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Traços gerais da abordagem anarquista sobre o poder de género

4 ˗ As relações de género no olhar de três publicações anarquistas do início do século

4.3 Traços gerais da abordagem anarquista sobre o poder de género

A abordagem das publicações anarquistas analisadas, sobre as relações de género e os contornos que assumem as manifestações de um poder de género masculino, apresenta traços comuns, que apresentaremos mais à frente, mas também algumas especificidades que os diferenciam. Por exemplo, nem todas as publicações se fazem representar por olhares unívocos em relação aos temas em discussão e nem todas as questões que evidenciam as relações de género focalizam a sua atenção nos mesmos tópicos, do mesmo modo que as temáticas não surgem com enquadramentos semelhantes. De realçar ainda a forma demasiado descritiva, muitas vezes redonda e assistemática, que estes textos apresentam, dificultando a decomposição dos mesmos.

Em A Sementeira sobressai uma tónica: maior importância à liberdade da mulher enquanto indivíduo, em contraponto a um menor realce da condição da mulher enquanto trabalhadora e proletária. No tratamento dispensado a temáticas relativas às relações de género, a questão feminina surge tratada no âmbito dos princípios de igualdade e                                                                                                                          

horizontalidade entre todos os seres humanos, ou seja, a plenitude da realização do sujeito prevalece sobre os aspetos relativos à condição de classe, viabiliza a igualdade de todos os indivíduos através de uma sociedade com base na ciência e na evolução.

Detalhando traços específicos da perspetiva que se encontra nesta revista, importa anotar algumas marcas distintivas. Nota-se, nesta publicação, uma ausência de colaborações

assinadas por mulheres, com uma única exceção, uma tradução de Deolinda Lopes Vieira.199

Num outro plano verifica-se que o tom adotado nos textos relativos às condições da mulher e relações de género tendem a ter uma abordagem dirigida a um destinatário masculino. Em certo sentido, parece dar-se por adquirido que, perante uma menor participação social e de ação sociopolítica da mulher, seria necessário cativar a atenção masculina para a necessidade de «revolucionar» as desigualdades de género. Considerando a predominância de um poder de género masculino, parece apontar-se a uma pedagogia da consciência masculina na plena promoção da igualdade no campo das relações de género (narrativa que encontramos muito presente nos escritos de Kropotkine).

No processo de apresentação do que escrevem, adotam quase sempre a mesma estratégia para desmontar o discurso detentor de crenças preexistentes em relação à situação social e biológica da mulher. Assim, é através de um método dialético que sucessivamente vão desautorizando as práticas sociais de então, em relação à mulher, ou seja, adotando um discurso triangular em que apresentam a leitura das posições dominantes, procedem à sua desconstrução e terminam apresentando a proposta anarquista.

Sendo este um jornal de cariz doutrinário, que se identifica como Publicação Ilustrada

˗ Crítica e Sociológica, não será de estranhar uma outra característica que nele se encontra, a

filtragem das questões de género segundo um duplo olhar: o olhar marcadamente sociológico surge sem deixar de pôr em prática o olhar militante e ideologicamente orientado. Em alguns dos textos nota-se uma abordagem que combina diversos objetivos: a produção de conhecimento; o apelo à consciência social; coerência ideológica do militante; a promoção da inclusão, da participação social e ação de luta (doutrinária), em apelo à militância das mulheres que lhes estão próximas.

Quando abordam o tema da família vêm-na como uma «estrutura estruturante» do indivíduo, ou seja, a família é considerada como sendo o principal meio de definição da produção de comportamentos. Tornando-se assim uma condição indispensável para a                                                                                                                          

produção ativa do processo social, vendo na mulher um elemento importante para a mudança das categorias formativas instituídas.

A educação é apreendida como uma função social fundamental para a emancipação da mulher e como um input para a abertura a novos territórios intelectuais e políticos. Apelo sistemático à instrução e à revolução como condição essencial para a libertação de todo e qualquer poder.

De forma sumária, procurando sintetizar aspetos marcantes da sua perspetiva, podem referir-se os seguintes aspetos: a necessidade de uma organização social livre e equitativa; o apelo à emancipação da mulher, sob condições de educação equivalentes às do homem; o apelo à construção de relações de género igualitárias; o matrimónio entendido como constrangimento da liberdade; a superação dos códigos morais que se vão cristalizando no tempo; o apelo à independência económica da mulher; o afeto como único elo ou compromisso para a união de dois seres; as práticas sexuais encaradas como naturais, e consideradas como fontes de prazer para ambos os géneros. Verifica-se em todas as suas opiniões uma crítica ideológica de recorte teórico intelectual num tom sociologizante que preserva ao longo de toda a publicação.

Quando passamos aos textos de opiniões relacionados com a condição da mulher no semanário O Protesto, percebe-se que este assume uma postura algo diferente na abordagem deste tema. Abandona definitivamente a questão no que se refere unicamente ao poder de género (feminino / masculino), e entra num território em que a igualdade de género entrelaça a questão social e política. Assim, ainda que não deixando de enquadrar as questões de género, podemos decifrar a produção de uma mensagem profundamente manipuladora contra o adversário/a republicano/a.

Nesta publicação, nota-se uma abordagem informada por um duplo olhar, segundo dois estereótipos sociais de género. Tecem-se elogios e apreciações glorificadoras da mulher proletária e do seu espírito de combate ao lado dos seus companheiros. No reverso, aproveita- se para desenvolver uma forte crítica do feminismo burguês, em dois patamares. No plano político referem-se ao feminismo, não como reação às injustiças sociais e de género, mas como uma atitude de exigência, de autorreconhecimento e de notoriedade, dirigida pela ambição a cargos políticos das feministas, o que tomam como indicador do desejo das mulheres republicanas se aliarem ao homem de condição burguesa, no exercício da dominação sobre as classes mais desfavorecidas.

Tendo o feminismo português uma forte ligação ao sufrágio, e se tivermos em consideração a forma categórica dos princípios anarquistas no combate aos imanentes domínios da organização da sociedade, tais como: o Estado; a legislação; a influência com base em privilégios; a dominação económica; a produção ideológica que sustenta «ilusão da urna» ˗ para utilizar um termo de Bakunine ˗ ou seja, o significado do ato eleitoral, entre muitos outros, não será de estranhar a crítica ao feminismo burguês e de tendência republicana que então estava a tomar corpo em Portugal.

A argumentação a que recorrem para descrever as feministas releva de forma caricatural ˗ até jocosa ˗ os traços e características físicas pessoais de figuras femininas republicanas enquadradas em estereótipos femininos convencionais. Usam como técnica para desvalorizar os argumentos das feministas uma hiperbolização (negativa), que associa características físicas risíveis destas mulheres à crítica dos argumentos a que estas recorrem na argumentação das posições que assumem.

O recurso a este estratagema pode ser visto como uma contradição e parece indiciar e colocar entre parêntesis a salvaguarda de princípios ˗ liberdade individual e igualdade de género ˗ tão caros à doutrina anarquista. No fundo, os preconceitos associados a estereótipos de género parecem persistir apesar dos ideais.

Qual o entendimento sobre a libertação da mulher? Que validade têm as reivindicações das feministas no que consagra a essa libertação? Os textos destas publicações que situam a mulher na intervenção política inspiram-se, de modo estreito, numa visão específica, extraída da visão bakuniniana.

«Numa palavra, rejeitamos toda a legislação, toda a autoridade e toda a influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses de uma imensa minoria subjugada.

Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas.»200

Ou seja, a questão feminista representa apenas a exploração projetada numa minoria dominante. Na opinião de quem escreve nesta publicação, a luta feminista resultará na opressão da mulher de classe baixa.

O modelo subjacente à abordagem que é utilizada neste jornal sobre o tema em questão organiza-se em torno de quatro polos: princípios para uma defesa da emancipação da mulher; consideração das questões de género como um aspeto correlacionado às                                                                                                                          

desigualdades sociais e aos conflitos de interesse entre as diferentes classes; crítica e desconstrução do conceito de feminismo como proposta de emancipação da mulher; afirmação de que a emancipação da mulher implica uma revolução social em conformidade com os princípios da doutrina anarquista. No confronto com A Sementeira sobressai uma acentuação enfática na correlação entre questões de género e desigualdades sociais, e a demarcação fortemente crítica da visão do feminismo da Liga Republicana da Mulheres.

Os textos encontrados no semanário Guerra Social sobre as questões de género exprimem olhares muito singulares e duas abordagens muito próprias e distintas, ainda que sob uma tónica comum. Evidencia-se uma forte inclinação para romper com as normas e os ritos tradicionais, inclusivamente na semântica e ritmo que os textos traduzem. O texto de Pinto Quartim sobre a virgindade é um caso único de uma abordagem frontal e vanguardista, de um tema tabu, em corte com cânones instituídos da sociedade do seu tempo. Por outras palavras, rompe com os poderosos pontos de vista dominantes que, muitas vezes, a própria sociedade incorpora como naturais. O outro texto produzido por este jornal representa o testemunho, na primeira pessoa, de uma mulher, Maria Muñoz, que denuncia e questiona as práticas de uma sociedade em que o poder de género masculino é tão dominante que acaba incorporado pelas próprias mulheres.

Comum a ambos encontramos um olhar orientado para uma reflexão e questionamento das condições de realização e bem-estar da mulher como indivíduo e sujeito social, sublinhando a sua soberania e o direito à liberdade na fruição do corpo e da sexualidade. Ambos evocam esta dimensão como um elemento base na construção de qualquer indivíduo, o que necessariamente se aplica à mulher.

No extrato de um outro texto, da autoria de Antónia Maymon, deparamo-nos com uma análise crítica da instituição casamento, entendida por esta autora como uma via de subordinação da mulher ao poder de género masculino. A temática deste texto desenvolve uma posição e percurso semelhante aos demais jornais.

Sumariando, os textos encontrados nestas publicações de orientação anarquista sobre o tema em análise são registos de opinião caracterizados por alguns traços mais ou menos semelhantes como a análise e denúncia dos problemas que afetam a mulher, a referência aos responsáveis e desconstrução dos argumentos que adotam, a afirmação dos princípios a que, do seu ponto de vista, deveria obedecer a organização da sociedade para uma existência da mulher como sujeito livre, autónomo e emancipado, e o apelo à rejeição da figura do homem

como o elemento dominante por natureza. Subjacente à visão expressa nestas publicações emerge um conceito de felicidade para todos, transversal às diversas reflexões. A soberania do Homem sobre si próprio, a liberdade e autonomia individual, serão vetores do caminho que permitirá atingir a suprema felicidade, o que se inscreve no quadro da doutrina anarquista que inspira estes autores.