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1 TRADIÇÃO E ORIGENS

1.3 TRADIÇÕES INVENTADAS

Como refletimos anteriormente, o desenvolvimento do Iluminismo e a Revolução Industrial catalisaram mudanças significativas na organização social dos países europeus. O conceito de império cristalizou-se com mais clareza, e seus contornos ideológicos moldaram significativamente as culturas das sociedades envolvidas nesse processo. O século XIX foi marcado pela penetração inglesa na África. Os domínios ingleses, naquele continente foram, progressivamente, tornando-se colônias de povoamento, atraindo os súditos do império com a promessa de conquista fácil de riquezas e ascensão social. Porém, a construção de uma sociedade nesse contexto exigiu mais do que o mero transplante das estruturas sociais britânicas. O molde da sociedade inglesa na África demandou adaptação à realidade da colônia, na qual os brancos necessitavam de modelos de comando e os negros, de modelos de comportamento “modernos” ocidentais que os enquadrassem em um paradigma de subserviência. Com esse fim, os administradores ingleses lançaram-se à tarefa de codificar os costumes africanos de acordo com os paradigmas europeus de organização social, importando, ao mesmo tempo, “tradições inventadas” da Europa.

Hobsbawm define “tradição inventada” como “o conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas de natureza ritual ou simbólica, visando inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWM e RANGER, 1984, p.9). Essas tradições têm como meta a estratificação das estruturas sociais, impostas através de práticas fixas construídas e formalizadas institucionalmente. Esse processo de invenção se dá, precisamente, quando ocorrem transformações rápidas e abrangentes em uma sociedade, quando surge a necessidade de adaptar costumes antigos a condições novas ou de usar modelos antigos com objetivos novos. O contexto da revolução nos meios de produção (pela Revolução Industrial) e no plano do conhecimento humanístico, aliado às sociedades criadas pela empreitada colonial, criou as condições para que os paradigmas de certos aspectos da sociedade fossem reformulados – ainda que firmemente enraizados no passado.

As tradições inventadas desde a Revolução Industrial são classificadas em três categorias superpostas: “a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a condição ou a condição de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento” (HOBSBAWM e RANGER, 1984, p.17). A criação de comunidades coloniais, compostas por brancos ingleses e negros africanos, necessitava de tradições que reforçassem o poder das instituições imperiais, e que enquadrassem os sujeitos coloniais em uma estrutura hierárquica rígida, na qual todos “sabem seu lugar” e agem dentro da conformidade.

Um dos eixos principais de asserção do domínio inglês na colônia foi a consolidação do status baseado na cor. Um exemplo disso foi o transplante das tradições inventadas pelo jovem proletariado europeu, estabelecidas, inicialmente, como forma de defesa contra as intrusões do capitalismo. No contexto colonial, essas tradições foram reformuladas de modo a preservar os direitos e o status reservados somente aos trabalhadores brancos. A expansão da atividade européia na África intensificou a necessidade de organização da administração das colônias e, “com o advento do domínio colonial formal, tornou-se imprescindível a transformação dos brancos em membros de uma classe dominante convincente, com direito de defender sua soberania não só pelas forças das armas e do capital, como também através do status consagrado pelo uso e outorgado pelas neotradições” (RANGER, 1984, p.223). Na vanguarda desse processo encontrava-se o excedente de homens bem-nascidos na Europa que buscaram progresso nas fronteiras do império, por meio da hierarquia administrativa britânica.

Gerenciar uma sociedade industrial complexa e intensamente sujeita a mudanças foi a força motriz por trás do uso das tradições inventadas, na colônia. Os sindicatos e seus rituais, a estrutura de administração civil, o regimento militar e seus costumes, o culto à figura do rei, são alguns exemplos. A transferênciadessas tradições para a África britânica serviu ao propósito de “modernizar” o pensamento e o comportamento africanos, e suas estruturas foram adaptadas de forma a impor subordinação. A tradição da hierarquia da casa-grande possibilitou aos brancos possuírem servos negros. A

tradição militar, com hierarquias rigidamente definidas, permitiu aos africanos sua inserção no regime governamental da colônia, com a formação dos exércitos coloniais africanos. A tradição da escola instituiu que alguns africanos poderiam ter acesso à educação e a cargos no regime administrativo. Senhores e servos, oficiais e soldados, educadores e alunos – as tradições inventadas européias tiveram influência fundamental na elaboração de paradigmas de subserviência para os africanos das colônias e na definição dos papéis destinados a eles naquela sociedade.

O simbolismo de autoridade e subserviência advindas das tradições inventadas no século XIX, nas formas simples do poder colonial, adquiriram ênfase significativa na constituição da sociedade. Porém, ainda que a maioria dos africanos se enquadrasse no paradigma de autoridade colonial, pouco a pouco alguns grupos começaram a apropriar- se dos costumes e rituais da neotradição em seu próprio benefício. A burguesia africana assumiu para si os direitos e deveres de sua contraparte européia; os governantes tribais passaram a exigir os privilégios e ritos da nobreza européia tradicional. As necessidades prementes de inclusão na nova sociedade fizeram com que muitos africanos procurassem se enquadrar nos modelos de interação social, hierarquia e controle como forma de organizar suas próprias vidas. Entretanto,contextualmente, a conseqüência mais profunda da apropriação indiscriminada de tradições e costumes europeus foi o enrijecimento e inflexibilidade dos costumes africanos.

Terence Ranger (1984, p.254-255) comenta que as tradições e os costumes das sociedades africanas pré-coloniais eram “mal definidos e infinitamente flexíveis”, apesar dessas sociedades valorizarem suas próprias tradições e as manterem. As fronteiras entre as identidades comunitárias também possuíam limites frouxamente definidos, muitas vezes intercambiáveis até, e as estruturas hierárquicas tinham menos peso para essas comunidades, não servindo para “definir os horizontes conceituais dos africanos”. Franz Fanon, citado por Bhabha, reflete a respeito dos efeitos da intrusão européia sobre a cultura dos povos africanos:

[...] uma agonia prolongada em lugar do total desaparecimento da cultura pré-existente. A cultura anteriormente viva e aberta para o futuro torna-se fechada, fixada no estatuto colonial, presa no jugo da opressão. Presente ou mumificada, ela testemunha contra seus membros [...]. A mumificação cultural leva à mumificação do pensamento individual [...]. Como se fosse possível a um homem desenvolver-se de outro modo senão dentro da moldura de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir. (FANON apud BHABHA, 1998, p.120)

Os europeus interpretaram as culturas dos povos africanos de acordo com seus próprios modelos, atribuindo a elas características similares àquelas das sociedades européias: regras sociais bem definidas, tradições alegadamente antigas e imutáveis, hierarquia como base da sociedade. “As invenções mais abrangentes da tradição da África colonial ocorreram quando os europeus acreditaram estar respeitando tradições africanas antiqüíssimas” (RANGER, 1984, p.257). Na verdade, a intrusão dos europeus no território africano levou a rupturas significativas nos padrões internos de organização social e política das comunidades autóctones. A inclusão de aspectos políticos necessários à administração colonial – alienação de terras, direitos territoriais, construções de direito consuetudinário – estabeleceram o padrão inventado de rigidez e imutabilidade do corpo de tradições. A necessidade de estabelecer ordem e segurança ao mundo social forjado na colônia e os equívocos na interpretação das sociedades africanas levaram à codificação das estruturas sociais de acordo com os paradigmas europeus e à estratificação e imposição da “tradição”.

Naturalmente, a codificação das estruturas de organização do mundo colonial só foi possível com a participação dos africanos. O desejo de alguns por assimilação ao mundo metropolitano passava por se enquadrar aos paradigmas da “nova ordem”. Assim, alguns africanos apropriaram-se das percepções dos europeus a seu respeito para forjar as bases da sociedade colonial. As tradições inventadas e as instituições encarregadas de reforçá-las foram manipuladas de forma a privilegiar os interesses investidos de certos estratos da sociedade. Ranger mostra como isso aconteceu, dando como exemplo quatro situações:

Os mais velhos tendiam a recorrer à “tradição” com o fim de defenderem seu domínio dos meios de produção rurais contra a ameaça dos jovens. Os homens procuravam recorrer à “tradição” para assegurar que a ampliação do papel da mulher na

produção do meio rural não resultasse em qualquer diminuição do controle masculino sobre as mulheres como bem econômico. Os chefes supremos e aristocracias dominantes em comunidades que incluíam vários agrupamentos étnicos e sociais apelavam para a “tradição” para manter e expandir seu controle sobre seus súditos. As populações nativas recorriam à “tradição” para assegurar que os migrantes, que se estabeleciam na área, não viessem a obter nenhum direito econômico ou político. (RANGER, 1984, p.261)

A invenção colonial de tradições produziu um legado ambíguo para as sociedades africanas. A estratificação social de comunidades certamente gerou ordem e estabilidade para o mundo colonial, porém, a fixação de identidades culturais e étnicas e os conflitos de interesses advindos de tais divisões plantaram as sementes que frutificaram na forma de batalhas incessantes e genocídios terríveis em solo africano, no século XX. Outro aspecto desse legado é a influência que o corpo de tradições inventadas e importadas da Europa ainda exerce, em certas partes da África, influência essa que praticamente já não existe na própria Europa – como vestuários, costumes, hinos, bandeiras e comícios típicos da Europa do século XIX.

Por fim, o legado ambíguo de maior importância para a formação das identidades culturais na era pós-colonial é o da cultura africana “tradicional”, constituída pela estrutura da “tradição” reificada construída pelos poderes vigentes da sociedade colonial. Muitos dos que buscam identidade cultural para longe das tradições da elite africana, por vezes correm o risco de assumir outros atributos das invenções coloniais, que se encontram mascaradas sob a forma de tradições “ancestrais” da África pré-colonial.

Uma alternativa possível, para engendrar a transformação cultural necessária para a formação de identidades na era pós-colonial, encontra-se na renovação e vitalidade do

input daqueles que se localizam nas margens dessa estrutura – intelectuais, artistas,

jovens, mulheres e imigrantes, entre outros. As pressões enfrentadas pelas sociedades coloniais – e por todas as sociedades contemporâneas – em localizar-se no presente e, ao mesmo tempo, manterem-se adaptáveis para o futuro, podem residir na mescla de inovação e flexibilidade encontradas nos atributos culturais daqueles que, das “margens”, vivem a tensão de negociar continuamente com o “centro”.

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