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CAPITULO II: CRUZANDO OS FIOS

3.2 Traçando as teias: formação e saberes das professoras

Fazemos alusão a Charlot (2000) e a sua proposição básica, quando defende que a relação do sujeito com o saber é uma forma de relação com o mundo, com o próprio sujeito e com os outros, para buscarmos respostas a questionamentos fundamentais para a nossa investigação: de que forma o contexto social no qual o profissional da educação desempenha sua função, interfere para a sua constituição de ser professor? Quais os saberes apreendidos, re-significados e construídos nessa relação com o outro e com o seu mundo? Até que ponto o Movimento de Luta pela Terra é, ele próprio, pedagógico, como nos aponta Caldart e Arroyo (2004)?

Desde o início do nosso estudo, preocupamo-nos em identificar as singularidades desse grupo de professores e o que eles poderiam nos apresentar de diferencial na sua prática docente com base nos saberes e nas experiências vividas na escola onde trabalham e a relação estabelecida com a comunidade e o movimento criador desse contexto, constituindo uma trama a ser tecida por meio de referenciais teóricos que tratam da formação e dos saberes de professores, bem como dos dizeres destes como sujeitos construtores da própria história.

Na nossa escuta atenta aos colaboradores desse estudo, algumas pistas nos foram reveladas sobre o repertório de saberes mobilizados na prática educativa dos docentes que atuam na Escola Luís Inácio Lula da Silva, servindo-nos de eixo norteador para desvelar a identidade desse grupo de profissionais que atuam em um assentamento rural.

As narrativas das professoras demonstram a importância que atribuem aos conhecimentos acadêmicos adquiridos durante a formação docente, afirmando que atendem, em parte, às necessidades da sala de aula. Entretanto, eles não são suficientes para uma atuação efetiva, pois estão, muitas vezes, dissociados da realidade, visto não resolverem os problemas e imprevistos surgidos no dia-a-dia da escola.

Eu percebo que essa minha formação tem me ajudado muito no sentido de poder intervir, positivamente, nos assuntos, na formação, na prática dos meus colegas, não deixando que as coisas aconteçam aleatoriamente. (Rosa)

Às vezes, tem uma coisinha que parece que fica fora do lugar, nunca se encaixa, na teoria dá certo e na prática não dá (...) a gente acha bonito na teoria, mas quando vamos fazer com o aluno... o aluno não é igual, alguns alunos se adaptam, outros não, então a gente tem que misturar, fazer coisas novas pra uns e pra outros. (Dália)

A complexidade da ação educativa torna-se evidente ao dialogarmos com as professoras sobre o cotidiano escolar e as vicissitudes surgidas, que exigem um arcabouço de saberes que vão além das teorizações sobre o processo ensino-aprendizagem e não se encontram acabados, em razão da prática pedagógica acontecer nas relações sociais estabelecidas entre seres humanos peculiares e em contextos históricos e temporais únicos.

Assim, concordamos com Pimenta (2002, p. 30), quando afirma que,

A formação passa sempre pela mobilização de vários tipos de saberes: saberes de uma prática reflexiva, saberes de uma teoria especializada, saberes de uma militância pedagógica. O que coloca os elementos para

produzir a profissão docente, dotando-a de saberes específicos que não são únicos, no sentido de que não compõem um corpo acabado de conhecimentos, pois os problemas da prática profissional docente não são meramente instrumentais, mas comportam situações problemáticas que requerem decisões num terreno de grande complexidade, incerteza, singularidade e de conflito de valores. (grifo da autora)

A formação, como um processo contínuo, está presente no dizer das colaboradoras, que mostram o afã de investir constantemente na melhoria da prática. Buscam, dessa forma, conhecimentos que as auxiliem no complexo desempenho da profissão, ressaltando os fundamentos teóricos como elementos importantes para refletir sobre suas ações docentes, desde que estejam relacionados com a realidade da escola: “a teoria tem que estar casando

com a prática” (Dália)

Por meio das narrativas, foi possível perceber que os saberes da experiência são fundamentais para lidar com as incertezas e os imprevistos. As professoras com maior tempo de profissão, ao serem questionadas sobre como agem diante do não planejado, incerto, demonstram maior tranqüilidade para a resolução dos problemas, reportando-se às vivências anteriores. Além disso, utilizam o bom senso e a confiança construída por meio da

prática, enquanto as docentes iniciantes buscam auxílio da direção para dar conta dos acontecimentos inesperados, não sabendo como se comportar diante dos fatos inusitados.

A importância desses saberes fica evidenciada nas palavras de Ghedin (2005);

Os saberes da experiência e da cultura surgem como centro nerval do saber docente, a partir do qual os professores procuram transformar suas relações de exterioridade com os saberes em relação à interioridade de sua prática. Os saberes da experiência não são saberes como os demais, eles são formadores de todos os demais. É na prática refletida (ação e reflexão) que este conhecimento se produz, na inseparabilidade entre teoria e prática. (p. 135).

Um outro aspecto que nos chamou a atenção refere-se aos saberes imprescindíveis para a formação docente. Quando perguntadas a esse respeito, as professoras ressaltaram que os fundamentos metodológicos (o como ensinar) são fundamentais para a prática, bem como os saberes oriundos da Psicologia. Observa-se, dessa maneira, que a formação fundada no princípio da racionalidade, em que o professor é visto como um técnico de ensino, e o saber fazer constitui-se como característica principal, ainda se faz presente no imaginário docente, como forma de encontrar uma solução ou receita para a realidade vivida em sala de aula. Isso nos mostra que, na formação das profissionais da educação, as concepções se mesclam no desejo e imaginário. Elas percebem as singularidades do seu fazer e, ao mesmo tempo, sonham com soluções mágicas que resolvam os problemas enfrentados no processo ensino-aprendizagem.

É certo, porém, que todas as envolvidas na pesquisa defendem uma concepção crítica da educação, vista como processo de inclusão social, bem como a formação humana pleiteada, sustentam-se em atender às suas necessidades e dos alunos, considerados sujeitos de direito e que devem ser respeitados dentro das suas singularidades.

Por atuarem em um assentamento rural, as professoras, que participam de uma formação voltada para esse contexto, demonstram maior segurança ao lidar com as especificidades da comunidade e encontram, nessa formação, encaminhamentos às suas demandas, expostos nas palavras de Violeta:

Já esse curso que eu estou fazendo agora, tem a vantagem de você levar o que passa no Assentamento para lá e os professores te darem um suporte. Tem, ainda, os trabalhos de campo, em que a gente traz pesquisas voltadas a tudo o que estamos vivendo. (...) Então, a cada dia, eu vou adquirindo mais saberes para a minha profissão.

Por esse relato, percebemos o quão é imprescindível a pesquisa da prática na formação docente, bem como a concepção de professor como construtor de saberes. Dessa forma, apoiamo-nos nas argumentações de Imbernón (2002), ao afirmar que,

Trata-se de formar um professor como um profissional prático-reflexivo que se defronta com situações de incerteza, contextualizadas e únicas, que recorre à investigação como uma forma de decidir e de intervir praticamente em tais situações, que faz emergir novos discursos teóricos e concepções alternativas de formação. (p. 39).

Partindo dessa realidade, torna-se possível, acreditarmos na constituição do ser professor pautado nos aportes teóricos do intelectual crítico, que, mais do que saber fazer, tem consciência crítica de questionar-se sobre o porquê da sua ação, em favor de quem trabalha, que sonhos o mobilizam, de que forma pode construir caminhos para realizá-los e perceber-se construtor de conhecimentos importantes para a sua prática docente.

A formação pretende obter um profissional que deve ser, ao mesmo tempo, agente de mudança, individual e coletivamente, e embora seja importante saber o que deve fazer e como, também é importante saber por que deve fazê-lo. É difícil generalizar situações de docência, já que a profissão não enfrenta problemas e, sim, situações problemáticas contextualizadas (IMBERNÓN, 2002, p. 38).

Algumas alternativas estão sendo apontadas para efetivarmos essa formação e os saberes que devem permeá-la. Dentre elas, salientamos como conquista relevante para os professores as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, quando trata da formação docente: “Os sistemas de ensino, de acordo com o art. 67 da LDB desenvolverão políticas de formação inicial e continuada, habilitando todos os professores leigos e promovendo o aperfeiçoamento permanente dos docentes” (Resolução CNE/CEB N˚ 1 DE 03/04/2002, Art. 12, Parágrafo único).

Ainda segundo as Diretrizes, as especificidades na formação do professor que atua no campo devem ser levadas em conta, por isso, salienta-se, no Art. 13, que:

Os sistemas de ensino, além dos princípios e diretrizes que orientam a Educação Básica no País, observarão, no processo de normatização complementar da formação de professores para o exercício da docência nas escolas do campo, os seguintes componentes:

I – estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual e coletiva, da região, do País e do mundo;

II – propostas pedagógicas que valorizem, na organização, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas. (Resolução CNE/CEB N˚ 1 DE 03/04/2002, Art. 13).

Uma outra conquista que merece destaque é a criação do Curso Pedagogia da Terra, vinculado ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, que, de alguma forma, atende a uma especificidade contextual, valorizada pela professora Violeta, quando considera o conhecimento mais importante para a formação de todo educador aquele que mantém vínculo com a realidade:

sempre promovem formações, às vezes, eu critico, porque os formadores não estão preocupados com o que você está vivendo em sala de aula. Eu acho que os cursos deveriam estar voltados para a realidade. Primeiro, para haver a formação, os formadores deveriam fazer uma pesquisa em cada lugar, em cada escola, com a comunidade, para ver o que pode ser trabalhado. Acredito que isso é o que não poderia faltar.

Dentro da realidade dessas educadoras, evidencia-se, portanto, a necessidade de valorizar iniciativas que busquem atender às peculiaridades de formação e saberes docentes, respeitando as diversidades, valores e ideologias presentes em cada contexto em que se materializem as ações educativas.