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Se no primeiro capítulo fomos ao encontro da noção de produtividade da Natureza na Filosofia da carne de Merleau-Ponty, dando profundidade ontológica ao mundo percebido como abertura espontânea do sentido que motiva e impulsiona toda a atividade artificial dos agentes conscientes, nesse segundo capítulo iremos abordar o “outro lado” ou o verso dessa passividade. Quer dizer, iniciar um pensamento sobre a metamorfose da carne em ideia concentrando a atenção no ponto de articulação entre aquilo que é doado pela Natureza e aquilo que dali se cria artificialmente. Na charneira do Sensível- Sentiente com a ordem da criação cultural e na dobradiça da Natureza como fundo ausente que toca à distância qual latência inconsciente que envolve o conteúdo manifesto dos seres culturais, mostraremos como a atividade subjetiva germina do horizonte de passividade que a engloba.

Para tanto, sigo a indicação de Merleau-Ponty67 que, ao tocar no tema da articulação entre a carne e a ideia, sinalizou que o trabalho do desejo dá início ao campo da expressividade simbólica, ou seja, atividade que transpõe o visível num horizonte de idealidade ou campo de intersubjetividade linguística; campo que, posteriormente, institui-se numa história e sedimenta-se como cultura.

Como se sabe, o manuscrito póstumo O visível e o invisível – sendo uma coleção de pensamentos da última ontologia de Merleau- Ponty em estado de inacabamento – não aprofunda plenamente muitos desdobramentos dessa Filosofia da carne como, por exemplo, as relações nocionais que podemos extrair entre os significantes “Ser bruto” e “Espírito Selvagem” assim como, correlativamente, entre os significantes “comportamento”, “expressão”, “subjetividade” e “inconsciente”. E para tratar especialmente das implicações do Espírito Selvagem entendido primordialmente como trabalho do desejo escolhi uma “via polêmica, que consiste em compreender o funcionamento desses significantes nos comentários que Merleau-Ponty tece sobre os efeitos do discurso psicanalítico em seu filosofar” (MÜLLER, 2008, pg.131).

Essa via pode ser endossada desde que se atente para a proximidade entre a tarefa de Merleau-Ponty em conceber a noção de subjetividade sem estipulá-la, tal como a tradição, segundo a dicotomia postulada entre um Em-si e um Para-si, e o reconhecimento do próprio

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francês a respeito do esforço da psicanálise em rearticular dois domínios tradicionalmente separados: o físico (a matéria ou o somático) e o mental (o psicológico ou o espírito). Se a subjetividade deve conter algo de anônimo em sua arquitetura, um resíduo de ser-prévio como opacidade irredutível ao plano tético, a psicanálise freudiana trabalha justamente com uma noção de sujeito que inclui, na formação de qualquer intenção subjetiva, uma sorte de motivos velados ao agente. O conteúdo manifesto da narrativa dramática daquele que é analisado em uma escuta clínica comporta um conteúdo latente, uma ausência que conta, uma pré-posse do sujeito a um fundo opaco que o toca à distância e faz precipitar aquilo que se manifesta e que o impede, com efeito, de ser transparente a si mesmo de uma vez por todas. É essa proximidade que interessa a Merleau-Ponty inicialmente.

A noção ontológica de carne, que no primeiro capítulo teve desdobramento como dimensão Sensível-Sentiente no espontâneo fluxo visível do Ser bruto, poderá agora se desdobrar enquanto fundo de intercorporeidade mais longínquo, Outro originário que não se apresenta, mas conta à distância – o inconsciente. Assim sendo, a primeira seção deste segundo capítulo tem como função introduzir brevemente o sentido da leitura merleau-pontyana da psicanálise, mais precisamente, a crítica do francês ao modo de pensamento escatológico que deriva da metapsicologia, ou seja, a retificação da abordagem da psique segundo uma estrutura que a determinaria causalmente, bem como o elogio do autor à escuta clínica que evidencia um fundo de passividade que engloba as atitudes existenciais. Nesse intuito farei uma breve exposição da topografia e da dinâmica dos sistemas psíquicos na metapsicologia de Freud para, então, sinalizar o semblante que o significante “inconsciente” pode ter na Filosofia da carne68

.

Ainda na primeira seção e após tal apresentação da abordagem merleau-pontyana do freudismo – sublinhando que o inconsciente ontologicamente remete, a princípio, à coexistência anônima do sujeito generalizado e corresponde a uma dimensão de passividade que antecipadamente enseja aquilo que é vivido na dimensão consciente do sujeito – passarei para a consideração da “Gestalt como Filosofia da carne” 69

, pois a pré-posse entendida como um todo gestáltico (não

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Orientando-me, principalmente, a partir do artigo Comportamento, expressão e subjetividade: Merleau-Ponty e a psicanálise de Marcos José Müller.

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Segundo os caminhos ontológicos abertos no artigo Gestalt como Filosofia da carne e os três registros da experiência: Imaginário, Simbólico e Real também de Marcos José Müller.

sintético e não egológico) oferece a possibilidade de se pensar a dinâmica da abertura de mundo segundo orientações temporais não seqüenciais, tampouco estruturantes, mas co-participativas de uma mesma matriz carnal. Teremos em mãos um modelo para mediar ontologicamente a promiscuidade temporal entre um fundo de passado latente e inatual com a espessura maciça de um presente Sensível- Sentiente atual que, não obstante, é protendido na virtualidade futura expressa pelos gestos criativos. Tudo isso segundo “matizes” da passividade, que vão desde a passividade radical como tempo mítico (o Real ou inconsciente), até a mescla de passividade e atividade: tanto na temporalidade como imbricação do fluxo de imagens na camada do Ser bruto (o imaginário e o Visível), como na temporalidade da transposição da carne visível em horizonte de idealidade, em Espírito Selvagem (o simbólico ou o Invisível – domínio do desejo).

O significante “desejo”, diferentemente do entendimento secular legado pela tradição, qual seja, como inclinação ou móbile intencional rival à atividade volitiva genuína do espírito, deve ser mostrado, desde agora, como insígnia do Espírito Selvagem, iniciação da vida espiritual que não é o contrário da vida anônima e pré-reflexiva, mas seu verso; índice originário de uma perspectiva autêntica instalada no mundo, expressão criativa que germina na carne visível e é raiz do horizonte cultural, atividade identicamente passividade que traça um símbolo como suplente de uma falta e cria uma marca sobre a ausência latente capaz de, virtualmente, apresentar um fundo agora ausente. Desejo que, gênese da expressão, inaugura a intersubjetividade pré-objetiva transpondo a generalidade carnal. Tentaremos conceber o desejo como movimento de transposição que é, simultaneamente, criação engastada no impulso do ser prévio e autoria híbrida de uma vida simbólico- histórica entre eu, o outro e o mundo.

E para dar sequência a essa concepção sobre o trabalho do desejo de inspiração merleau-pontyana, na segunda seção deste capítulo iremos percorrer uma pequena história do uso desse significante, especialmente a partir do momento histórico da tradição em que se passa a pensar o surgimento do sujeito ou da subjetividade concomitantemente ao surgimento do desejo. Pelo menos desde Hegel podemos conferir essa aproximação da noção de subjetividade ou do estabelecimento do campo intersubjetivo a partir de certa dialética do desejo, e por conta disso passaremos por esse caminho, que vai da fenomenologia hegeliana, atravessando a psicanálise freudiana e lacaniana, que também tratam o sujeito como sujeito de desejo, para, por contraste, estabelecer um

caminho inicial para a descrição do Espírito Selvagem na Filosofia da Carne.

Em suma, as seções que compõe este segundo capítulo pretendem caracterizar a clivagem da carne em ideia qualificando o caráter ontológico da atividade que permeia a origem da linguagem. Pois se no primeiro capítulo tratamos da produtividade da Natureza cabe, agora, detalhar o que seja a produção artificial desde sua origem afetiva ou irracional. No entanto, como tal caracterização se ocupa primeiro da carne em sua dimensão temporal mítica e não-visível (o inconsciente), e do trabalho do desejo como o verso ativo que retoma uma produtividade natural (seja da latência do inconsciente, seja do fluxo de imagens oriundas da camada intercorpórea no Ser bruto), o debate sobre os textos de Merleau-Ponty exclusivamente sobre a vida linguagem ficarão a cargo da primeira seção do terceiro capítulo. E isso porque tal debate exige aqui uma preparação, justamente essa exploração ontológica do ponto de articulação entre a carne e a ideia, no qual a noção do trabalho do desejo expõe o caráter da atividade emergente no encontro do subjetivo-objetivo, tema que antecede e direciona a discussão sobre a vida da linguagem. Assim sendo, as três próximas seções que entrelaçam todo o segundo capítulo e o começo do terceiro encaminham o momento no qual a fundamentação de nossa segunda assertiva (ii) 70 – integrante daquele quadro chave para a compreensão da liberdade anônima – encontrará seu acabamento.

(II): A. Os matizes da passividade a partir do comentário merleau-pontyano do discurso psicanalítico.

A psicanálise tem seu nascimento mediante a escuta das experiências relatadas por pacientes com distúrbios comportamentais primeiramente considerados como distúrbios histéricos. A histeria, sinônimo de um comportamento irritadiço e inquieto que foi atrelado, inicialmente, à ansiedade angustiante vivida por mulheres da burguesia na virada do século XIX para o século XX, foi marcante para os trabalhos de análise da psique que Sigmund Freud propôs quando associou tal comportamento histérico ao “sacrifício corporal” que permeava a cultura burguesa. Esse sacrifício, em termos gerais, diz respeito ao esforço sempre fracassado de correspondência do histérico a um Outro (a um Eu ideal) como parâmetro inalcançável de si que, com

efeito, consiste na renúncia velada de demandas internas. O sintoma histérico adviria de uma interdição simbólica originária responsável por reprimir certa latência corporal ao castrar um investimento dessa corporeidade que, a despeito de seu velamento, não é suprimida, pois retorna como angústia do corpo sacrificado, na volta da repressão e em forma psicossomática.

Os efeitos do sacrifício corporal, isto é, os sintomas do histérico, ensejaram uma aproximação entre o comportamento do louco e aquele retorno sacrificial psicossomático, proximidade que ganha maior relevância quando Freud enuncia certa equivalência entre o sonho, relatado na escuta clínica, e a histeria. Isso porque o sonho relatado deixaria entrever, por entre o conteúdo manifesto, uma modulação da latência velada tal como retorno do corpo sacrificado na forma de uma entidade onírica. Quer dizer, o conteúdo do sonho manifesto guardaria um “sentido” mais profundo articulado por significantes simbólicos arranjados pela latência corporal (castrada em vigília), essa que, todavia, retornaria enquanto motivo opaco da narrativa relatada. A interpretação dos sonhos é a sobredeterminação discursiva – pela livre associação entre os significantes – da narrativa emergente de um corpo castrado pela linguagem, ou melhor, o sonho é interpretado na intersecção da escuta das cadeias de significantes narrados pelo analisando com a sobredeterminação do psicanalista que permite, contudo, uma modulação linguística dos motivos profundos que implicam a sintomatologia do analisando. Mais importante: o sonho é a defesa do organismo, do corpo onírico, contra o advento do corpo castrado.

Mas para compreender melhor esse trabalho de defesa do sonho é útil expor, introdutoriamente, uma topografia da psique, isto é, os antros fictícios da dimensão entre o mental e o físico, precisamente, o inconsciente pulsional e sistemático (assim como o sistema pré- consciente/consciente que, todavia, será revisitado mais detalhadamente na segunda seção deste capítulo). Essas instâncias não são lugares no espaço, regiões positivas entranhadas em algum canto da anatomia corporal, antes sinalizam para uma pré-posse imemorial, um fundo opaco que faz precipitar as manifestações do corpo fisiológico e simbolicamente histórico, ou seja, sinalizam as demandas veladas da psique.

O corpo físico inicialmente corresponde a um sistema perceptivo capaz de receber estímulos exógenos ou endógenos e de canalizá-los por vias orgânicas. O princípio de prazer ou satisfação do organismo equivale à capacidade de descarga desses estímulos pelo sistema

muscular esquelético, pelas vias orgânicas que possibilitam a massa anatômica realizar a descompressão prazerosa de uma tensão instalada. No entanto, uma sorte de estímulos absorvidos pelo aparelho receptor não são plenamente descarregados, pois não encontram vias adequadas: essa tensão não descarregada se inscreve como impressão ou tensão negativa inaugurando uma nova dinâmica energética no organismo. Como não é possível escoar essa tensão negativa pelo sistema somático, visto que a massa anatômica não encontra meios de expeli-la, tal como uma ostra, o corpo, evitando a dor pelo insucesso da descompressão da tensão, procura então detê-la pelo sistema mnemônico.

Este último é feito de traços de imagens constituintes da memória que criam uma barreira de contato com a impressão, arregimentando o fluxo de energia nervosa. Os traços originam-se do contato entre os corpos e o mundo, ou seja, não são exclusivamente o resultado de confecção ideativa singular de um organismo, mas antes, são o empuxo da imagem do Outro que, impessoalmente, fixa-se no sistema mnemônico.

O que se inscreve como tensão negativa cerceada pelas barreiras mnemônicas não é “escrito”, quer dizer, não é um objeto restituível ou manipulável pela consciência tética, porque a inscrição forma-se de modo antepredicativo e, por isso mesmo, esse objeto oriundo da inscrição é parcial, ou seja, é um objeto originariamente sem sentido, aquilo que gera um estranhamento irredutível à cognição, não obstante ser o ponto de partida que irá desdobrar a vida consciente. De um ponto de vista dinâmico, a energia ou a carga da tensão negativa, que podemos chamar de pulsão quando passa a ser economicamente admoestada nesses objetos alucinatórios parciais por investimentos corporais, apresenta-se na forma do fenômeno psíquico de fixação da impressão por investimento do corpo no objeto parcial oral, anal e genital.

Portanto, nesse inconsciente primitivo ou pulsional os traços mnemônicos armam-se ao redor da tensão negativa para contê-la, já que ela não pode escoar pelo sistema muscular esquelético, e como meio para defender o organismo dessa carga sem destino, as armações daqueles traços criam vias que simulam a descarga da impressão pela alucinação do corpo investindo-se num objeto parcial. No entanto essas vias alucinatórias nunca são suficientes para suprimir por completo a impressão, essa que nunca se extingue, visto que os meios de contorná- la são sempre provisórios: ela permanece latente como afeto, como aquilo que é incontornável pelo sujeito.

Por sua vez, a castração originária é o desinvestimento energético do corpo aos objetos alucinatórios, a destituição do sistema de contenção primário da tensão negativa. Castração pode ser entendida aqui como o desfalecimento ou o desvanecer do objeto de contenção da impressão, como um corte nesse corpo sutil ou onírico (entre o mental e o somático) desferido seja pela ineficiência do objeto parcial em descomprimir virtualmente a pulsão, seja pelo Outro cultural que interdita simbolicamente o investimento alucinatório ao exigir a disciplina do corpo. A regra cultural domestica os corpos numa nova economia energética coibindo antigos investimentos como, por exemplo, o controle da sucção oral na interdição da amamentação e na retirada chupeta, ou a privação da nudez, etc.

Como consequência da perda do objeto alucinatório primitivo desdobra-se a separação dos traços mnemônicos antes atados à impressão. Desde a fragmentação do objeto parcial gera-se uma falta fundamental, uma ausência do objeto alucinatório que, não obstante ter sido perdido, permanece retido tal como um fundo negativo, uma ausência que conta e é sentida como angústia. De um lado, os traços se re-arranjam – na formação de um conteúdo ideativo – em camadas de marcas imagéticas que se acoplam, posteriormente, em cadeias de significantes para suprir aquela falta fundamental, como defesa contra a angústia. A marca é o limite simbólico de uma falta real, aquilo que funciona como suplente de uma ausência, pousando sobre ou circunscrevendo-a a fim de contorná-la. Por outro lado, a impressão que fora desatada da fixação imagética primitiva permanece como afeto inalienável ou pulsão que reiteradamente ressurge no fracasso da defesa contra a angústia, na forma do retorno sacrificial do corpo.

A defesa operada pelo conteúdo ideativo, na tentativa de aplacar a angústia, nasce como o verso da falta e estipula-se como desejo. Donde se segue que a formação de armaduras ideativas que visam substituir o corpo castrado (ou a ausência do objeto parcial) conjura-se simbolicamente no desejo de modo a permitir uma relação com a perda originária. Com efeito, o investimento energético articulado pelo desejo nunca consegue descarregar-se por vias do sistema somático já que remete a uma função simbólica de defesa contra a angústia, desejo emergente desde o corpo onírico e que desponta, apenas superficialmente, no corpo físico. E nesse sentido não é possível satisfazer o desejo, pois ele não atende ao princípio de prazer (descompressão da tensão por vias orgânicas). Podemos dizer que o

desejo consiste no nascimento de um sujeito, de uma intenção prática ou significativa que se aplica numa operação de contenção da angústia.

Dado o investimento corporal a objetos de desejo, acomete-os então uma segunda castração: o conteúdo ideativo é insuficiente para contornar a angústia quando o Outro cultural vem interditar (recalcar) o investimento do corpo aos objetos arregimentados pelo desejo na infância, forçando a reordenação da economia libidinal do organismo. A partir de então, o trabalho do desejo, no Inconsciente sistemático, consiste em armar defesa, dessa vez, contra a angústia da castração segunda (complexo de Édipo). Essa defesa pode ser progressiva ou regressiva: no primeiro caso o desejo encadeia os significantes e erige-se em objetos (sexuais) substitutivos (ideais, objetais) ou narcísicos no universo linguístico para, refletindo na realidade em vigília, tentar contornar a angústia.

No entanto, todo o esforço de defesa do desejo em sentido progressivo sempre fracassa em algum ponto, já que o afeto nunca pode ser contornado definitivamente. O investimento corporal aos significantes do desejo atinge seu ápice quando o sujeito do desejo empregou todos os esforços para corresponder aos objetos substitutivos ou narcísicos, na tentativa implícita de aplacar as demandas latentes do corpo que foram até então recalcadas. Momento no qual essa insuficiência de correspondência reedita o desfalecimento das vias virtuais para descompressão da tensão negativa: é o retorno da experiência de castração e da angústia que despontam no fracasso do trabalho de suplência da falta pelo símbolo, retorno do corpo castrado que sacrificou – sem sucesso – suas demandas veladas.

No segundo caso, a defesa na regressiva, quando adormecido o corpo e sem direcionar-se à realidade de vigília, o trabalho do desejo (como trabalho do sonho) rearticula o conteúdo ideativo para a elaboração de entidades oníricas contra o advento do corpo castrado. O trabalho do sonho esboça um movimento de regressão que tangencia ou roça o objeto parcial originário perdido ao criar uma relação com a ausência na forma de um ente onírico. Este último é a representação alucinatória da descompressão da inscrição originária que gera gozo, promotor, ademais, de uma esquiva do sacrifício corporal, da castração e da angústia. Se o sonho é um desejo que se representa como realizado, ele propriamente não se realiza somaticamente, antes é a simulação alucinatória do desejo realizado, que fora recalcado pelas castrações. Mas o sonho, como se sabe, é lacunar, descontínuo e não observável. Por conta disso, a realização do desejo recalcado na entidade onírica é

alusiva: há um conteúdo manifesto oriundo de causas recentes, como experiências diurnas ou noturnas vividas pouco antes ou durante o sono, fonte do cenário, de um contexto ou de imagens encadeadas pelo sonhador que, quando relatadas na escuta clínica, deixam entrever motivos, vínculos internos ou causas mais profundas, como um conteúdo latente que expressa indiretamente as demandas veladas do sujeito do desejo.

Como dito, a interpretação dos sonhos estabelece-se na livre associação entre significantes manifestos com vistas a rodear o conteúdo latente sem nunca pretender captá-lo como sentido ou significação positiva desse rastro perdido e pulsional, justamente porque o conteúdo latente é originariamente um resíduo aquém do sentido, um equívoco fundamental. A interpretação e a análise clínica fazem emergir

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