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CAPÍTULO 3 – TRABALHO DOMÉSTICO E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

3.1 A(O) empregada(o) doméstica(o) na legislação brasileira

3.1.1 Conceitos e pressupostos

3.1.1.1 Trabalho de natureza contínua

O conceito de empregado doméstico trazido pela Lei nº 5.859/72 utiliza a expressão “trabalho de natureza contínua” e não de “natureza não eventual”, como na CLT. Com essa diferenciação, surgiram dúvidas na interpretação deste termo.

Alguns doutrinadores entendem193 que o termo de natureza contínua foi propositadamente posto na redação da lei para o diferenciar do conceito de trabalho não eventual previsto na CLT. Nesse sentido, o trabalho contínuo vincula-se com o tempo, a repetição, com o trabalho sucessivo, seguido, sem interrupção. Assim, segundo a esse entendimento majoritário, a repetição dos trabalhos domésticos deve ser analisada por semana, desprezando o tempo de duração do contrato, de forma que o trabalhador doméstico execute seus serviços três ou mais dias da semana, por mais de quatro horas por dia.194

Evaristo de Moraes Filho195 assinala que os serviços prestados pelos domésticos devem ser contínuos, permanentes, não eventuais ou ocasionais, não considerando empregado o prestador de serviços que trabalha para várias famílias, sob a forma de diarista ou de avulso, mas autônomos.196

Outros entendem197 que a diferenciação das expressões é irrelevante, devendo ser

192 PAMPLONA FILHO, Rodolfo; VILLATORE, Marco Antônio César. Direito do Trabalho Doméstico. São

Paulo: LTr, 2011, p. 30.

193 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008, p. 369; BARROS,

Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 324 e MORAES FILHO, Evaristo; MORAES, Antonio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p.268.

194 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. Niterói: Impetus, 2008, pp. 352-353.

195 MORAES FILHO, Evaristo de. Do Trabalho Doméstico e sua Regulamentação. Revista LTr, jun. 1973, nº 6,

v. 37, pp. 493-494.

196 Apesar de seu entendimento, Evaristo de Moraes Filho ao conceituar o doméstico no anteprojeto de Código

do Trabalho excluiu o termo “de natureza contínua”. Considera-se trabalhador doméstico aquele que presta serviços, de natureza não lucrativa, para o empregador, à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas. PAMPLONA FILHO, Rodolfo; VILLATORE, Marco Antônio César. Op. cit., p. 56.

interpretada a continuidade como episódica, não eventual, não interrompida, seguida, sucessiva. Seria importante apenas a necessidade permanente da mão de obra do doméstico, que é demonstrada pela repetição de seu trabalho durante o contrato. Para os que defendem a teoria da (des)continuidade a diarista não estaria excluída da relação de emprego, pois o serviço pode ser prestado de forma contínua e ininterrupta ou de forma periódica: o fato de a diarista prestar serviços uma vez por semana não quer dizer que inexista a relação de emprego.198

Esclarece Carlos Moreira de Luca199 que o conceito de “natureza contínua” não é diferente do de “natureza não eventual” e que a continuidade na prestação dos serviços deve existir, porém, isso não quer dizer que o trabalho deva ser diário.

Para tentar solucionar parte do problema, voltar-se-á para a intenção do legislador na feitura do art. 1º da Lei nº 5.859/72 que teve como Projeto de Lei o de nº 930 de 1972, encaminhado pelo Ministro de Estado do Trabalho e Previdência Social, Júlio Barata, que na exposição de motivos explica que o:

(…) anteprojeto de lei que objetiva regulamentar a profissão do empregado doméstico, outorgando-lhe, ao mesmo tempo, o ingresso, no sistema Geral da Previdência Social. Trata-se de providência da maior relevância e magnitude, que vem suprir uma real lacuna em nossa legislação social-trabalhista. (…) Com efeito,

na definição de empregado doméstico, foi introduzida a referência ao trabalho contínuo, para que o trabalho eventual se exclua dessa regulamentação; mas foi

aceita a exigência dos atestados de boa conduta e de saúde, para admissão ao emprego (…). A filiação obrigatória à Previdência Social é o que de mais importante se deve conceder aos empregados domésticos (…).200 (sem grifos no original)

A exposição de motivos é clara ao preconizar que na definição de empregado doméstico estava excluído o trabalhador eventual, razão da inclusão do termo trabalho contínuo no texto.

Se a intenção do legislador foi diferenciar a natureza do trabalho contínuo do não eventual, deve-se interpretar a norma nesse sentido, porém, cabe a discussão do significado de 1992, v.2, p. 102 e MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 149-150.

198 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2012, p. 150.

199 LUCA, Carlos Moreira de. Contrato de Empregado Doméstico. Revista de Direito do Trabalho, ano 7, nº 36,

mar./abr. de 1982, p. 29.

200 Exposição de motivos do projeto de Lei nº 930/72. Diário do Congresso Nacional (Seção I). 14 de outubro de

continuidade.

A doutrina majoritária tem entendido que a Lei do Doméstico foi mais rigorosa do que a CLT exigindo a continuidade e não apenas a permanência do contrato de trabalho. Adotam o critério da continuidade no computo dos dias e horas trabalhadas pelo doméstico.

Todavia, Américo Plá Rodriguez considera que os serviços podem ser prestados em forma contínua e ininterrupta ou de forma periódica; uma vez por semana, três vezes por semana, uma vez a cada quinze dias, etc.201 não descaracterizando o trabalho doméstico. No mesmo sentido Pontes de Miranda: A continuidade sim é elemento indispensável. A prestação esporádica não bastaria (...). A continuidade é da relação jurídica, da promessa de prestação e da promessa de contraprestação. Não se refere às horas e aos dias.202

Homero Batista Mateus da Silva explicando a expressão “trabalho de natureza contínua” observa que o tema despertou uma controvérsia muito mais emotiva do que científica:

Se o trabalhador doméstico, contudo, deve comparecer sempre no mesmo dia e na mesma hora em determinada residência, não é um dado relevante, para o direito do trabalho, saber quantas vezes por semana houve a prestação dos serviços. Não há fundamento jurídico para negar o contrato de trabalho a uma diarista que se ative um, dois, três ou quatro dias por semana, repita-se, embora essa frase pareça um crime lesa-majestade. A força dos usos e costumes é tão grande que trinta anos não bastaram para alertar a sociedade que os empregados domésticos não são mais os agregados das fazendas cafeeiras ou canavieiras de outrora e que, realizando atividade profissional como outra qualquer, têm necessariamente de acessar o sistema previdenciário e trabalhista, não sendo crível que a habitualidade para essa classe de trabalhadores seja exigida de forma mais rigorosa do que para os demais trabalhadores. Ninguém se choca com o registro em carteira de trabalho de um médico plantonista que comparece um único dia a um hospital ou com o contrato de trabalho firmado entre escola e professor especializado em matéria que requeira apenas quatro aulas de 50 minutos cada por semana. (...) a continuidade da relação de emprego é marcada mais preponderantemente pela repetição da atividade no tempo e no espaço, sob os mesmos moldes contratados do que pela carga horária ou pelas alterações ao longo do período.203

A interpretação majoritária dada ao termo continuidade, excluindo os domésticos que prestam serviços eventualmente está sendo discriminatória com grande parte dos

201 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Curso de Derecho laboral. Montevidéo: Arcali Editorial, 1980, p. 105.

202 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p.

95.

203 SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado, vol. 1: Parte Geral. Rio de

trabalhadores domésticos, como é da tradição do direito brasileiro. Além disso, não há nenhuma especificidade no contrato de trabalho do doméstico que justifique a interpretação diferenciada.

Octacílio Paula Silva tentando entender a marginalização do doméstico na legislação e na interpretação dos tribunais brasileiros, indaga:

Certo penalista, disse, há anos, mais ou menos o seguinte: nosso legislador, de formação burguesa, sofrendo a influência do meio, houve por bem apenar de maneira rigorosa os crimes contra o patrimônio (de maior incidência entre os mais humildes), sendo condescendente, por outro lado, com os crimes contra os costumes (de maior incidência na sociedade). Todos ou quase todos deles [domésticos] precisamos, razão por que não nos furtamos a um comportamento, ainda que inconsciente, de auto-defesa. Estaríamos, no caso, legislando (ou até mesmo julgando) em causa própria?204

É preciso refletir sobre a legislação do doméstico, e ainda mais, sobre as interpretações dadas ao tema. Não se pode mais marginalizar os trabalhadores domésticos pois não há mais fundamento jurídico e social para isso.