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Tradicionais e Contemporâneos: Somos todos “gente das maravilhas”

Se por um lado a globalização e o avanço das tecnologias contribuíram decisivamente para o silenciamento dos narradores orais tradicionais num determinado momento da história, por outro, foram, responsáveis pela disseminação dessa arte e redimensionamento dela em todo o planeta, revelando com isso que houve uma transformação e não uma ruptura nesse movimento. Isso porque a sociedade mudou e com ela, os comportamentos de uma oralidade primária (ONG, 1993) também se foram, revelando a cultura popular aspectos da sua constituição que se balizam em formas estanques, que não mudam e em formas que estão em constante processo de mutação, a exemplo do ofício do contador de histórias que, embora tenha se transformado no que diz respeito ao perfil do narrador, tem no ato de narrar um processo contínuo.

Nunca se buscou tanto a voz de um contador de histórias quanto agora, escolas, bibliotecas, livrarias, Universidades, Feiras, Bienais e toda sorte de lugar onde a literatura mora, mas também outros espaços tem buscado um retorno às tradições, um resgate da memória afetiva, a exemplo dos teatros, praças, reunião de amigos, espaços culturais diversos e outros locais capazes de integrar pessoas que acreditam na preservação dos bens simbólicos anunciados pelos contadores de histórias. Assim como a história da sociedade muda no corpo do tempo e com ela os aspectos sociais e culturais de uma época, assim também se transforma

a arte de contar histórias no intuito de dar respostas a cada realidade que passa a surgir. Não há extinção, há transformação.

Não se pode entender o ofício de contar histórias na contemporaneidade como uma sobrevivência do passado no presente que, por sua vez, está em vias de superação. O ato de contar histórias é parte de um contexto histórico e social que, ao se modificar, modifica suas manifestações culturais. Nem tampouco, deve-se acreditar que a cultura popular e o ato de contar histórias como uma manifestação dela, não tenha força de sobrevivência diante da modernidade. Os meios de comunicação contemporâneos e os novos cenários de produção do trabalho e do lazer trazem uma transformação, um impacto que não extermina a arte narrativa. (ROCHA, 2010, p. 115)

Mesmo em meio à vida moderna, onde a produção de conhecimento é constituída de maneira diferente, o homem não aprende apenas no contato direto com o outro, mas também na individualidade, em tempo real ou virtual, síncrono ou assíncrono, na relação com a máquina, com o outro e com os saberes constituídos com os quais dialoga ao longo do tempo. É por isso que mesmo havendo uma mudança na forma com que o contador de histórias cumpre o seu papel na contemporaneidade, as narrativas continuam sendo contadas com a mesma emoção que outrora: na sociedade de tradição oral, com as narrativas domésticas, aprendidas no seio da comunidade e transmitidas de geração em geração e nas sociedades contemporâneas, onde as formas de aprendizagem perpassam os mais variados portadores textuais e o formato das oficinas é a maneira mais usada para disseminar essa arte, com uma única diferença entre eles – a plateia.

Narrar deixou de ser somente uma atividade restrita ao espaço doméstico, com propósitos iniciáticos ou educacionais, de caráter intimista e passou a ter o status de arte, passou a ser considerado “um evento artístico”, como informa Busatto (2011, p. 49). A função do contador de histórias contemporâneo se configurou em servir ao conto, ao texto, mas também em dar um caráter estético a palavra através da performance artística e é essa uma das características que demostram a metamorfose pela qual passou o narrador oral e que fez com que ele contrariasse a ideia de extinção prevista por Benjamin (1994). O narrador, nesse caso, se confunde com a própria arte, carregada de plurissignificações e funções, e acompanha as mudanças ocorridas na sociedade que, em nosso caso traz a marca dos comportamentos transformados pela relação do homem com a tecnologia.

Talvez, por isso, eles estejam tão presentes nos grandes centros urbanos na contemporaneidade e, junto a eles estejam também os ouvintes, interessados tanto nas narrativas orais apresentadas pela performance do contador de histórias quanto nas

publicações teóricas e literárias, espetáculos em CD, DVD e toda sorte de espaço onde o conto pode penetrar. E junto a essa presença também se constitui um movimento revelador de um público que busca os festivais e encontros de contadores de histórias, e deseja aprender, entre outras coisas, os segredos da arte de narrar.

Cabe, porém, deixar claro que embora existam diferenças entre o fenômeno que revela as características do narrador tradicional e do contemporâneo, não há dicotomia entre eles, ambos estão nos grandes centros e no interior do país, há narradores tradicionais no campo e na cidade, como há narradores contemporâneos nesses dois espaços, mas a principal diferença entre eles é o fato dos narradores contemporâneos organizarem a formação de novos contadores de uma maneira mais institucionalizada, minimizando a característica de manifestação cultural, naturalmente exercida pelos narradores tradicionais. É como se o narrador tradicional fosse o porta-voz do seu grupo, semelhante à função dos griots nas sociedades africanas, que circula na comunidade com contos que são parte dela e fazem todo sentido para os que ali vivem, enquanto o narrador contemporâneo está mais preocupado com a questão estética (performance) e a capacidade de comunicação estabelecida através do conto que, entre muitas outras coisas, aguça os sentidos.

A forma de se captar um texto para contação de histórias também é uma característica que demarca a diferença entre os narradores orais, já que aprender essa arte da palavra pela via da oralidade difere de aprendê-la através do texto escrito e, essa forma de aprendizagem influencia diretamente o contador no momento em que vai narrar. A forma de organização do pensamento a partir da escrita é diferente da oralidade; com a escrita o contador estuda o texto para lhe dar vida, diferente do narrador tradicional que não promovia um estudo sistematizado do conto e tinha a própria oralidade como instrumento de transmissão e aprendizagem da narrativa; ao mesmo tempo a linguagem do cinema, do teatro, da música e de materiais impressos diversos, todos elementos eruditos, se misturam a espontaneidade de uma arte que nasce no seio da cultura popular, provocando um hibridismo onde a prática das narrativas orais sofre influência da escrita. Para Rocha (2010, p. 119):

[...] é um desafio para o contador [...] devolver as características de oralidade ao texto da tradição oral que está escrito. É preciso saber que o conto da tradição oral passou por um processo de mutação, para se transformar em linguagem escrita. Logo, ao ser devolvido para a oralidade, este deve despir- se desta linguagem e voltar a ter as características de discurso oral. Portanto, os percursos de aprendizagem dos contadores [...] diferem da forma de aprender dos narradores tradicionais.

3.3 O QUE QUER E O QUE PODE ESSA “GENTE DAS MARAVILHAS”?

Quais seriam as motivações que levam um sujeito a tornar-se contador de histórias? O que os move ao encontro das narrativas e o que lhes conduz ao centro do palco, das atenções, dos olhares? Para os contadores de histórias entrevistados nessa pesquisa as razões são muitas, desde as agregadas a própria formação, no caso dos atores, até o fato de se perceberem provocadores da emoção do ouvinte durante o momento em que contam uma história – fundante – nos cursos ou oficinas de formação relacionadas a essa arte. É o caso de Ana Luiza, turismóloga que encontra no curso de magistério e na psicopedagogia uma ponte que a leva pela área de educação, onde se descobre contadora de histórias através da relação que estabelece com os seus alunos da Educação Infantil:

[...] eu era professora de Educação Infantil e como professora a gente acaba se apropriando do mundo das histórias [...] de uma forma que é bem de sala de aula, também muito com os livros... e como professora eu utilizava muitos elementos ao invés do livro porque eu comecei a perceber que as crianças quando conseguiam chegar na roda, as crianças tinham 3 anos, 3, 4 e 5 [...] E então eu comecei a perceber que quando eu chegava na roda com o livro e quando eu chegava na roda com algum elemento e a história – sem o livro – era uma sensação completamente diferente do olhinho que elas colocavam em mim. E eu comecei a sentir mesmo essa necessidade de ampliar essa exploração da história pela história. [...] Então, por aí começou, foi aí que começou. (Entrevista realizada em 04/03/2013)

Para Rita Nasser, o caminho que lhe revela contadora de histórias se assemelha ao descrito por Ana Luiza e, tanto a leitura quanto a relação com as crianças revelaram a sua inserção no mundo das narrativas orais como pode ser vista em entrevista concedida para esse estudo, em 06/03/2013:

Lembro-me de contar desde sempre! Para as amigas, o cachorro, as bonecas. Sempre li muito, isso me moveu a escrever. Depois migrei da psicologia para a educação e contei em sala de aula. Vendo o desinteresse das crianças pelos conteúdos a serem estudados, encontrei na literatura infantil um oásis no meio do deserto. Riqueza infinita. Descobri que queria apenas contar e assim foi. Fiz cursos, participei de seminários e pesquisava e lia o tempo todo...

Outro narrador oral que se descobre como tal, através da relação que estabelece com as crianças é José Rêgo (Pinduka), que revela em entrevista realizada em 07/03/2013, o seu percurso através do Projeto Roda-Pião. Quando provocado sobre o descolamento entre a