agora sobre a existência ou inexistência de um conceito de república em cada uma das interpretações.

a) Primeira interpretação: um regime progressista e de princípios democráticos

Oliveira Marques define o regime da República a partir dos valores que defende, no discurso dos seus líderes e na Constituição, tais como a igualdade social, a laicidade e o sufrágio universal. Por outro lado, não existe qualquer referência ao conceito da liberdade política, razão de ser de um regime republicano, que deve proteger a liberdade política dos seus cidadãos (neste caso, a liberdade enquanto não-dominação). Tal como não existe uma valorização das “imperfeições” na forma do Estado, que contribuem para a existência, inegável até para Oliveira Marques, de dominação pelo poder sobre os cidadãos que não estavam ligados ao Partido Republicano Português101. A definição de Oliveira Marques, implícita, não se constrói a partir de um conceito específico de república, mas antes a partir de um conjunto de valores que o historiador considera democráticos, e sempre em comparação à Monarquia Constitucional. Ou seja, Oliveira

Marques elegeu como referência para a definição do regime a Monarquia Constitucional e não um conceito de república, levando-o naturalmente a concluir

que se tratava de um regime progressista e de princípios democráticos. Finalmente, como é perceptível na definição de regime de Oliveira Marques, há um enfoque nos valores democráticos, definindo o Estado republicano através deles, i.e. tratando democracia e república como se do mesmo regime se tratasse.

b) Segunda interpretação: um simulacro de democracia liberal

Esta interpretação foi representada, ao longo da dissertação, por quatro historiadores que, apesar das suas diferentes abordagens, concordam que a I República foi quase- democrática, tendo as suas imperfeições institucionais levado a um crescente problema

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de legitimidade. Nos seus estudos, não existe uma definição explícita de um conceito

de república que sirva de referência para as suas análises da natureza política do regime da I República, nem uma abordagem ao princípio fundamental do conceito de

república, a liberdade política do ponto de vista republicano. Assim, os critérios utilizados para a definição do regime não são claros, tal como não são, aliás, algumas das suas definições do regime. A ausência de um conceito de república, ou pelo menos da explicitação de um critério para a análise, torna os seus estudos mais descritivos do que analíticos e fragiliza as suas conclusões ao torna-las ambíguas. Esta ambiguidade prejudica, de resto, o debate académico.

Um dos factores que mais une estes historiadores é a escolha da legitimidade como eixo de análise para a compreensão do regime da I República e a sua consequente queda. Contudo, é impossível não constatar que a legitimidade é discutida sem que antes

fossem discutidos os pressupostos definidores do regime, aos quais uma análise à legitimidade forçosamente se refere. Ou seja, ao aceitar, por exemplo, que a restrição

do sufrágio abriu um problema de legitimidade, estes historiadores reconhecem, por associação, que o sufrágio universal constitui parte essencial de um regime que se diz republicano. É um salto lógico que impede uma adequada avaliação do regime, até porque um regime pode ser legítimo sem ser republicano.

Um último factor nesta segunda interpretação na historiografia é o predomínio de uma

descrição do regime republicano a partir de graus de democraticidade. Não só se

trata de uma confusão entre democracia e república, mas um dos factores que mais contribui para a ambiguidade da análise e definição do regime da I República neste grupo de historiadores.

c) Terceira interpretação: um regime revolucionário

Rui Ramos e Vasco Pulido Valente defendem, implicitamente, um conceito de

república enquanto Estado de Direito102. Esse conceito está, por isso, próximo do de Pettit, pelo menos no princípio do constitucionalismo, e é com base nele que os dois historiadores recusam que a I República tenha sido republicana, embora essa questão

102 Essa definição é, contudo, mais evidente em Rui Ramos, que sustenta a sua análise na legalidade do

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seja muito mais evidente nos estudos de Rui Ramos do que nas obras de Pulido Valente. O monopólio do acesso ao poder político pelo PRP, a acção violenta sobre os opositores, a acção política fora dos limites legais e a imprevisibilidade que daí adveio constituíram uma forma de dominação do poder político sobre os cidadãos, a que Pulido Valente chama de terror.

Os dois historiadores assimilaram o princípio da liberdade republicana nas suas

interpretações, implicitamente no caso de Pulido Valente e explicitamente no caso de

Rui Ramos. Contudo, nenhum define claramente a liberdade republicana enquanto não- dominação. Em Rui Ramos, há uma clara inclinação para uma concepção mais liberal de liberdade política, seguindo a concepção de liberdade negativa como não- interferência.

Estes historiadores fazem uma interpretação a dois tempos: recusam que a I República tenha sido um Estado de Direito, e como tal recusam que tenha sido republicana, e depois propõem que o regime da I República seja definido como revolucionário. A utilização de um conceito de república corresponde apenas à primeira parte da sua interpretação, e portanto a única que nos interessou analisar.

d) Conclusões gerais do ponto de vista da historiografia

A historiografia não reflecte uma necessidade, da parte dos historiadores, de tratar a História da I República de um ponto de vista político, i.e. a partir dos conceitos políticos. Por outro lado, os historiadores não hesitaram em avaliar e qualificar a natureza política do regime da I República, embora sem nunca tornar explícitos os conceitos e os critérios que sustentavam os seus veredictos.

Assim, a escolha da maioria dos historiadores foi adoptar o conceito político mais familiar para o leitor – a democracia –, esquecendo os múltiplos significados deste conceito. Acontece que os conceitos de república e democracia são distintos, e um dos aspectos que os diferencia é a resistência às facções. A democracia, no seu sentido original enquanto reflexo da vontade da maioria, não tem mecanismos institucionais para prevenir a dominação de uma facção da sociedade sobre outra, ao contrário da república. A insistência dos historiadores em referir-se à democracia, em vez de à república, poderá ser uma das razões que explicam a atribuição de uma menor

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importância ao design institucional como factor determinante para a definição do regime.

Isso não significa que os princípios que constituíram a nossa análise, o

constitucionalismo e a contestabilidade, não estejam, de algum modo, integrados nos

estudos dos vários historiadores. Significa que estes princípios não foram critérios determinantes para a definição do regime da I República, e que apenas foram descritivos do contexto político.

A opção, por parte dos historiadores, de não adoptar um conceito político para a análise trouxe duas fragilidades para a historiografia da I República. Em primeiro lugar, tornou- a conceptualmente ambígua, demasiado descritiva e pouco analítica. Na primeira e na segunda interpretação, a I República é definida como uma espécie de regime democrático, com designações diferentes entre os historiadores e cujas diferenças não são perceptíveis. O que distingue “um simulacro de democracia liberal” de “uma ditadura democrática”? Sem conhecermos os critérios que levaram a estas conclusões, não é possível responder à questão. Em segundo lugar, esta ambiguidade torna-se um obstáculo ao diálogo académico, ao impossibilitar que os estudos comuniquem entre si na busca do melhor conceito político de república para definir a I República portuguesa. Ou seja, os historiadores preferiram a ambiguidade ao diálogo.