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Trabalhadores de rua entre o progresso e a província

2.2 Modernização: embate de perspectivas sobre a rua

2.2.3 Trabalhadores de rua entre o progresso e a província

Quando se tematiza o trabalho na República, é inevitável abordar as mudanças provocadas pelo fim da escravidão e a entrada de imigrantes no Brasil. O que se tem, em verdade, é a formação de um mercado de trabalho onde se misturam brancos pobres, negros livres e ex-escravos a “competir” numa conjuntura em que a ideia de trabalho é extremamente racializada69. A imagem do negro aparece como indissociável da crueldade escravocrata, não de uma forma que possibilite sua redenção, mas no fatalismo elitista que mascara o medo do contingente negro. Esse panorama se faz vigente não só no discurso das elites da época, mas, indiretamente, em estudos que tematizam a transição do trabalho escravo para o livre70.

A transição do regime de trabalho, no Brasil, atendeu à tendência histórica de conciliação por um consenso silenciador das diferenças, pavimentando o caminho para o grande mito da convivência harmoniosa. Azevedo (1987) afirma que o discurso abolicionista repaginou muitos argumentos pré-existentes, não promovendo rupturas com os grandes proprietários. A abolição atendia não só aos intentos do progresso, mas ao medo branco de uma ruptura violenta, provocado pela eclosão de fugas, crimes contra senhores e pequenas revoltas. Essa conjuntura, contudo, se refere especificamente à realidade de São Paulo — tanto por ser esse o destino de grande parte dos escravos nordestinos no fim do regime escravista, tanto por ser ali o epicentro da discussão e implantação da política imigrantista. Assim, tal análise guarda maior correspondência às realidades de cidades industriais e/ou cidades do Sul, tendo São Paulo como caso mais paradigmático.

69 A ideia de trabalho assalariado guardava uma conexão, no ideário das elites, com o imigrante europeu. Acerca da exclusão do escravo da figura do trabalhador, Silva (2015). Ao mesmo tempo, houve uma gradativa exclusão de africanos e escravos do acesso ao mercado de trabalho, através de medidas restritivas de repressão ou por uma política fiscal excludente, como citado no tópico 2.1.3. Essas medidas significavam, ainda no século XIX, “o anúncio da emergência de uma concepção de trabalho urbano, deliberadamente excludente” (MATTOS, 2008, p. 107)

70 Azevedo (1987) promove uma crítica contundente à historiografia que toma como inevitável a inadequação do negro ao trabalho assalariado. A autora traz, então, o argumento de que as concepções racistas de inferioridade natural se combinaram a uma conjuntura muito específica, aos fins da escravidão, para produzir um discurso — e uma prática — que excluiu sistematicamente o negro do mercado de trabalho. O racismo é o paradigma comum de todas as propostas.

Salvador pede alguns parâmetros distintos para esta discussão. Sem imigrantes europeus e com uma população negra expressiva, não existe o impulso de embranquecer a população e o mercado do trabalho. Por outro lado, o que há, sem sombra de dúvida, é um intenso incômodo gerado pela presença negra e sua inevitabilidade. Tratamos disto na seção anterior, em que a desafricanização da cidade impera como a medida a ser tomada para torná-la mais civilizada. Sem a inserção do sangue branco — que viria acompanhado de qualidades civilizatórias, à moda das teorias biologizantes da raça — restava tentar obter uma massa de mão-de-obra disciplinada. O controle disciplinar substitui o controle direto do regime escravocrata, que incidia diretamente sobre o corpo do trabalhador, seu tempo e seu saber. Vamos nos deter, brevemente, neste último aspecto: o saber. Ao longo de séculos de escravidão, havia sido depositado toda ordem de um saber produtivo sobre o trabalhador negro. Saber produtivo, vale salientar, é um saber conectado e necessário à riqueza.

Nesse sentido, trazemos a discussão sobre a expropriação do saber-poder em meio ao disciplinamento do trabalhador. À medida em que aborda as instituições de sequestro — aquelas em que vige um esquema panóptico de vigilância —, Foucault (2003) indica quais seriam as funções dessas instituições: extração do tempo útil, controle sobre os corpos, exercício do poder de julgar e punir. Interessa-nos, contudo, o “poder epistemológico” da instituição de sequestro, transversal aos outros poderes. A partir da vigilância do individuo submetido ao panóptico, seria possível captar e apropriar-se dos saberes que surgem do trabalho. O exemplo é mais perceptível no caso do operário: as adaptações e melhorias ali criadas se transmutam num saber técnico, uma vez que é extraído do cotidiano do operário e incorporado à tecnologia da produção. O trabalhador negro detém, em si, um saber “técnico”, mesmo que não o qualifique desta forma. Como vimos, é ele que maneja a cidade, suas ladeiras, as redes de atravessamento de alimentos. É importante ter em mente que as estratégias de disciplinamento do trabalho, potencialmente, levam em conta a necessidade de expropriar o conhecimento, ferramenta essencial à produção, ou torná-lo obsoleto, como são as iniciativas de modernização de transportes que se opõem a atividade dos carregadores.

Em síntese, serão apresentadas considerações sobre as atividades do trabalhador de rua no início do século XX — e como se diferenciam e se aproximam da escravidão urbana. A maior parte da caracterização do trabalho de rua, na literatura especializada, remete aos tempos da escravidão urbana e ao sistema de ganho, sendo que as fontes de referência aparecem em menor número. Articulamos, ainda, a revisão bibliográfica sobre o tema com alguns dos dados

coletados em arquivos, que permitiram, ainda que de forma parcial, inferir algumas características do trabalho de rua num período de modernização.

Câmara (2008) analisa, a partir de anúncios de trabalho publicados no Diário de Maranhão entre 1880 e 1900, as continuidades de formas de trabalho de rua no contexto de declínio e fim da escravidão. Fica evidente que essas atividades não são simplesmente extintas, embora algumas denominações tenham sido — não era mais possível, claro, procurar uma

escrava para vender na rua, mas continuava corrente a prática de alugar trabalhadores,

especificando inclusive que deveriam ser negros. Conclui o autor que o trabalho de rua continua existindo, mas se conformando a uma nova ordem social, com perceptíveis heranças escravistas (CÂMARA, 2008). Embora localizado na cidade de São Luís, consideramos que essa análise pode se aplicar a Salvador, uma vez que ambas as cidades em muito se assemelhavam quanto ao perfil de cidades negras (FARIAS et al, 2006). A origem escrava e negra do trabalho de rua fica demonstrado pela continuidade dessas atividades.

Utilizando os dados providos pelas leis orçamentárias na segunda década do século XX, é possível ter um panorama de como se compunha o trabalho de rua da época. Entre 1894 e 1915, o número de comerciantes ambulantes matriculados na Intendência variou de 266 para 4545. Nos anos de 1905, 1909 e 1915, a maior parte desses trabalhadores levava suas mercadorias em gamelas e tabuleiros — associados na maioria das vezes ao comércio de alimentos — ou caixas e bandejas levando doces e miudezas (SANTOS apud FERREIRA FILHO, 1993). Evidente que a realidade poderia divergir dos dados apresentados, uma vez que se baseiam na política fiscal do município, abrangendo apenas aqueles trabalhadores que estavam em dia com as taxas a serem pagas. Essa pode ser uma limitação relevante, uma vez que não se sabe o quanto esta população representava em todo o comércio de rua da época. Independente de qualquer limitação, o levantamento produzido pelo autor é uma referência muito relevante.

O trabalho de campo demonstrou que o empreendimento de falar sobre todo o trabalho de rua, como conceito tão abrangente, seria difícil. Portanto, detemo-nos a categorias de trabalhadores que se destacaram na leitura dos dados, cada qual por seu motivo. Saliente-se que, tomando o conteúdo de documentos emanados pelas autoridades municipais, o panorama que se delineia não necessariamente corresponde à realidade, mas a um recorte das pessoas que são sujeitadas ao controle estatal. E, mesmo considerando este “filtro” produzido pela seleção dos agentes do Estado, os documentos analisados não têm a capacidade de nos proporcionar um levantamento da população que é perseguida por este controle. No entanto, como não é o

objetivo deste trabalho, pretendemos articular o contexto proporcionado pela literatura com alguns dos “personagens” mais frequentes e significativos, encontrados nos dados documentais, sem pretensão de generalizações.

Estes perfis de trabalhadores podem se resumir em três ocupações: caixeiros, quitandeiras e vendedores ambulantes. Tomaremos estes três personagens como fios condutores para a narrativa que se segue, situada temporalmente numa Salvador da modernização. Os caixeiros representam uma classe de comerciantes cujo trabalho não se dá nas ruas, mas em casas comerciais71. O caixeiro começa como um empregado do estabelecimento comercial, e tem a possibilidade de crescer dentro da hierarquia interna, até, quem sabe, genro do seu patrão. Era costumeiro que os patrões escolhessem entre um de seus empregados o futuro encarregado dos negócios, que haveria de integrar a família. Ademais, junto à “classe caixeiral”, era possível obter algum auxílio na educação formal (SANTOS, 2009). O caixeiro é um personagem desta narrativa à medida em que se contrapõe a uma outra classe de comerciante: o vendedor de rua. Trata-se de um pequeno artifício, entender o trabalho de rua a partir do que ele não é. Um vendedor ambulante se diferencia do caixeiro por ocupar um espaço mais precário, menos prestigiado e com menor possibilidade de mobilidade72, e isso se refletirá na sua relação com o poder estatal.

Com relação à quitandeira e ao vendedor ambulante, ambos foram mencionados quando abordamos sobre os contornos do trabalho de rua, no início deste capítulo. A quitandeira, explicitamente, como ponto de uma rede de ilegalismos, que contribuía ao estabelecimento de um território negro73. O vendedor ambulante, por seu turno, também atuava principalmente no comércio de alimentos, e a diferença fundamental entre as duas formas de trabalho é o estabelecimento de um ponto fixo, no caso das quitandas, e o caráter itinerante daqueles que se locomovem pela cidade com seus produtos.

O que os documentos deixam entrever, sobre estes trabalhadores, é que um número elevado deles se ocupa do comércio de “miudezas”. Como o nome já diz, são todo tipo de artigo miúdo destinado principalmente à costura, como fitas, laços e rendas. Estes vendedores são

71 A ocupação de caixeiro viajante tem um propósito ambulante que acaba por se utilizar do espaço público, mas não é suficiente para representar toda a classe dos caixeiros.

72 Mattoso (1978) traz um panorama do comércio na Bahia do século XIX, e afirma que o comércio está presente em todas os níveis de hierarquias sociais da cidade de Salvador, variando entre grandes negociantes, pequenos varejistas e vendedores de rua. Os caixeiros, no sentido de empregados do comércio, se encaixariam no segundo nicho, distantes ainda do mercado ambulante protagonizado por escravos e negros livres.

73 Segundo Ferreira Filho (1993), as quitandas variavam entre estruturas previamente montadas em mercados ou feiras (“boxes”), estruturas provisórias em festas de largo ou mesmo espaços anexos à casa da própria quitandeira.

frequentemente estrangeiros, e seus nomes denotam forte presença árabe. Contudo, também os vendedores e vendedoras de gêneros alimentícios são frequentemente mencionados. A presença feminina, contudo, se mostra relativamente diminuta74. De acordo com os documentos, muitos homens lidam com a venda de alimentos, atividade dominada por mulheres, segundo a historiografia consultada. Nesse ponto, contudo, reforçamos a incapacidade de generalização a partir dos dados trabalhados. É possível que as mulheres no comércio de alimentos fossem hábeis em escapar ou lidar com a fiscalização estatal, e ainda se fizessem fortemente presentes nas ruas da cidade.

O documento, contudo, tem potencial limitado em fornecer um retrato do real. Utilizar a lente do poder público incorre em admitir sua distorção. Assim como ocorre com as análises de Ferreira Filho (1993) e Santos (1999) sobre o trabalho de rua, é possível que o panorama de vendedores estrangeiros, ocupados no comércio de miudezas, não fosse tão representativo, e que a presença feminina fosse bem mais expressiva do que o registrado. Mesmo que potencialmente não-representativa, pensamos que o panorama abordado não oferece prejuízos. O objetivo desta seção é menos prover um levantamento do perfil do trabalhador, e mais refletir sobre de que forma a situação do trabalhador de rua pode ser afetada pelas mudanças do início do século XX.

74 Ferreira Filho (1993) faz uma rápida análise sobre as mulheres no comércio de rua, a partir dos orçamentos municipais. Nesses documentos, a presença feminina também é bastante residual. Contudo, reforçamos a necessidade de cautela ao interpretar esses dados, já que também resultam de um filtro: representam apenas aqueles trabalhadores que possuíam licença. O autor traz a possibilidade de que as mulheres tivessem maior possibilidade de se escusar da obrigação de licença, apontando como profissão “ocupações não definidas”.

3 NORMAS ESTATAIS SOBRE O TRABALHO DE RUA

Considerando o contexto histórico da cidade de Salvador em vias de modernização, inserida — mesmo que precariamente em comparação a outras urbes — em um fluxo de ideias sobre higiene, raça e cidade, este capítulo analisa os dados coletados nos documentos históricos. Iniciamos com a apresentação da metodologia utilizada e, posteriormente, os resultados da pesquisa. O objetivo é trazer as nossas respostas à pergunta de pesquisa, a partir do texto normativo e outras representações, bem como apresentar e analisar as formas de gestão do trabalho de rua, ainda que num nível estratégico e não necessariamente prático.